quinta-feira, novembro 28, 2013

THE DEAD ZONE (1983)

ZONA DE PERIGO
Um Filme de DAVID CRONENBERG



Com Christopher Walken, Brooke Adams, Herbert Lom, Tom Skerritt, Anthony Zerbe, Martin Sheen
 
EUA / 103 min / COR / 16x9 (1.85:1)
 
Estreia nos EUA a 21/10/1983


Johnny Smith: “If you could go back in time to Germany, before Hitler came to power, knowing what you know now, would you kill him?”

Fui desde sempre um grande apreciador do cinema de David Cronenberg, esse realizador canadiano nascido em Toronto a 15 de Março de 1943, que gosta de usar o corpo humano como matéria prima ideal para a moldagem dos seus filmes. Este “The Dead Zone” não será um dos mais representativos desse cinema mas consegue envolver-nos numa atmosfera psicológica bem delineada, onde não será alheia a paisagem invernal em que decorre toda a acção do filme. Apesar do próprio Cronenberg ter lamentado o facto de a versão em video possuir um tom demasiado claro, penso que a brancura da neve contribui decisivamente para a criação dessa atmosfera que é uma característica fundamental de “The Dead Zone” e uma das razões porque eu gosto tanto deste filme.
 
Adaptado de uma novela de sucesso de Stephen King, “The Dead Zone” conta-nos a curiosa história de um professor, Johnny Smith (Christopher Walken), que um acidente de viação irá atirar para um coma profundo de cinco anos na cama de um hospital. O despertar, que para Johnny é como se fosse o dia seguinte, traz-lhe a revelação da dura realidade: encontra-se praticamente paralizado da cintura para baixo e Sarah (Brooke Adams), a mulher com quem estava para se comprometer nas vésperas é agora casada e mãe de uma criança. Pouco depois Johnny descobre em si próprio a estranha capacidade de visualizar acontecimentos passados ou futuros que lhe ocasionam insuportáveis dores de cabeça, acompanhadas por uma sensação que ele próprio descreve como a de uma “morte antecipada”.
 
Com o passar do tempo Johnny volta a conseguir andar, embora com dificuldades, e aprende a usar o seu novo dom para alterar o destino e evitar assim que certos acontecimentos trágicos se venham a concretizar, nem que para tal seja necessário sacrificar a própria vida. Cronenberg sempre se sentiu atraído pelo corpo humano e o modo como esse corpo nos pode eventualmente afectar ou mesmo destruir. Em “The Dead Zone” essa obsessão continua, se bem que vista agora por um prisma ligeiramente diferente – não temos aqui nenhum vírus ou parasita, o habitual horror é desta vez substituído pela fragilidade, a qual progressivamente se vai apoderando do corpo de Johnny Smith.
 
Como habitualmente Cronenberg sente-se confortável na adaptação de outras histórias que não as suas, o que o torna menos indulgente e mais linear no modo de as filmar. Essa linearidade de processos, a sua montagem fluida, invisível, confortam a fé do espectador naquilo que lhe é dado a observar. Nada de magia ou atmosferas góticas, é a estrutura narrativa que conduz o espectador à inquietude fundamental de observador. “The Dead Zone” é, segundo o próprio realizador, um filme essencialmente sobre perda e sacrifício, o que não o impede de constituir também um excitante thriller, feito com mestria e inteligência, e recheado de cenas que por certo perdurarão na memória dos apaixonados deste género de cinema.
 
CURIOSIDADES:
 
- A novela de Stephen King, onde o filme é baseado, inspirou-se de facto num personagem real, o físico Peter Hurkos, o qual alegava que os seus poderes lhe tinham aparecido após uma queda de um escadote em que teria batido com a cabeça no chão

- O trecho do poema que Johnny lê aos seus alunos no início do filme é a parte final de “The Raven”, da autoria de Edgar Allen Poe

- Os intervenientes na sequência da 2ª Guerra Mundial falam todos em polaco

- David Cronenberg foi premiado por este filme nos Festivais de Avoriaz (França) e de Fanta (Itália). Por sua vez, “The Dead Zone” foi considerado o melhor filme de horror de 1983 pela Academy of Science Fiction, Fantasy & Horror Film dos EUA.

