quinta-feira, novembro 21, 2013

ENTREVISTA COM ROMAN POLANSKI A PROPÓSITO DE "VENUS IN FUR"


O cineasta polaco não temeu passar para cinema e para francês uma peça da off-Broadway (de David Ives) com apenas duas personagens refugiadas num teatro vazio. Thomas (Mathieu Amalric) é o encenador que procura em vão uma actriz para o papel de Vanda, a “Vénus das Peles” da novela de Leopold Von Sacher-Masoch (de quem o termo masoquismo deriva). Até que lhe aparece no casting, tarde e a más horas, uma Vanda “real” (Emmanuelle Seigner). Parisiense dos subúrbios que entra em cena a mascar pastilha eçástica. Vanda parece não dar uma para a caixa dos requintes que o erotismo exige. Acontece que dá, e até transvasa. No ano do seu 80º aniversário, falámos com Polanski, em Maio passado, no termo do Festival de Cannes, a propósito do filme de alcova em que o cineasta voltou a dirigir a sua mulher.


- “Vénus de Vison” adapta uma peça confinada a um décor único. Passa-se tudo em cima de um palco. Gostava que me falasse da dificuldade de fazer um filme neste espaço tão cerrado.
- A abordagem à peça foi tão instintiva, tão pouco cerebral, que eu não tenho uma explicação óbvia para lhe oferecer. Gosto da peça, simplesmente. Impressionou-me, trespassou-me o coração, do mesmo modo que houve filmes que me impressionaram quando eu era jovem: o “Hamlet”, do Laurence Olivier, ou o “Twelve Angry Men”, do Sidney Lumet, nos anos 50. Nessa altura, eu já tinha estudado Belas Artes e começava a dar os meus primeiros passos no cinema. Andava particularmente obcecado pela pintura flamenga e pela construcção de interiores de alguns quadros de Van Eyck, sobretudo “O Casal Arnolfini”, com aquele par que tem atrás de si um espelho holandês redondo que reflecte a sua imagem, bem como a do pintor no seu trabalho. Em miúdo, estas eram as atmosferas que eu preferia. Espaços em que eu sentia que “estava lá”. Creio que “Venus in Fur” vem subterraneamente desses quadros. Mas há outro motivo: fazer um filme com duas pessoas, num espaço fechado, é um risco incrível – e só quem tentou fazê-lo o sabe. Eu tinha medo de aborrecer o público. E perguntava-me: «gostará das interpretações? Antecipará os passos das personagens?» Não, não é nada fácil.


- Mas a “jóia” do filme, digamos assim, o seu segredo, é a palavra, concorda?
- Concordo. É um óptimo texto. Li-o aqui em Cannes, exactamente há um ano. Estive cá em 2012 para apresentar uma cópia restaurada de “Tess”. Foi o meu agente, Jeff Berg, que me pôs o manuscrito nas mãos numa certa tarde, dizendo-me: «Aqui está a sua taça de chá.» Sem grande coisa que fazer, comecei a ler as primeiras páginas, não resisti à sua ironia, ao sarcasmo, ao seu lado feminista e desatei a rir sozinho no meu quarto. E um ano depois aqui estou, com o filme pronto, na competição.

- A peça é influenciada por “A Vénus das Peles”, o mais célebre livro de Sacher-Masoch, e o filme, por sua vez, adapta a peça, tanto quanto sei com alguma liberdade. O que me pode dizer desta fase do trabalho?
- Tenho de confessar isto: com a passagem dos anos, tornei-me tremendamente preguiçoso com a escrita. Já não tenho a disciplina que tinha. Agora, acho um horror ter de escrever um argumento sozinho. Já não tenho paciência. Colaborei na adaptação com o autor da peça, David Ives. O meu trabalho limitou-se a cortar a maioria dos diálogos e também modificámos certas cenas.

- É um bom leitor?
- Ai, não, sou um leitor lento, sempre fui. Nasci na Polónia em 1933, sou um filho da II Guerra Mundial, só fui para a escola aos 12 anos. E era o pior aluno, o último dos últimos, lutei muito tempo contra esse estigma. Safava-me no desenho. Foi por saber desenhar que me aceitaram em Belas Artes. E tudo o que eu gostava estava nas Belas Artes. Já com os livros… Quando eu vivia em Los Angeles, nos anos 60, matriculei-me nos cursos de leitura rápida da professora Evelyn Wood, que então estava na moda. Ela tinha um método de ensino especial e, de repente, aprendi a ler depressa. Lembro-me de ter lido “O Triunfo dos Porcos” em vinte minutos! E ainda me lembro do livro!


