segunda-feira, setembro 28, 2015

THEY SHOOT HORSES, DON'T THEY? (1969)

OS CAVALOS TAMBÉM SE ABATEM
Um filme de SYDNEY POLLACK



Com Jane Fonda, Michael Sarrazin, Susannah York, Gig Young, Red Buttons, Bonnie Bedelia, Michael Conrad, Bruce Dern, Al Lewis, Robert Fields, Allyn Ann McLerie

EUA / 129 min / COR / 
16X9 (2.35:1)


Estreia nos EUA a 10/12/1969 (New York)
Estreia em Moçambique a 26/11/1971 (LM, cinema Infante)


Rocky: «Yowza! Yowza! Yowza!»

Nos tempos obscuros da Grande Depressão, uma nova moda nacional nasceu na América – as maratonas de dança. De duração ilimitada, o objectivo último era a atribuição de prémios aos mais resistentes - valores irrisórios quando comparados com os ganhos publicitários obtidos pelos promotores de tais “espectáculos”. Esta primeira grande obra de Sydney Pollack pega numa dessas maratonas para denunciar o “american dream of life” e devolver-nos o clima de tragédia que constituía a sobrevivência durante a crise económica dos anos 30 nos EUA. Estamos num pavilhão localizado numa qualquer praia californiana, no interior do qual uma imensa pista de dança vai servir de palco às esperanças ilusórias de uma centena de pares que se preparam para resisistir estoicamente a longas semanas de sacrifício, físico e psicológico, no intuito de alcançarem os 1500 dólares anunciados pela organização.


O filme irá acompanhar em especial quatro desses pares: Gloria (Jane Fonda), uma jovem cínica e amarga, vinda de várias experiências infelizes, que à última hora tem de substituir o seu par (desclassificado por indícios de doença) por Robert (Michael Sarrazin), um jovem desconhecido que se encontrava no local por acaso e simples curiosidade; Alice (Suzannah York), uma inglesa aspirante a actriz cujo maior desejo é vencer em Hollywood e o seu companheiro Joel (Robert Fields) que partilha das mesmas aspirações; Sailor (Red Buttons), um veterano da Grande Guerra com a sua parceira Shirl (Allyn Ann McLerie); e um casal recém-casado de parcos recursos e à espera do primeiro filho – Ruby (Bonnie Bedelia) e James (Bruce Dern). A presidir à maratona está Rocky (Gig Young), um mestre de cerimónias sem escrúpulos que não hesita em usar todos os meios ao seu alcance para que o espectáculo desperte o interesse de um público voraz, à procura de desgraças superiores às suas, para assim se sentir confortado na sua miserabilidade.

Fazendo parte de uma vaga de jovens directores que se iniciaram na televisão em princípios dos anos 60, Sydney Pollack insere-se numa classe particular de cineastas cujo estilo se situa a meio-caminho entre o classicismo reinante nos grandes estúdios e um novo realismo que por vezes faz lembrar o documentário. À semelhança de um Frankenheimer ou de um Coppola, Pollack foi um dos responsáveis pela abertura de vias a toda uma geração de novos realizadores que se viriam a afirmar no decorrer das décadas de 70 e 80: Spielberg, Lucas, Scorsese ou De Palma, por exemplo. Tendo começado a sua carreira no grande écran por um thriller psicológico com Sidney Poitier e Anne Bancroft (“The Slender Thread”) em 1965, é com o filme seguinte, “This Property Is Condemned” (1966), um argumento assinado por Coppola e baseado numa peça de Tennessee Wiliams, que Pollack se revela como um cineasta bastante promissor. Foi também o início de uma grande amizade com Robert Redford, actor que participaria em mais sete dos seus filmes.


O período da Grande Depressão foi tratado de variadissimas formas no cinema, mas sempre se destacou (Chaplin à parte) o chamado filme de gangsters. Desde “Little Caesar”, em 1930, até “Bonnie & Clyde”, em 1967, os exemplos são ricos e variados. Com “They Shoot Horses, Don’t They?”, Pollack aborda esses anos como um autêntico retrato da sociedade da altura. Baseado num livro de um escritor norte-americano injustamente menosprezado, Horace McCoy, o argumento, brilhante (assinado por James Poe e Robert E. Thompson), centraliza quase toda a acção num único décor (a pista de dança), sem que isso belisque minimamente o interesse do espectador.



