quarta-feira, janeiro 29, 2014

WHAT LIES BENEATH (2000)

A VERDADE ESCONDIDA
Um Filme de ROBERT ZEMECKIS




Com Michelle Pfeiffer, Harrison Ford, Diana Scarwid, Joe Morton, etc.

EUA / 130 min / COR / 16X9 (2.35:1)

Estreia nos EUA a 21/7/2000
Estreia em PORTUGAL a 20/10/2000


Claire: "Something is happening in our house! Whether you like it or not!"

«Sob a sombra de Hitchcock» - eis o subtítulo que, creio, todos aceitaremos de ânimo leve para este filme. No entanto, julgo que essa filiação está longe de esgotar o brilhantismo de "A Verdade Escondida". Dito de outro modo: creio que estamos perante um magnífico exercício classicista, um conto negro sobre o espaço conjugal e os seus fantasmas. Tudo passa, obviamente, pela personagem de Michelle Pfeiffer (e pela sublime Michelle Pfeiffer). É a partir do seu olhar que o mundo se organiza, ou melhor, se desorganiza - Zemeckis constrói todo o seu filme como um espaço ameaçado em que nunca se sabe muito bem o que poderá surgir na imagem seguinte, ou mesmo no interior de cada imagem. Se me é permitido ser didáctico, diria que estamos perante uma lição magistral de: como enquadrar; como fazer durar uma imagem; como utilizar os sons (incluindo a música) no interior das imagens; como filmar os actores e os seus gestos; enfim, como lidar com a ilusória transparência do mundo.

É, além do mais, um filme desassombradamente popular, no sentido em que recupera formas tradicionais de espectáculo sem para isso procurar justificações estetizantes ou assumir uma qualquer postura revivalista. O que aqui se celebra é o cinema como forma de ocupação do espaço e mecanismo de reconversão do tempo - coisas raras, coisas preciosas. Este filme é uma espécie de "Psycho" do fim de milénio. Robert Zemeckis, um dos realizadores que soube manter e, de certo modo, inovar as tradições hollywoodescas, apropria-se totalmente do estilo do mestre, não se importando de o plagiar abertamente ao mesmo tempo que o homenageia. Isto apesar de ser introduzida uma vertente fantástica, ausente dos filmes de Hitchcock, e que aqui ajuda à dimensão sobrenatural do filme. É pois quase inevitável sentir a presença tutelar do mestre do suspense e sermos dominados por ela.

Estamos assim perante um óptimo entretenimento (brilhante o estudo ao pormenor de cada enquadramento, cada acontecimento) a que só falta uma história mais fulgurante e uma maior densidade das personagens para ser um filme excelente. De sustos, estamos conversados. Mesmo sendo previsíveis, os saltos na cadeira são mais que muitos e chegam a ser angustiantes os travellings premonitórios de mais terror. Dos actores, tem que se destacar indubitavelmente a belíssima Michelle Pfeiffer que tem aqui um dos seus melhores desempenhos. É magnífica, mesmo na mais pequena nuance psicológica.

Tecnicamente é também um filme quase perfeito. Da montagem à fotografia, passando pela óptima partitura de Alan Silvestri, que nalguns momentos se transforma literalmente em Bernard Herrmann, para mais alguns arrepios nossos. O seu estranho sabor de filme clássico deixa-nos um pouco perplexos, até pela falta de originalidade. Por aqui passam, para além de diversos filmes do já citado Hitchcock, demasiadas semelhanças com "Atracção fatal" ou "Shining", mas é um divertimento de primeira água. Somos manipulados, mas felizes por sê-lo.

terça-feira, janeiro 28, 2014

CHEGOU A ERA DIGITAL DO CINEMA


Pensemos em alguns títulos emblemáticos da produção americana de épocas bem distintas: “Wings/Asas” (1927), de William A. Wellman, sobre os combates aéreos na Primeira Guerra Mundial, consagrado com o primeiro Óscar de Melhor Filme; “Double Indemnity/Pagos a Dobrar” (1944), de Billy Wilder, um dos momentos fundadores da tradição do filme noir; “Samson and Delilah/Sansão e Dalila” (1949), com Victor Mature e Hedy Lamarr, lendário épico bíblico assinado por Cecil B. DeMille; “Psycho/Psico” (1960), uma referência central na filmografia de Alfred Hitchcock; enfim, “Saturday Night Fever/Febre de Sábado à Noite” (1977), a realização de John Badham que transformou John Travolta numa estrela.