 

terça-feira, novembro 26, 2013

HERANÇA DO KING SERÁ PARTILHADA POR OUTRAS SALAS DE LISBOA


As portas do Cinema King, em Lisboa, estão fechadas. No site oficial ainda não consta essa informação, mas as últimas imagens foram projectadas no domingo, com a exibição dos filmes em cartaz. Foram 340 as pessoas que marcaram presença, mas o produtor e exibidor Paulo Branco não foi uma delas. «Não gosto de funerais», justificou ontem, numa conferência de imprensa, em que garantiu que vai continuar a oferecer cinema independente nas outras salas de que a sua empresa dispõe. Os restantes espaços da Medeia em Lisboa – Monumental, Nimas e Fonte Nova – vão ser redimensionados e terão horários alargados. Simultaneamente, os debates e ciclos temáticos que Paulo Branco promove no Lisbon & Estoril Film Festival poderão ser aqui replicados. Além disso, os equipamentos do King serão reaproveitados nessas outras salas (onde os sete funcionários foram recolocados) e em exibições itinerantes na província.


Paulo Branco explorava o Cinema King desde 1990, quando havia "dois espectadores por sala" e não havia abertura para filmes de Pedro Almodóvar ou David Cronenberg. «Até o Woody Allen era olhado de lado», lembrou o exibidor, que 23 anos depois se viu obrigado a fechar portas devido ao «aumento exponencial de renda» de cerca de 4 mil para 12 mil euros, depois de uma reavaliação do edifício para 2,2 milhões de euros. «Era incomportável», realçou, explicando que foram em vão os apelos que fez à Câmara de Lisboa e à Secretaria de Estado da Cultura. «A indiferença relativamente a estes temas é cada vez maior. E acho que havia a ideia de que eu me haveria de desenrascar», disse alertando que «muitos espaços culturais estão a fechar devido a situações destas». «O poder político deveria criar regras especiais para a avaliação dos espaços culturais, para que estes possam continuar a existir», defendeu Paulo Branco no encerramento de mais uma sala, depois de em 2011 ter fechado as do Saldanha Residence.


«Fechei salas, abri salas, enterrei salas, infelizmente enterrei realizadores, divorciei-me de outros. Enquanto tiver pelo menos cabeça e energia vou continuar», garantiu, referindo as “ligações de vida” que retirou do trabalho com realizadores como Manoel de Oliveira, Raoul Ruiz ou João César Monteiro. Nos tempos áureos, o King chegou a ter 150 mil espectadores por ano, mas ultimamente a audiência era cada vez menor: 60 mil em 2012 e 40 mil em 2013, segundo dados de Paulo Branco. As razões são muitas e o produtor fez questão de realça-las, a começar pela fraca cultura de cinema que existe em Portugal. «Ir ao cinema é uma experiência e essa experiência tem de ser cultivada. É uma questão de educação. Conhecimento e cultura são enriquecimento», sublinhou, lamentando a falta de interesse dos jovens, dos políticos, da comunicação social em geral e da televisão pública em particular. A isso, junta-se a facilidade com que se tem acesso à imagem através da internet, o investimento obrigatório em equipamentos digitais e a multiplicação de salas em centros comerciais. Aspectos para os quais Paulo Branco alerta há mais de uma década. «Não consegui ser o contraponto a essa concentração», admitiu. Mas não se rende e fazer concorrência ao “cinema das pipocas” não está fora de questão.


Nos anos 1980, Paulo Branco lançou-se na exibição quando teve dificuldades em encontrar salas para exibir filmes como “Silvestre”, de João César Monteiro, ou “Francisca”, de Manoel de Oliveira. «O mercado era controlado por dois grupos, Lusomundo e Castello Lopes, e a maioria dos filmes era americana», lembra. Durante dois anos explorou uma sala do Fórum Picoas, onde exibia cinema de autor, mas em 1990 começou a explorar as salas do King. «Aqui comecei a minha carreira a sério de exibidor e distribuidor. Agora chamam-lhe uma sala mítica, não sei bem o que isso quer dizer. O King permitiu talvez a existência do cinema português. Sem ele a carreira de alguns realizadores teria sido diferente», diz.
 (Sofia Fonseca in Diário de Notícias, 26/11/2013)


Nota: Para saber mais sobre o passado do Cinema King (ex-Vox)
consultar o post sobre as salas de cinema de Lisboa

segunda-feira, novembro 25, 2013

2001: A SPACE ODYSSEY (1968)

2001: ODISSEIA NO ESPAÇO
Um filme de STANLEY KUBRICK

Com Keir Dullea, Gary Lockwood, William Sylvester, Daniel Richter, Leonard Rossiter, etc.