Pelo contrário, a emoção está sempre presente, fruto de uma montagem precisa e minuciosa (assinada por Fredric Steinkamp, que a partir deste filme colaboraria muitas vezes com Pollack), nomeadamente nas diversas sequências do “derby”, onde atinge um raro virtuosismo ao conseguir integrar o espectador na dor e angústia daquela louca procissão de desesperados. De salientar ainda a utilização inteligente de flashbacks e flashforwards na construção narrativa e que ao longo do filme vão anunciando a sua conclusão trágica, onde finalmente a expressão que dá título ao filme se revela em toda a sua crueza – «They shoot horses, don’t they?»




Pollack revela aqui aquela que seria uma das suas imagens de marca – a brilhante direcção de actores. Susannah York (nomeada para o Globo de Ouro e Oscar de Actriz Secundária e vencedora do BAFTA inglês para a mesma categoria), Red Buttons (nomeado para o Globo de Ouro de Actor Secundário), Michael Sarrazin (nomeado para o BAFTA da revelação mais promissora), Bruce Dern ou Bonnie Bedelia, constroem todos eles grandes personagens que irão ficar para sempre nas nossas memórias. Mas o par de cerejas em cima do bolo são efectivamente Gig Young e Jane Fonda. Young arrebataria quer o Oscar quer o Globo de Ouro para o melhor Actor Secundário, tendo ainda sido nomeado para o correspondente BAFTA.


Jane Fonda liberta-se, com este filme, da sua imagem de boneca sexual (reforçada pelo sucesso de “Barbarella” no ano imediatamente anterior) provando, sem margens para dúvidas, que estava ali uma digna sucessora do pai Henry. Teve três nomeações para Melhor Actriz Principal, uma para os Oscars, outra para os Globos de Ouros e ainda uma terceira para o BAFTA. Perderia para Maggie Smith nos primeiros (alguém se lembra do filme “The Prime of Miss Jean Brodie” ???) e para Geneviève Bujold (“Anne of The Thousand Days”) nos segundos. Quanto ao prémio inglês, o mesmo seria ganho por Katharine Ross (“Butch Cassidy & The Sundance Kid” e “Tell Them Willie Boy Is Here”). Jane Fonda seria no entanto distinguida pelas Associações de críticos de Nova Iorque e Kansas City como a Melhor Actriz de 1969.

CURIOSIDADES:

- Foi o próprio Sydney Pollack quem se encarregou de filmar alguns dos planos constantes nas corridas dos concorrentes. Para isso calçou um par de patins e misturou-se entre os pares que evoluiam à volta da pista

- “They Shoot Horses, Don’t They?” teve 9 nomeações para os Oscars sem conter contudo a categoria de Melhor Filme: Realizador, Argumento-Adaptado, Montagem, Música, Guarda-Roupa, Direcção Artística e Cenários, Actriz Principal (Jane Fonda), Actriz Secundária (Susannah York) e Actor Secundário (Gig Young). Como acima já se disse, este foi o único Oscar conquistado pelo filme.

- A banda sonora está recheada de canções dos anos 30, incluindo algumas escritas propositadamente para o filme por John Green, conferindo assim uma atmosfera de autenticidade. Os temas incluem "Easy Come, Easy Go," "I Cover the Waterfront," "Out of Nowhere" (Edward Heyman, Green), "Coquette" (Gus Kahn, Carmen Lombardo, Green), "Sweet Sue Just You" (Will J. Harris, Victor Young), "I'm Yours" (E.Y. Harburg), "Brother, Can You Spare a Dime" (Harburg, Jay Gorney), "Paradise" (Gordon Clifford, Nacio Herb Brown), "The Japanese Sandman" (Raymond B. Egan, Richard A. Whiting), "Between the Devil and the Deep Blue Sea" (Ted Koehler, Harold Arlen), "The Best Things in Life Are Free" (B.G. De Sylva, Lew Brown, Ray Henderon), "California, Here I Come" (Al Jolsen, De Sylva, Joseph Meyer), "Body and Soul" (Heyman, Robert Sour, Frank Eyton, Green), "I Found a Million Dollar Baby" (Billy Rose, Mort Dixon, Harry Warren), and "By the Beautiful Sea”.

quinta-feira, setembro 24, 2015

LE LOCATAIRE (1976)

THE TENANT / O INQUILINO
Um filme de ROMAN POLANSKI

Com Roman Polanski, Isabelle Adjani, Melvyn Douglas, Shelley Winters, Jo Van Fleet, Lila Kedrova, Claude Piéplu, Rufus

FRANÇA / 126 min / COR / 
16X9 (1.66:1)

Estreia em FRANÇA em Maio de 1976 (Festival de Cannes)
Estreia em PORTUGAL em Novembro de 1976 
(Lisboa, Cinema Mundial)



Trelkovsky: «If you cut off my head, what would I say...
Me and my head, or me and my body?
What right has my head to call itself me?»