Para além das suas muitas diferenças, que aproxima estes filmes? Pois bem, todos começam com o símbolo de um dos mais célebres estúdios da história de Hollywood: Paramount Pictures. Mas há um outro dado que, na sua aparente banalidade histórica, ganhou uma nova dimensão simbólica: todos eles (e também, obviamente, os muitos milhares produzidos nas respetivas épocas) chegaram aos espectadores em cópias em película de 35 mm. Acontece que, há dias, a Paramount anunciou que vai deixar de distribuir filmes em 35 mm - a comédia “Anchorman 2” (a ser estreada em Abril nas salas portuguesas, com o título “Que Se Lixem as Notícias”) será o seu derradeiro lançamento em película; a partir daí, todas as suas produções serão difundidas em formato digital.


Em boa verdade, a notícia não envolve nenhuma surpresa: com mais ou menos atribulações, a reconversão das salas de cinema é uma tendência global irreversível. Em meados de 2012, a Screen Digest (firma de investigação dos mercados audiovisuais com sede em Londres) tinha já publicado um relatório apontando o final de 2013 como um momento charneira na passagem para o digital, prevendo que 2015 será o ano em que os EUA, a par dos principais mercados do planeta, deixarão de ter salas comerciais a projetar filmes em película.


Escusado será dizer que tudo isto suscita muitas dúvidas, em particular nos pequenos mercados que, não vale a pena alimentar ilusões, terão de seguir as tendências impostas pelos mais fortes. Além do mais, há uma pergunta muito específica que emerge: como vão ser vistos os filmes clássicos (e são a maioria) que ainda não foram convertidos para o formato digital? Importará não reduzir o problema a qualquer combate maniqueísta, quanto mais não seja porque algumas reposições recentes (“Lawrence da Arábia”, “Hiroshima Meu Amor”, “Casablanca”, etc.) confirmam que a indústria já reconheceu a importância da passagem desses clássicos para o digital. O que está em causa é, ainda e sempre, a preservação das memórias cinéfilas como um fundamental princípio cultural e comercial. Desde as empresas de distribuição/exibição até às instituições estatais, todos podem (e devem) enfrentar o problema sem esquecer os direitos do próprio espectador.

(João Lopes in “Diário de Notícias”, 26/1/2014)

quinta-feira, janeiro 23, 2014

DIE MARQUISE VON O... (1976)

A MARQUESA DE O
Um Filme de ERIC ROHMER



Com Edith Clever, Bruno Ganz, Edda Seippel, Peter Lühr, Otto Sander, etc.

RFA-FRANÇA / 102 min / COR /
4X3 (1.37:1)

Estreia em FRANÇA a 19/5/1976
Estreia nos EUA a 17/10/1976
(Festival de New York)
Estreia em PORTUGAL em Abril de 1977
(Lisboa, cinemas Quarteto e Estúdio 444)



«Rejuvenescer uma obra não é modernizá-la, 
é restituí-la ao seu tempo»
Eric Rohmer

A obra, aqui, é a de Heinrich Von Kleist, um homem conotado com o realismo alemão. Já não é clássico, ainda não é romântico; mas foi um inovador, um revolucionário, e também um poeta em crise. A propósito dele falaria Goethe, seu contemporâneo, na “confusão de sentimentos”. Na verdade, seria essa mesma confusão que iria dominar a sua obra e a sua vida. Porque para Kleist os sentimentos não se explicam, os sentimentos exprimem-se, manifestam-se, exteriorizam-se mas não se justificam. Normalmente eles nada têm a ver com a realidade, mas a razão está sempre neles. Homem de uma época de transição, Kleist pressente que uma transformação se está a dar e que a verdade está não no que se vê, no que se diz, mas no que as pessoas sentem. E só através dessa verdade que está no interior de cada um, é que se pode atingir a redenção.