EUA-GB / 141 min / COR / 16X9 (2.20:1)

Estreia nos EUA a 6/4/1968
Estreia na GB a 10/5/1968 (Londres)
Estreia em PORTUGALl a 1/10/1968
(Lisboa, cinema Monumental)
Estreia em MOÇAMBIQUE a 4/5/1969
(LM, teatro Manuel Rodrigues)


HAL: «I'm afraid. I'm afraid, Dave. Dave, my mind is going. I can feel it. I can feel it. My mind is going. There is no question about it. I can feel it. I can feel it. I can feel it. I'm a...fraid. Good afternoon, gentlemen. I am a HAL 9000 computer. I became operational at the H.A.L. plant in Urbana, Illinois on the 12th of January 1992. My instructor was Mr. Langley, and he taught me to sing a song. If you'd like to hear it I can sing it for you»
Dave Bowman: «Yes, I'd like to hear it, HAL. Sing it for me»
HAL: «It's called "Daisy" [sings while slowing down] Daisy, Daisy, give me your answer do. I'm half crazy all for the love of you. It won't be a stylish marriage, I can't afford a carriage. But you'll look sweet upon the seat of a bicycle built for two»

A reposição de "2001: ODISSEIA NO ESPAÇO" em circuito comercial (muito embora limitada a uma única sala do El Corte Inglês, em Lisboa, com 4 sessões diárias, 11:30, 15:00, 18:15 e 21:30 horas) peca por tardia mas é extremamente oportuna. E isto por causa do filme "Gravidade", já por aqui abordado e ainda em exibição. Quando o filme de Alfonso Cuarón se estreou, não faltaram críticos apressados que, um pouco por todo o lado, soltaram aos quatro ventos verborreias de admiração, tais como "magnífico", "genial" ou "obra-prima". Ou, mais alarvemente, «Um novo 2001!». Uma das coisas que me continua a surpreender hoje em dia é a ligeireza com que se atribui a cotação máxima a qualquer filme melhorzinho que por aí apareça. Tal sobre-valorização significa uma de duas coisas: ou uma falta de cultura cinematográfica gritante (e portanto sem referências antigas para comparação), ou, em alternativa, uma falta de memória muito preocupante. Mas agora, e pelo menos por uma vez, existe a oportunidade de se assistir em paralelo a estes dois filmes em salas de cinema vizinhas, devidamente apetrechadas. Vão vê-los de olhos e mentes bem abertas e descubram as diferenças entre um bom filme e uma obra de génio. (Nota: A cópia em exibição de "2001", não é famosa ao nível da imagem. Pena que a UCI não tenha recorrido à cópia digital - que tenho em casa, em formato blu-ray - na qual o filme atinge todo o seu esplendor).

Filme charneira por direito próprio (há o antes de e há o depois de, e não sómente no campo da ficção científica), 2001: A SPACE ODYSSEY” constitui uma experiência sem paralelo na história do cinema. Stanley Kubrick não foi apenas um cineasta inconformista ou original. Foi um dos maiores artistas do nosso tempo que por acaso se expressou através do celulóide. Todas as obras que nos legou acusam o vigor da sua personalidade e a inquietação das suas preocupações. Intransigente perfeccionista da imagem, manipulador incansável de todas as técnicas, pintor barroco dos esplendores e dos horrores do mundo, analista minucioso dos nossos mitos e da nossa história, Kubrick projectou o universo à sua medida, não sem lhe descobrir, para além de uma meditação irónica sobre o homem, alguns terríveis mistérios.

2001” testemunha da melhor forma o labor deste realizador ímpar, emprestando ao tema todo o fascínio da aventura humana mas também toda a inquietação dos futuros que se constroem na carne e se prolongam no tempo e no espaço. Para os milhões de espectadores que desde 1968 até hoje decretaram o triunfo do filme – apesar daqueles que falaram de “aborrecimento abissal” – “2001” foi sobretudo uma experiência sensorial (não só visual) completamente nova, a percepção de um “espaço” inédito. Ultrapassando o cinema superficial e das superfícies, “2001” abria no écran uma profundidade absoluta, a do puro negro espacial; e através dele devolvia ao espectador o prazer fílmico de seguir o movimento de coisas e objectos, mais do que uma história determinada: ou melhor, de ver a história construir-se e desenrolar-se como facto físico e mutação de imagens.