“Le Locataire” encerra uma trilogia de Roman Polanski em que o terror psicológico encontra as suas raízes no espaço claustrofóbico de um apartamento. Tal como em “Repulsion” (1965) e em “Rosemary’s Baby” (1968), assiste-se aqui à lenta descida aos infernos de um personagem que se vai desligando da realidade entre quatro paredes. Quer seja em Londres, Nova Iorque ou Paris, o apartamento é para Polanski o berço ideal de todas as nevroses paranoicas. Baseado num romance de Roland Topor, a história adquire alguns contornos auto-biográficos atendendo a que Trelkovsky, o protagonista principal (incarnado pelo próprio Polanski, mas sem qualquer menção nos créditos) é um tímido polaco recentemente chegado a Paris, à procura de duas assoalhadas para viver.


“Le Locataire” é uma obra perfeita no aspecto formal e que consegue desenvolver dentro do espectador um sentimento de inquietação crescente até ao clímax final. Sem grandes dúvidas, estamos diante de um dos pontos mais altos da filmografia de Polanski - ou a temática não fosse uma vez mais o enclausuramento do personagem no seu trágico destino – que reúne todo o seu pensamento, as obsessões, os fantasmas, o pavor que o cinema deste cineasta deixa entrever, por entre insinuações e silêncios. O beco (designação de um seu filme de 1966) é na verdade o cenário por excelência de Polanski - o lugar sem saída para onde são lentamente empurrados os seus heróis amedrontados, tímidos e sensíveis.


Trelkovsky, empregado de escritório, consegue finalmente alugar o apartamento desejado, depois de saber que a antiga inquilina se suicidara, saltando da janela do seu quarto para o pátio das traseiras. O proprietário do imóvel, um certo senhor Zy (Melvyn Douglas), aceita alugar-lhe o apartamento mas com condições previamente definidas. Casa séria e respeitável, não são permitidas visitas femininas, não se toleram desacatos, crianças e animais domésticos é melhor não os ter, o silêncio é de ouro. O tímido Trelkovsky a tudo diz que sim, confessando tratar-se de uma pessoa pacata que a última coisa que pretende é ter conflitos com os vizinhos.


Pouco depois Trelkosky visita a suicidária no hospital, onde trava conhecimento com Stella (Isabelle Adjani), uma amiga da moribunda. Junto à cama, são ambos surpreendidos por um grito lancinante que Simone Choule (assim se chama a vítima) lança na sua direcção, sem qualquer razão aparente. Trelkovsky tenta reconfortar Stella e vão a um cinema local ver um filme de artes marciais com Bruce Lee (“Enter The Dragon), durante o qual se estabelece uma ligação sexual entre os dois. No dia seguinte, ao telefonar para o hospital, Trelkosky é informado da morte de Simone.


Aos poucos o nosso inquilino vai-se começando a familiarizar com as redondezas da nova residência. No café da frente dão-lhe conta dos hábitos de Simone e servem-lhe o leite com chocolate que ela bebia todas as manhãs naquele mesmo local, naquela mesma mesa. E quando Trelkovsky pede os seus cigarros preferidos (Gauloises) não os há, vendem-lhe Malboro, a marca que Simone fumava. A história do “Inquilino” de Polanski afasta-se do tradicional filme de terror (em que a morte é sempre o medo principal), confundindo-se antes com a história da perda progressiva de uma identidade (com a loucura no horizonte), uma transformação dramática que Franz Kafka já descrevera em “A Metamorfose”, obra que terá influenciado seguramente quer a imaginação de Roland Topor, ao escrever “Le Locataire Chimerique”, quer a mestria de Polanski ao dar-lhe vida no écran.


Acatando primeiramente as condições impostas para o apartamento, depois os cigarros e o leite com chocolate que lhe servem contra a sua vontade, e de um modo geral todas as convenções e regras estabelecidas à sua volta, Trelkovsky vai lentamente aceitando o seu destino, um destino a que o ambiente irrespirável circundante condena os mais fracos como ele. É o cerco que se aperta (como as mãos que estrangulam), a ameaça que se agiganta, os rostos que se reproduzem, a animosidade que progride, a agressão que se pressente por detrás de cada olhar desconhecido e já inimigo. Tentando libertar-se de todas as pressões, Trelkovsky vai-se isolando cada vez mais, refugiando-se por detrás do rosto, da silhueta, dos maneirismos de quem o precedeu naquele espaço fechado – e sofrendo as mesmas ameaças, envolvendo-se no mesmo pesadelo quotidiano, caminhando inexoravelmente para um fim idêntico.