- A peça não se passa num teatro, pois não?
- Não, passa-se tudo numa sala de ensaios, fria e impessoal. Lembrei-me depois que, em França – e sabendo de antemão que este filme seria francês e em francês -, as audições são frequentemente feitas em palco. Foi isto que me fez transpor a acção da peça para uma sala de teatro. Tudo mudou então: os actores beneficiaram com o palco, e os bastidores da sala permitiram-nos colocar a câmara em locais em que não havíamos pensado.

- É engraçado ter falado de feminismo: “Vénus de Vison” é mais um filme seu de confronto entre homens e mulheres, e mais um em que nós, homens, não ganhamos…
- Ah,ah! E não é assim na vida? Uma vez mais: não estou consciente disso, mas você é bem capaz de ter razão. Talvez venha do facto de eu gostar de homens perturbados. E de gostar tanto de mulheres. Ou do facto de ter sempre vivido com mulheres fortes e de continuar a viver com uma assim. Quando li a peça, vi que havia aqui um belo papel para a minha mulher, a Emmanuelle Seigner. E já há muito tempo que eu tinha vontade de voltar a trabalhar com ela. Mas deixe-me falar de sexismo: em “Venus in Fur”, há uma enorme ironia sobre esse tema, ao ponto deste se tornar apenas um subplot, bastante risível, de resto. Ao pensar nisso, é óbvio que não pude deixar de pensar na recente polémica da minha vida privada, da qual não gosto nem vou falar. Há outra coisa que é preciso referir: a peça de David Ives permitia-me fazer um regresso às origens em termos de produção de cinema, ou seja, trabalhar num filme de baixo orçamento, com amigos, e em plena liberdade, sem passar cartão à vontade dos estúdios e às estúpidas mensagens dos produtores. Como é que lhes chamam agora? E-mails…


- Agora parece estar a falar como o Woody Allen…
- Porque o Woody Allen ou alguém neste métier sofre com o mesmo. A indústria de cinema nos dias que correm é uma coisa patética. Outra coisa de que eu gosto neste filme é que ele não está de todo relacionado com a indústria e com o que se vê hoje nos ecrãs. Estou farto destas “coisas” cheias de crueldade e de ruído, com gargantas cortadas e carros a explodir. Tudo coisas, deixe-me dizer-lhe, que me excitavam muito quando eu era um jovem cineasta. Acreditava que dali se podiam extrair emoções. Mas, com os diabos, agora não são as emoções que contam. Só a mercadoria.

- Continua a ir ao cinema?
- Muito, muito. Ainda guardo essa paixão pura de ir ao cinema e de ver o que se faz. Vou muito com a Emmanuelle. A maioria dos filmes que vejo já estão sumarizados nos seus trailers. Tudo o que eles têm para dar está concentrado nesse minuto e meio! Mas eu quero ver pessoas no ecrã, quero ouvi-las, quero rir-me com elas.


- Voltando às mulheres fortes e, segundo as suas palavras, à Emmanuelle: é difícil dirigi-la, sendo ela a sua mulher? Na rodagem, Emmanuelle é apenas a actriz, ou mais do que isso?
- Ela faz o trabalho. O profissionalismo vem dela. Sabe o texto de cor, pega nele a partir de qualquer ponto. Quando ela era mais novinha, no filme que eu fiz com ela e o Harrison Ford, agora esqueci-me do nome… “Frantic”, isso… a Emmanuelle era tramada nessa altura. Reagia, barafustava, fartava-se de fazer perguntas. Às vezes, chateava-me com ela. Enfim, era uma miúda, tinha 21 anos. Fez depois tantos filmes, tantas peças de teatro que acabou por se tornar actriz profissional. Enfim, isto sou eu a falar da minha mulher…

- Na sua opinião, quais são as melhores qualidades de Emmanuelle para este papel?
- O seu aspecto físico. E o que sai dele. A Emmanuelle consegue passar instantaneamente de uma emoção a outra. Eu tive algum receio: tinha a certeza de que ela ia dar-se bem com a Vanda mundana, mas receava a Vanda requintada que vem no livro. Tal não aconteceu: ela muda de atitude e de postura com a maior naturalidade.

- Para si, quem é a Vanda?
- É uma mulher que sabe o que quer. Este filme é a história de um homem enrolado por uma mulher com a facilidade com que se enrola um charro. Eu queria fazer um filme para mulheres. E ter uma que diz as coisas certas, numa linguagem divertida, sem banalidades.