Reconstruindo o futuro (hoje já presente) na mais criteriosa das mise-en-scènes possíveis, Kubrick teve para tanto de trabalhar intimamente com os mais diversos especialistas, desde o argumentista Arthur C. Clarke (um dos mais férteis e rigorosos ecritores de ficção científica) até aos mais competentes técnicos da N.A.S.A., organismo que lhe disponibilizou milhares de fotografias e informações técnicas. Kubrick e Clarke consultaram profissionais de todos os ramos afim de averiguarem o que seria o mundo nos trinta anos seguintes, desde os meios de locomoção ao vestuário e aos costumes: «Não quisemos ir muito longe no espaço e no tempo porque o que nos parecia mais interessante era a tomada de consciência do homem da existência de vida extraterrestre e o primeiro contacto com esta inteligência. Para além deste estádio, o espírito humano encontra-se desorientado».

Logo a abrir somos introduzidos na pré-história da humanidade. Kubrick chama-lhe "The Dawn Of Man" (“O Alvorecer do Homem”) e dá-nos a ver diversas tribos simiescas que lutam pelo controle de zonas territoriais onde a existência de água é essencial à sobrevivência, e se aconchegam em grutas para se protegerem dos perigos da noite. Subitamente estes primeiros antepassados do homem são postos perante um novo elemento: uma laje negra, lisa e dura. Passada a confusão gerada por aquela presença, inexplicável e misteriosa, o chefe da tribo ousa aproximar-se do monolito e tocar-lhe, no que é imitado pelos outros. Mais tarde, a imagem mental do monolito leva o chefe da tribo a descobrir a possível utilização de um osso como "instrumento", isto é, como uma extensão do braço e da mão do homem, uma arma capaz de lhe dar o controlo da água e das tribos vizinhas: é a primeira e determinante etapa do processo que o irá conduzir à apropriação do universo.

O monolito negro, uma das maiores referências de “2001” (a outra é sem dúvida o computador HAL) é-nos apresentado simultâneamente como uma ameaça e como um sinal de esperança em três momentos decisivos da evolução humana, e que são as partes em que o filme se divide. Não interessa aqui procurar a sua génese. Quer seja uma imagem de Deus, de extra-terrestres ou de uma qualquer força cósmica, o monolito simboliza o desconhecido, o medo pelas coisas ou situações nunca dantes experimentadas mas que por isso mesmo exerce uma tão grande atracção e curiosidade.

Um corte abrupto na sequência (magnífico raccord, da forma do osso para a forma da nave) e eis-nos no ano de 2001, a bordo de Orion III, confortável nave espacial, que leva os homens da Terra até a um satélite artificial. O Dr. Heywood Floyd (William Sylvester) é o único passageiro desta viagem que é continuada até à Lua, agora a bordo de uma outra nave, Avies 1-B. A finalidade da viagem é estudar um misterioso monolito, descoberto na base de Clavius, e que emite sinais em direcção a Júpiter.  Tudo dentro do maior secretismo, inventando-se uma historia de epidemia para desviar a curiosidade dos parceiros soviéticos. Uma visita de Floyd e de outros cientistas americanos ao local do monolito confirma o seu carácter "sobrenatural" e os seus laços com o grande espaço.

A terceira parte do filme fala-nos de uma nova viagem, desta vez até ao próprio planeta Júpiter. Uma nave espacial, a Discovery, pilotada por um computador da novíssima geração 9000 (a quem chamam Hal) e por dois cosmonautas, David Bowman (Keir Dullea) e Frank Poole (Gary Lockwood), leva ainda a bordo (em hibernação) três cientistas. Antes de avistarem o novo planeta, os cosmonautas têm vários problemas com o computador. Hal, devido a uma falha ou a programação secreta, elimina Poole e os três hibernados. Dispõe-se a fazer o mesmo com Bowman, mas este consegue desligá-lo, matá-lo, apesar das suas súplicas.