Neste sublime “A Marquesa de O” (Grande Prémio do Júri do Festival de Cannes), toda a força da heroína está na sua honestidade, na convicção da sua inocência. Contra a lógica, contra todas as aparências, contra a pressão de todas as convenções. Essa profunda integridade moral de Julietta (Edith Clever) traduz-se na própria pujança física, que dela emana e que a transforma numa força viva (duplamente viva, dado o seu estado de gravidez) que contém uma razão, uma certeza, uma firmeza moral que se conseguem sobrepôr à mesquinhez débil da realidade ou às inexplicáveis situações que aparentemente negam a grandeza da sua alma.

Não interessa ao desenrolar da narrativa a história, o fait divers – uma nobre viúva encontra-se com todos os sintomas de uma gravidez sem saber como, e coloca um anúncio no jornal («a marquesa de O…, senhora  de excelente reputação, viúva, mãe de duas crianças com uma perfeita educação, faz saber que ficou grávida sem seu conhecimento; e que o pai da criança que vai dar à luz se deverá apresentar. Por razões de natureza familiar, encontra-se na disposição de com ele casar»). Recuamos uns meses. Vemos como no meio de um bombardeamento a marquesa adormece sob a acção de um soporífero, para apaziguar os nervos despedaçados pelos terríveis acontecimentos que se desenrolam à sua volta, ameaçando-a a ela e à sua família.

E vemos o jovem conde (Bruno Ganz, aqui com 35 anos, ainda nos inícios de uma brilhante carreira no cinema), todo de branco, como um anjo, salvá-la de um estupro quase certo para depois fazer a sua aparição na inocência daquele sono (um plano magnífico, que consegue sobrepôr-se à memória de todo o filme, e que se inspirou directamente no quadro “O Pesadelo”, de Henry Fuseli). Vemos e acreditamos – a história está contada. Mas é a partir daí que o romance de Kleist começa verdadeiramente. Ultrapassado o insólito episódio, começa o desenrolar dos aspectos sociais e psicológicos do caso.

Assim, a verdade aqui é a inocência da marquesa. Que para nós é evidente, visto que a testemunhámos, e que para ela não pode deixar de o ser, por razões óbvias. Mas tal evidência não aparece aos olhos de todos quantos a rodeiam. Para os pais (Peter Lühr e Edda Seippel) tudo não passa de uma farsa. Sentindo-se traídos na sua honra e amor-próprio, expulsam a impura do seio familiar, tentando ao mesmo tempo, mas em vão, retirar-lhe as duas filhas. Para o médico e para a parteira trata-se apenas de mais um caso que nada tem de especial - «tirando a Virgem Santissima, isso não aconteceu a nenhuma mulher no mundo; é bem evidente que a senhora marquesa tem as suas culpas, mas não é caso para desgraças. Afinal desgraça é morte de gente e aqui é uma nova vida que vem ao mundo».

Mas a heroína de Kleist recusa toda e qualquer mácula. Ela sabe-se inocente. Não aceita o drama dos pais nem a complacência discreta da parteira – ela apenas quer afirmar a sua verdade, a única que para ela tem um significado. Perante uma tal pureza de sentimentos, perante uma tal verdade interior, o autor tem apenas uma certeza: a de que não é por palavras, por metáforas ou por interpretações que ele vai dar razão à sua personagem, que ele vai provar a sua inocência. Para atingir tal objectivo ele só tem uma arma: a tradução no rosto e nos gestos de um estado de alma. E só uma tal pureza interior pode ter as manifestações exteriores a que assistimos na obra de Kleist. E a que assistimos no filme de Rohmer. Porque Rohmer compreendeu que só criando uma relação directa entre a história que narra e a época em que ela se desenrola podia manter a fidelidade à obra original.