- O actor Mathieu Almaric, que é também realizador, foi a sua primeira escolha para o protagonista?
- Ah sim, foi. E que actor fantástico ele é! Um grande actor e uma pessoa perfeitamente normal, que é coisa rara. Mathieu está familiarizado com o palco, é também encenador, é inteligente e tem a idade certa para o papel. Desfrutámos cada momento.

- A personagem de Thomas (Amaric) impressiona também pelo modo como se parece consigo fisicamente, isto é: aquele corte de cabelo “é o seu”. Através dele, recordamo-nos de papéis que você interpretou nalguns filmes seus como “The Fearless Vampire Killers”, ou “Le Locataire”. Foi de propósito?
- Mas nem por sombras! É provável que ele tenha pensado nisso, mas não foi por vontade minha. Aliás, eu só me dei conta dessa semelhança após a rodagem. Mas há uma coisa engraçada nisto: eu conheci o Mathieu graças ao filme “Munique”. Foi o Steven Spielberg que nos apresentou. E nesse primeiro encontro, o Mathieu disse-me logo que, ao longo da sua vida, muita gente lhe disse que ele se parecia comigo. Por falar noutros filmes, é engraçado: há muito tempo que eu acho que ando a fazer o mesmo. Para aí desde o “Cul de Sac”, e não tenho qualquer problema em assumi-lo. Isto deve dar um bom assunto de discussão no divã do psicanalista. Mas eu nunca fiz psicanálise.


- Acho que está a ser demasiado severo consigo próprio…
- Mas não, olhe que os filmes são o argumento, os actores, o director de fotografia, os técnicos… Eu sinto-me apenas o canalizador. Estou lá só para abrir a torneira.

- Acha que há algo sado-masoquista na relação entre um realizador e um actor?
- Acho que há sempre alguma coisa, sim. Este filme diverte-se com essa ideia e acho que foi por causa dessa relação que eu adaptei a peça.

- Trabalha desde há muito tempo na Europa, começou na Polónia comunista, esteve em Inglaterra, mas também viveu e fez filmes nos EUA antes de voltar para o lado de cá do Atlântico. Este facto oferece-lhe uma perspectiva global sobre o cinema contemporâneo. Quer comentá-lo?
- Prefiro fazer um comentário a uma nova geração de espectadores que nem sabe nem sonha o que foi fazer cinema debaixo da censura. Nem lhes interessa. É uma coisa que me magoa e com a qual lido muito mal.


- O seu filme anterior, “Carnage”, também adaptava uma peça de teatro. Essa experiência favoreceu o seu trabalho em “Vénus de Vison”?
- Claro, vai-se vivendo e aprendendo. Mas nesse filme eu tinha quatro personagens, dois casais. A palavra estava bem distribuída. Lembro-me de que, quando filmei “A Faca na Água”, a minha primeira longa-metragem, dirigi três actores e vi-me aflito. Teimoso, lembro-me de pensar: «isto foi difícil mas, um dia, ainda vai ser mais se eu fizer um filme com apenas dois actores». Foi o que aconteceu agora, tantos anos depois. “Venus in Fur” tem apenas duas personagens. Talvez ainda faça um filme só com uma, quem sabe… Ou nenhuma!

- Parece que Bertolucci pensou em realizar o último filme dele, “Eu e Tu”, em 3D, desistindo depois da ideia. Filmar em 3D já lhe passou pela cabeça?
- Já. Pensei em fazer um filme erótico em 3D em 1972 ou 1973. Trabalhei bastante nele, aliás. Fiz muitos testes de câmara, acabei por recusar e, em vez disso, filmei “What?”. E depois tornei-me inimigo do 3D. Claro que o actual 3D é diferente, mas há uma coisa que chateia à brava nestes novos filmes: são muito negros. Os óculos escuros não me convencem. Parece que a técnica não permite que se faça de outra maneira.


- Acha que alguém lhe vai dar um argumento a ler em Cannes este ano? Voltará no seguinte?
- Não sei, mas não preciso. Estou já a trabalhar noutro filme com o Robert Harris, o argumentista e autor da novela que deu origem a “The Ghost Writer”.

- Qual é o assunto desta vez?
- Uma adaptação do caso Dreyfus. O livro de Robert sairá primeiro, depois começamos a filmar. Não posso contar mais.

(Entrevista de Francisco Ferreira, publicada na revista Atual do semanário Expresso, 16/11/2013)