Depois de consumada a "lobotomia", Bowman reinicia a aproximação a Júpiter a bordo de uma pequena nave. Já sem comunicações, sózinho no espaço, Bowman perde-se na atmosfera de Júpiter e no espaço infinito, atravessando um espaço-tempo enigmático, um túnel de luz e de astros que parece conduzi-lo ao centro do cosmos. Aí, no meio do desconhecido, onde nada possibilita ainda uma explicação e o mistério é absoluto, Bowman irá olhar-se a si próprio, confrontando-se com os seus medos e interrogações, envelhecendo e renascendo num espaço em que se conjuga o passado com o presente, e onde tudo adquire uma importância transcendente (veja-se todo o ritual de Bowman à mesa ou a contemplação da quebra de um simples copo).

E é aqui, ao contrário dos primeiros capítulos do filme que possibilitam uma leitura literal dos acontecimentos, que a impossibilidade dessa mesma leitura se manifesta, suscitando no espectador desconcertado um verdadeiro delírio de interpretação como se houvesse urgência em esclarecer tudo isso: metafísica, religião, ciências..., com convocatória dirigida em boa e devida forma à psicanálise para esta dar a sua versão sobre naves de forma fálica, regresso do feto, tudo à sombra da figura presente-ausente do Pai-monolito. Exercícios louváveis, mas um pouco estafados quanto ao objectivo. Pois, tal como o monolito, o próprio filme é aquele objecto monumental e enigmático que apenas pode ser tocado e não explicado (quando deixar de haver segredo, também não haverá objecto para ver e tocar).

Esse toque também se faz com a vista, querendo Kubrick significar assim aos espectadores (e aos críticos) que caminham por sua conta e risco. E que, de qualquer modo, o objecto resiste: é nesta extraordinária capacidade de resistência ao tacto que “2001” melhor se revela, nas diferenças radicais que o distinguem dos outros filmes, dos chamados filmes "normais". Basta atentarmos no facto de em duas horas e dezanove minutos de filme haver um pouco menos de quarenta minutos de diálogos, para nos apercebermos que 2001” é na sua essência uma experiência não verbal, intensamente subjectiva, cujo objectivo principal é atingir um nível profundo de consciência do espectador, exactamente como a pintura ou a música.

Relembremos Kubrick: «Sempre me pareceu que a artística e verdadeira ambiguidade – se é que pode usar-se este paradoxo – é a mais perfeita forma de expressão. Ninguém gosta que lhe digam nada. Tomemos como exemplo Dostoievski. É extremamente complicado dizer o que sentia por cada uma das suas personagens. Diria que a ambiguidade é o produto final quando se evita a superficialidade e as verdades evidentes».

“2001: A SPACE ODYSSEY” é assim uma espécie de infracção contínua à narrativa; o regresso do monolito ameaça permanentemente o desenrolar da história com o seu próprio mistério. É por isso que não se tem desejo de falar do filme, apenas se sente a necessidade de a ele se voltar, de tempos a tempos; e, o que é extraordinário, tornamos a vê-lo exactamente como o vimos no primeiro dia. Última astúcia de Kubrick para um filme que fala de eternidade e conta os seus recomeços. Não se tem desejo de falar dele, mas é um dos filmes da história do cinema sobre o qual mais se escreveu. É talvez o único decifrado imagem por imagem, segundo por segundo. O único momento de emoção "falada" no filme, é a desconexão de Hal, quando se quer justamente reduzi-lo ao silêncio.

Citando ainda Kubrick: «é possível, mesmo provável, que os habitantes de um outro planeta tenham já atingido o desenvolvimento científico e técnico que será o nosso daqui a mil ou cem mil anos, e que nós vivamos sob o olhar e o controle dessa civilização. Ora, o homem de amanhã, com a longevidade consideravelmente aumentada, tendo à sua disposição constante todo um conjunto de conhecimentos e com os fulgurantes progressos da velocidade dos meios de transporte, poderá possuir os três atributos de Deus: a eternidade, a omnipresença e a ubiquidade».

"2001 é o reflexo preciso dessa confiança inabalável no destino e nas potencialidades humanas. Toda a construção da obra nos afirma isso, documentando, desde a época símia, o constante repto que o Homem opõe ao desconhecido, ao mistério, a todas as lajes negras, lisas e duras que se lhe atravessaram no caminho prefigurando o futuro. Caminho que está longe de terminar, porque para além de Júpiter novos desafios, novos mundos, novos universos esperam a sua aventura. As lajes mais não são do que momentos que se ultrapassam: primeiro habitando a Terra, depois explorando a Lua, finalmente atingindo outros planetas. Passando o ceptro de mão em mão, de geração para geração, de homem em homem. Por isso, é ainda um rosto admirável de criança que nos contempla no derradeiro plano de 2001: A SPACE ODYSSEY”.