Por isso Rohmer se apropria do romance de Kleist como se de um argumento se tratasse. Nele já se encontravam não só os diálogos, mas todas as indicações de como agiam e sentiam as personagens. Porque só estando dentro da época se podia compreender que uma tal situação conduzisse a todas aquelas emoções, cuja expressividade particular - um pudor a ocultar uma explosão interna dos sentimentos -  nos poderia parecer hoje excessiva e pouco realista. A preocupação de Rohmer é por isso dar-nos uma época; mas acima disso, é dar-nos o espírito de uma época. Uma época em que os preconceitos sociais, sobretudo em relação às mulheres, eram o pão de cada dia e onde os direitos e deveres eram impostos de acordo com as conveniências dos que detinham uma posição sócio-económica de elite.

Kleist e Rohmer têm perante este caso um mesmo pudor. Ambos nos transmitem os sinais exteriores de um estado de alma. Mas esses sinais são tão fortes que o traduzem muito mais do que se tivessem proposto analisá-lo ou dissecá-lo. A objectividade com que a situação é encarada é assim um disfarce da subjectividade com que ela é sentida. Um autor só se limita a relatar assim uma realidade quando ela é tão forte e lhe diz tanto respeito que o pudor o impede de lhe tocar, de a deturpar.

Rohmer tem toda a razão – respeitar um texto, palavra a palavra, e restituí-lo à sua época, é fazer dele um texto de hoje, um texto de todos os tempos. E basta ter a coragem de o fazer, basta ter essa intuição de que a verdade está no interior e que surge quando aprendemos a ver, basta ter essa objectividade de quem sente demasiado e lhe repugna o recurso ao subjectivo, para fazer um filme assim, belo e intemporal, como é “A Marquesa de O”.



segunda-feira, janeiro 20, 2014

CHARLY (1968)

CHARLY
Um filme de RALPH NELSON




Com Cliff Robertson, Claire Bloom, Lilia Skala, Leon Janney, Ruth White, etc.

EUA / 103 min / COR / 16X9 (2.35:1)

Estreia nos EUA a 23/9/1968
Estreia em MOÇAMBIQUE a 18/4/1970
(LM, Teatro Gil Vicente)

Charly Gordon: «I was wondering why the people who would never dream of laughing at a blind or a crippled man 
would laugh at a moron?»

Por uma vez a Academia de Hollywood foi mais justa do que os Globos de Ouro e atribuiu o Oscar de Actor Principal de 1968 a Cliff Robertson pelo seu extraordinário desempenho neste filme. Distinção ainda mais valorizada pela concorrência de peso existente nesse ano (Alan Bates por “The Fixer” e Peter O’Toole – que viria a ganhar o Globo de Ouro - por “The Lion in Winter”).  Aliás, não fosse a presença do actor e “Charly” nunca teria alcançado o relevo que abrilhantou a sua estreia. Trata-se, efectivamente, duma interpretação de uma vida e da qual Robertson soube apropriar-se em tempo útil, ao comprar os direitos do livro (“Flowers for Algernon”, de Daniel Keyes), em 1961, quando pela primeira vez interpretou a personagem de Charly Gordon na TV (que lhe valeu a nomeação para um Emmy na altura).


