sábado, novembro 23, 2013

EXPLICAÇÃO DE CATHERINE


Um amigo escreveu no seu blogue: «Catherine Deneuve fez 70 anos. Isto começa a ser preocupante...» O deus do tempo permite-se a ironia de pôr tudo a correr mais depressa, exactamente quando não conseguimos aguentar o ritmo. Nos meus primeiros 12 anos caibo todo eu, estão lá os pormenores que posso contar com mais gosto, significado e ilusão. Já os meus mais recentes 12 anos passaram-se num fogacho, ainda há bocadinho foram os aviões a chocar contra as Torres Gémeas. Mas não, não são preocupantes os 70 anos de Catherine Deneuve, a idade dela é das raras que não trazem amargura às nossas. Ela envelhece como uma madona, serena, como se estivesse segura de que as colinas da Toscana continuam lá atrás no quadro para que posa.


Numa das suas mais belas canções, “Votre Fille a 20 Ans”, Serge Reggiani repete o título no primeiro verso: «A sua filha tem 20 anos, madame…» E continua cantando: cada um desses vinte anos, para a madame, contou o dobro, ela tem as primeiras rugas e o rapaz que agora acha bela a filha faz-lhe lembrar, à madame, aquele para quem ela outrora se embelezou. Talvez os 20 anos de Catherine tenham tido esse efeito perverso na sua mãe (também actriz). Mas, para o resto da humanidade, os 20 anos de Catherine Deneuve, passados na década de sessenta, suscitam o adjectivo que mais ocorre a quem a olha: beleza. Só o lábio superior, ligeiramente fino, poderia sugerir uma, ali, improvável imperfeição. Mas logo descobrimos não ser uma. Pelo contrário, é uma chamada de atenção para repararmos que as comissuras, os ângulos onde os lábios se unem, se erguem em duas pequeninas curvas adolescentes. Um toque de fascínio. Esses dois sinais ela vai guardar sempre. Primeiro, confirmando o que os olhos de garota dizem; depois, contrariando-os, porque os olhos vão passar a lembrar uma tristeza de que já voltaremos a falar.


Aos 21 anos Catherine Deneuve já era aquilo que só com o dobro da idade, em 1985, ficou oficializado em pedra, tornando-se Marianne, a efígie oficial da França. Então, em 1964, já se transformara na encarnação da beleza e graciosidade da mulher francesa. O filme é um musical, mas triste como o reencontro de dois amantes depois de o fogo se ter tornado cinza. Os adolescentes Guy e Geneviève apaixonam-se, separam-se porque o raio da vida é assim e quando voltam a cruzar-se cada um tem carris diferentes. Três anos antes, Hollywood fizera um clássico (o realizador era um grande, Elia Kazan): “Esplendor na Relva”. Também Natalie Wood, quando vai voltar a ver o seu amor de menina, este já tem outra mulher e uma existência sem chama e o The End acontece com os dois pensando na tangente que não foi mais do que isso. “Les Parapluies de Cherbourg” é essencialmente o mesmo, mas o que é interessante notar são as comissuras dos lábios de Natalie, duas pequeninas curvas ingénuas, como as de Catherine.


Natalie Wood morreu afogada e Catherine viveria outro tipo de tragédia, por interposta irmã. Ela é Deneuve porque o nome de família estava tomado pela irmã, um ano mais velha, Françoise Dorléac. Elas eram tão lindas e tão diferentes. Roman Polanski, que em beleza feminina é um entendido, contratou no mesmo ano, 1965, Catherine Deneuve para fazer “Repulsa” e Françoise Dorléac para “Cul-de-Sac”. A beleza perfeita de Catherine, num corpo grácil que a moda francesa iria saber explorar (sobretudo Yves Saint-Laurent) e a igualmente bela Françoise, em quem nada lembrava ingenuidade, a começar pela sua voz grave e sexy. Em 1967, Jacques Démy juntou-as em “Les Demoiselles de Rochefort”, outro musical, mas desta vez de final feliz. Feliz, o filme. Na vida real, Françoise Dorléac meteu-se num Renault 10, correndo para o aeroporto para ir ver a estreia do filme em Londres. Falhou uma curva e morreu aos 25 anos. As comissuras de menina continuaram nos lábios de Catherine Deneuve, mas os olhos mudaram para aqueles com que chegou aos 70 anos. Embora seja cruel dizê-lo, ainda mais belos.

(Ferreira Fernandes in Notícias Magazine, 3/11/2013)


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