Perante um filme como este, é inútil acumular adjectivos, pois quase nada daquilo que se possa aqui dizer será suficiente para lhe fazer justiça. “2001” é uma obra-prima que ultrapassa grandemente o género em que está enquadrada para se situar, por direito próprio, num lugar privilegiado dentro da história do cinema. Ou ainda mais: na arte do nosso tempo. Embora o filme tenha custado 10,5 milhões de dólares, fez um lucro de 31 milhões por todo o mundo em apenas 4 anos, até ao final de 1972 (segundo o sempre preciso IMDB, em 31/12/2001 os lucros do filme já ascendiam a 239,621 milhões de dólares). Ganhou o Óscar para os Melhores Efeitos Especiais, o único Óscar atribuído a um filme de Stanley Kubrick. O que efectivamente não passa de um fait-divers, sabendo-se hoje o estatuto mítico que “2001” adquiriu. O passar dos anos é-lhe completamente transversal e o seu poder permanece intacto ao continuar a recrutar legiões sucessivas de admiradores.

CURIOSIDADES:

- Kubrick escreveu o argumento original do filme ao mesmo tempo que Arthur C. Clark escrevia a novela. Trabalhando simultâneamente, os dois homens iam alterando os dois escritos por sugestões de um e de outro, não se preocupando qual das obras seria em primeiro lugar publicada. Acabou por ser o filme a estrear-se primeiro.

- Inicialmente Kubrick tinha pensado em Alex North para escrever a música do filme. Mas durante a rodagem, ao pôr música clássica no set para criar ambiente, apercebeu-se do efeito que essa música tinha nas imagens já filmadas e optou por usá-la na montagem final. A música composta entretanto por Alex North foi editada mais tarde como "Alex North's 2001".

- Incrementando cada uma das letras de "HAL" obtém-se "IBM". Arthur C. Clark afirmou não se ter apercebido de tal facto na altura, pois caso tivesse reparado nesse pormenor teria alterado o nome do computador. O nome de "HAL" vem de "Heuristically programmed ALgorithmic computer".


- A voz de Hal pertencia a Douglas Rain, que nunca visitou o local de filmagens. Os actores Nigel Davenport e Martin Balsam chegaram a ser considerados para esse papel.

- Kubrick usou várias toneladas de areia importada (que foi entretanto lavada e pintada) para as cenas na superfície da Lua.

- De acordo com Douglas Trumbull, a metragem total do filme era cerca de duzentas vezes superior à usada na montagem final.


- Arthur C. Clarke chegou a afirmar que se as pessoas entendessem totalmente 2001”, era porque qualquer coisa tinha falhado. A intenção tinha sido sempre a de colocar mais interrogações do que dar respostas.

- O tema "Echoes", do album "Meddle" dos Pink Floyd, pode ser sincronizado com a sequência "Jupiter and Beyond the Infinite". Na verdade, ele foi composto de modo a ilustrar essa sequência do filme.

- A filha de Kubrick, Vivian, aparece no filme como sendo a filha do Dr. Floyd (a quem este telefona para lhe dar os parabéns).


- A voz do controlador da missão pertence a Frank Miller, membro da Força Aérea Norte-Americana que na vida real teve a responsabilidade de controlar diversas missões aéreas.

- Dan Richter, que vestiu a pele do macaco Moonwatcher, coreografou a maioria das sequências da primeira parte do filme ("The Dawn of Man").

- De acordo com Isaac Asimov, Stanley Kubrick teria solicitado à Lloyd's de Londres um seguro contra perdas pessoais caso alguma inteligência extra-terrestre fosse descoberta antes do filme se estrear. A companhia inglesa negou-lhe esse pedido.


- O monolito começou por ser um tetraedro negro, mas como não reflectia bem a luz, Kubrick pensou então em utilizar um cubo transparente. Tal também não resultou devido às reflexões criadas pelas luzes do estúdio. O monolito negro finalmente executado tinha as proporções de 1X4X9.

- Ao saír da estreia do filme em Los Angeles, o actor Rock Hudson afirmou: « Will someone tell me what the hell this is about?»

- Quando se estreou, o filme tinha mais cerca de 20 minutos, que foram posteriormente retirados por Kubrick, ao fazer a montagem definitiva com que o filme passou a ser exibido em todo o mundo.  

   

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