Muito embora Hollywood sempre tenha manifestado uma certa predilecção por actores em papeis de deficientes mentais (lembre-se Daniel Day-Lewis em “My Left Foot”, Robert De Niro em “Awakenings” ou Dustin Hoffman em “Rain Man”, só para citar os exemplos mais conhecidos), a verdade é que o Oscar atribuído a Cliff Robertson premeia a grande complexidade da personagem, cuja inteligência vai variando quase de cena para cena e por isso necessitando de ser visualizada nas mais pequenas nuances. O sentido de construção dramática do actor é fabuloso, expressando-se em sequências tão distintas como as humilhações impostas pelos colegas (a imobilidade na esquina, à espera dos primeiros flocos de neve, chega a ser pungente), a victória obtida sobre Algernon, o rato de laboratório (a manifestação de alegria e triunfo tudo contagia, extravasando para além do écran), o crescente desejo sexual pela professora (expresso subtilmente em pequenos olhares ou expressões faciais) ou ainda a tomada de consciência da inevitável reversibilidade do processo (que oscila entre a frieza da sequência do anfiteatro e o pesadelo da percepção de retorno ao antigo Charly Gordon).

Para além de Cliff Robertson o filme de Ralph Nelson queda-se pela mediania, sofrendo aqui e ali das inovações técnicas que se tentou introduzir naquela época. Estava-se em 1968, o movimento hippie ainda se mantinha na ribalta e a ordem geral era de mudança. Na vida de todos os dias, mas também nas artes e particularmente no cinema. Hoje, a mais de 50 anos de distância, a sequência da conversão de Charly aos prazeres comunitários soa um pouco a falso, qual objecto estranho no meio da narrativa. Os processos usados – colagem de imagens, divisão do écran – num efeito semi-psicadélico, também não ajudam muito. Uma pena que Nelson não se tenha preocupado em contar a história de Charly apenas socorrendo-se da genial interpretação de Robertson (nunca será demais evidenciá-la) e em vez disso tenha optado por alguns malabarismos de montagem.

CURIOSIDADES:

- Música de Ravi Shankar

- Na sequência do anfiteatro Charly Gordon dá algumas definições sobre tópicos da sociedade da época, que lhe vão sendo sugeridos pela assistência. Pelo seu inegável interesse transcrevem-se de seguida essas pequenas “sentenças”:

Modern science:
Charly Gordon: «Rampant technology, conscience by computer»

Modern art:
Charly Gordon: «Dispassionate draftsmen»

Foreign policy:
Charly Gordon: «Brave new weapons»

Today's youth:
Charly Gordon: «Joyless, guideless»

Today's religion:
Charly Gordon: «Preachment by popularity polls»

Standard of living:
Charly Gordon: «A TV in every room»

Education.
Charly Gordon: «A TV in every room»

The world's future:
Charly Gordon: «Brave new hates, brave new bombs, brave new wars»

The coming generation:
Charly Gordon: «Test-tube conception, laboratory birth, TV education, brave new dreams, brave new hates, brave new wars; a beautifully purposeless process of society suicide»




LOBBY CARDS:

sexta-feira, janeiro 17, 2014

KATINKA E BERGMAN

«INGMAR BERGMAN FOI O MAIOR REALIZADOR 
COM QUEM TRABALHEI»
Katinka Faragó

Suécia, 1954. Katinka Faragó tinha 18 anos, havia acabado o liceu e ia almoçar com os seus professores, quando recebeu um telefonema dos estúdios onde trabalhava como anotadora. «Fui ver o director e ele disse-me: Agora vai trabalhar com o Sr. Bergman. Respondi: Eu? Porquê eu? Porque mais ninguém quer, retorquiu ele.» Foi desta maneira que Katinka começou uma relação profissional e de amizade com Ingmar Bergman que duraria 30 anos, e a levaria de anotadora a directora de produção e produtora do mestre sueco. «Tudo começou em 1954 com “Sonhos de Mulheres”. Sobrevivi à rodagem, não sei como, ele gostou de mim, porque eu não falava muito – estava cheia de medo! – e levou-me com ele no ano seguinte para outro estúdio, onde fizemos “Sorrisos de Uma Noite de Verão”. E fiquei com o Ingmar 30 anos», concluiu ela ao DN, numa conversa telefónica feita a propósito do “Ciclo Ingmar Bergman”, a decorrer no Espaço Nimas, em Lisboa.


Quando Katinka começou a colaborar com Bergman, o realizador era apenas conhecido na Suécia. «Foi só após “Sorrisos de Uma Noite de Verão” ter sido premiado em Cannes que a fama dele começou. Ele era e não era uma pessoa difícil com quem se trabalhar. Era muito exigente, mas se sabia que tínhamos feito o melhor que podíamos, era capaz de nos perdoar os erros», conta. «Recordo-me de que certo dia, na rodagem de “Morangos Silvestres”, ele começou a gritar comigo e eu não tinha feito nada. À tarde, chamou-me ao hotel e disse-me: Desculpa, peço desculpa, convido-te para jantar. E vou eu e respondo-lhe: Não! Eu era durona, tinha vinte e poucos anos e não fui mesmo jantar com ele! (risos). Mais tarde, em 1975, quando já era empregada dele, as nossas relações tornaram-se mais pessoais, ficámos amigos. Já não tinha medo dele, era mais velha e já nos conhecíamos muito bem.»


Bergman gostava de trabalhar sempre com as mesmas pessoas, actores e técnicos, «por uma razão práctica. Quando conhecemos alguém bem, é mais fácil trabalhar com ele. E nós já nos conhecíamos todos uns aos outros, sabíamos o que cada um tinha de fazer, ele sabia como é que nós trabalhávamos e nós o que ele queria, e por isso era tudo mais fácil. Mas apesar de nos chamarem “A Família Bergman”, não éramos uma família, éramos uma equipa profissional», explica Katinka. Mas a ideia de um Ingmar Bergman aclamado na Suécia, tal como no resto do mundo, é errada.


«As pessoas na Suécia disseram muitas coisas más sobre este pobre homem, que não são verdade. Era o realizador sueco mais talentoso de todos e foi muito generoso para com outros colegas seus. Mas o talento nem sempre é popular. Havia muitas invejas e muito ciúme. Quando ele fez “Lágrimas e Suspiros”, em 1972, pediu dinheiro ao Instituto Sueco de Cinema, pela primeira vez, porque todos os seus filmes davam lucro. E a imprensa ficou escandalizada por Ingmar Bergman ter pedido dinheiro ao Estado, e o Estado lho ter dado. A imprensa esteve contra ele desde o início, diziam que fazia “filmes de estudante”. Após “Sorrisos de Uma Noite de Verão”, nunca mais ninguém disse isso. Mas havia uma suspeição contra ele», conta.



“Sorrisos de Uma Noite de Verão”, “Luz de Inverno” ou “Fanny e Alexandre” estão entre os filmes de Ingmar Bergman que Katinka Faragó prefere. «Trabalhar com o Ingmar era muito igual. Ele estava sempre muito bem preparado, fazia os trabalhos de casa na noite anterior. E odiava a improvisação. Gostava de controlar tudo. Podia estar atrasado em relação ao plano de filmagens, mas vinha ao meu escritório e dizia: Não te preocupes, amanhã de manhã fica tudo em ordem outra vez. E no dia seguinte filmava umas cenas magníficas e ficava tudo acertado outra vez. Ele era muito profissional e tinha um domínio acabado da técnica.


Quando Ingmar Bergman decidiu renunciar ao cinema, após “Fanny e Alexandre” (1982), fiquei muito triste, porque estávamos todos muito orgulhosos com este filme, que se pensava que não poderia ser feito na Suécia por não termos os meios, os estúdios, o dinheiro», conta a antiga colaboradora do cineasta. «Todos pensávamos que íamos rodar a seguir “As Aventuras de Hoffmann”, outro filme grande, a Gaumont até já tinha o dinheiro. Mas ele não aguentou a pressão de estar no auge da fama, de ser tão talentoso e tão bom cineasta, de pensar que muitos estavam sempre à espera que ele caísse lá do alto. Ter de ser muito bom todos os dias foi muito mau para os nervos dele. E após o telefilme “Depois do Ensaio”, em 1984, ele fechou a produtora onde trabalhávamos havia dez anos. Foi muito triste. Trabalhei com muitos outros realizadores, como Andrei Tarkovsky e com quase todso os grandes realizadores suecos de então, como Mai Zetterling ou Alf Sjöberg», recorda Katinka Faragó. «Mas o Ingmar está num lugar único, só dele. Era o maior de todos.»
(Eurico de Barros in Diário de Notícias, 16/11/2014)

quarta-feira, janeiro 15, 2014

O UNIVERSO DE BERGMAN


ANDERSSON, BIBI

Na família das actrizes de Bergman, Bibi Andersson representa, sobretudo, a força da carne. De facto, depois de ter desempenhado uma série de pequenos papéis no cinema do autor durante a segunda metade da década de 50, Andersson cedo passou a simbolizar o poder magnético da atracção e da tentação sexual no cinema do sueco. Em termos bíblicos, ela é a mulher que – sob o fascínio da serpente – convida o homem ao pecado (assim foram a Eva Vergerus e a Katarina Egerman que respectivamente interpretou em “Paixão”, de 1969, e em “Cenas da Vida Conjugal”, de 1973). Não será pois por acaso que, em “O Olho do Diabo” (1960), ela dá corpo à mulher que seduz o mais inveterado dos sedutores: Don Juan.

BJÖRNSTRAND, GUNNAR

Foi um dos actores-fétiche de Bergman com quem trabalhou desde a pré-história do cineasta (“Tortura”, em 1944, argumento de Bergman, realização de Alf Sjöberg) até a um papelinho, só uma vénia final, em “Fanny e Alexandre” (1982). Central na obra do cineasta, sobretudo nos anos 50 e 60, foi o empertigado advogado Egerman, com um casamento por consumar e uma ex-amante que faz dele o que quer (“Sorrisos de Uma Noite de Verão”), o racionalista escudeiro Jöns que voltou das Cruzadas descrente de Deus e da bondade dos pregadores (“O Sétimo Sêlo”), o frio Evald, inepto nas relações sentimentais (“Morangos Silvestres”), o pastor Ericsson que prega à sua pequena comunidade uma verdade em que começa a não acreditar (“Luz de Inverno”) – isto para citarmos apenas alguns papéis mais significativos.

JOSEPHSON, ERLAND

Amigo de longa data de Bergman (que conheceu nos anos 30, quando trabalharam juntos no teatro), Erland Josephson foi – de entre os actores que habitam o panteão bergmaniano – o que mais cedo começou a colaborar com o cineasta (em “Chove Sobre o Nosso Amor”, de 1946), mas também o que mais tempo demorou a impor-se como uma figura central no seu universo fílmico. Com efeito, esse estatuto haveria apenas de ser obtido por Josephson no início da década de 70, quando – sucedendo na função a Max Von Sydow – se assumiu como o último alter-ego de Bergman, o corpo onde o velho cineasta projectou o incomunicável isolamento de um homem contemporâneo que é incapaz de se relacionar com o seu próximo (vejam-se os papéis interpretados em “Cenas da Vida Conjugal”, de 1973, “Depois do Ensaio”, de 1984 ou “Saraband”, de 2003).

KULLE, JARL

Ainda que a sua passagem pelo cinema de Bergman tenha sido breve (participou apenas como actor em cinco filmes do cineasta), Jarl Kulle encarnou, nesse quadro, um tipo bem específico de figura masculina: o do sedutor (assim foi em “Segredos de Mulheres”, de 1952, e – trinta anos depois – em “Fanny e Alexandre”). De facto, nas suas comédias sexuais, o cineasta estabeleceu por vezes o corpo de Kulle como o centro de um jogo de volúpia sem fronteiras, onde a força do sexo fraco leva quase sempre a melhor. Para percebê-lo, basta ver “O Olho do Diabo” (1960), onde Kulle interpreta uma figura literária que o cineasta revisitou amiúde: a de Don Juan.

NYKVIST, SVEN

Trabalhou pela primeira vez com ele em “Noite de Circo” (1953), tornou para “A Fonte da Virgem” (1960), mas foi a partir de “Em Busca da Verdade” (1961), que se tornou o invariável director de fotografia de Bergman. Tão exímio no preto e branco (nunca nos esqueceremos de “O Silêncio”) como na cor (superlativo em “Lágrimas e Suspiros”, com que ganhou um Óscar, como em “Fanny e Alexandre”, com que ganhou outro), Sven Nykvist foi um parceiro criativo tão íntimo e fiel que Bergman, nas suas memórias, lamenta saber que nunca mais voltará a trabalhar com ele. Usava pouquíssimos projectores, era de uma enorme simplicidade de meios, e os resultados, assombrosos: é possível fotografar melhor do que em “A Máscara”?

THULIN, INGRID

Na assombrosa galeria de mulheres que são os filmes de Bergman, servida por um naipe de actrizes fiel e duradouro, Ingrid Thulin tem um lugar de destaque. O primeiro filme em que trabalharam juntos foi “Morangos Silvestres” (1957), onde faz a amargurada nora do professor Borg, em viagem para um possível divórcio. Será, mais tarde, a mulher sem esperança, desgostada da sua própria sexualidade quando não por ela abominada (em “O Silêncio” falará do «cheiro horroroso do esperma», do «cheiro a peixe podre» que o sexo exala; em “Lágrimas e Suspiros” mutilará a própria vulva com um pedaço de vidro partido, numa das cenas mais abissais de todo o cinema de Bergman). Despediu-se do cineasta com o papel de uma actriz alcoólica e gasta, envelhecida, em “Depois do Ensaio” (1984). Crueldade até ao fim.

ULLMANN, LIV

No cinema de Bergman (e por oposição à sensualidade afirmativa de Bibi Andersson) ela é a expressão consumada da fragilidade humana, um rosto sempre em vias de colapsar, que se mantém em equilíbrio precário entre duas emoções de sinal contrário, transformando-se assim num “ringue de boxe de sensações” (Deleuze) cujos micro movimentos o cineasta procura surpreender em grande plano. E, se é verdade que Ullmann chegou tardiamente ao cinema de Bergman (apenas em “A Máscara”, de 1966), também é verdade que, ao longo da fase final da carreira do cineasta, ela se constituiu como a testemunha preferencial da crueldade masculina (veja-se, por exemplo, a cena de “Lágrimas e Suspiros” em que ela se deixa humilhar por Erland Josephson) e, por essa via, dos fantasmas que habitam as relações conjugais.

VON SYDOW, MAX

A cena mais célebre de todo o cinema de Bergman tornou-se um ícone: um cavaleiro (Max Von Sydow) joga xadrez com a Morte, com o mar ao fundo e um céu nublado. Trata-se de atrasar o inevitável; o cavaleiro, acabado de chegar das Cruzadas onde não viu obra de Deus, precisa de saber mais, antes de se entregar ao desconhecido. O cavaleiro chegará a tentar fazer batota – mas a Morte joga bem e tem memória. Não tem é noção do que há do outro lado, sequer se há um outro lado ou apenas o oblívio. “O Sétimo Sêlo” foi, em 1957, um sucesso internacional (Prémio do Júri, em Cannes), firmou Bergman e pôs no mapa um dos rostos que iríamos sempre associar ao seu cinema: Max Von Sydow. Fizeram mais dez filmes juntos, depois o actor partiu para se tornar a vedeta internacional que ainda por aí anda.

(Vasco Marques e Jorge Leitão Ramos in revista Atual do semanário Expresso de 11/1/2014)