“Le Locataire” corporiza essas ameaças em nós, espectadores, lembrando-nos das nossas próprias angústias ao personalizar um estado de espírito colectivo que todos sentimos, uma vez por outra, na agressividade latente que nos circunda nas nossas vidas de todos os dias. Razão de ser de grande parte das esquizofrenias de graus variados que a mesquinhês engendra no seio de uma civilização altamente egoísta e competitiva, onde o homem vacila na procura de um lugar e do horizonte claro de um destino a cumprir em plenitude.


Retratista admirável desses temores secretos que atormentam o cidadão normal, Polanski revela-se simultaneamente um cineasta de um realismo de décors e de figuras inultrapassável e um autor particularmente atento à realidade que se esconde para lá das aparências. O fantástico que se respira numa obra como “Le Locataire” é um fantástico que parte de dados absolutamente concretos. O segredo de Polanski é a forma como os manipula, como os interliga uns aos outros, como, em meia dúzia de planos, instala o horror e sabiamente o prolonga até à exaustão, à loucura, ao suicídio. Um suicídio que mimeticamente se imita, um suicídio que se reedita, que se reforça, que encontra forças para recomeçar tudo de novo.


Na adaptação do romance de Topor, Polanski contou com a preciosa colaboração de um seu auxiliar de sempre, Gérard Brach (falecido em 2006, com 79 anos). Ambos reconstruiram o pesadelo da história com a voluptuosidade mórbida de um fabulista requintado. Na cinematografia um mestre, Sven Nykvist (também falecido em 2006, com 83 anos), que neste filme usou pela primeira vez uma câmara dirigida à distância (a Louma IV), que permite filmar em espaços muito reduzidos. Philippe Sarde assinou a partitura musical (além de protagonizar um pequeno cameo – é o homem que se senta atrás de Trelkovsky e Stella no cinema) inovando também através da utilização de uma harmónica de vidro (instrumento de difícil execução e para o qual Mozart compôs algumas peças no seu tempo). Enfim, e não falando já no naipe de excelentes actores que povoam o filme, poder-se-á dizer que Polanski soube rodear-se de muito boas companhias para o seu “Inquilino”. O resultado é brilhante.


Com “Le Locataire” Polanski evita qualquer efeito espectacular, que aliás não se coadunaria com o aspecto kafkiano da obra. Não existem monstros, algozes ou rios de sangue, todos os clichés do género de terror se encontram ausentes. Mas em contrapartida (ou por causa disso mesmo), o cineasta dá-nos um grande filme, provavelmente um dos seus melhores de sempre (pelo menos o mais assustador), servindo-se de pequenos detalhes (os planos da casa de banho tornaram-se numa imagem de marca do filme) num ambiente onde habita o terror mais íntimo e surrealista. “Le Locataire”, ao longo dos seus anos de existência, nunca deixou de me causar o mais genuíno dos prazeres cinéfilos, independentemente das muitas vezes a que a ele já assisti. Incluindo aquele último plano de gelar o sangue, responsável por tantos pesadelos, mesmo entre os menos sugestionáveis dos espectadores.













LOBBY CARDS:


NOTA: Vale a pena dar uma olhada no texto que o Sérgio Vaz escreveu sobre este filme no seu blogue, "50 Anos de Filmes"

segunda-feira, setembro 21, 2015

BLACKBOARD JUNGLE (1955)

SEMENTES DE VIOLÊNCIA
Um filme de RICHARD BROOKS


Com Glenn Ford, Anne Francis, Sidney Poitier, Vic Morrow, Louis Calhern, Margaret Hayes, John Hoyt, Richard Kiley, Emile Meyer

EUA / 101 min / PB / 4X3 (1.33:1)

Estreia nos EUA: NY, 19/3/1955 
Estreia em PORTUGAL: Lisboa, 29/11/1955 (cinemas São Luís e Alvalade)

Richard Dadier: «Yeah, I've been beaten up, but I'm not beaten. 
I'm not beaten, and I'm not quittin'»

“Blackboard Jungle”, filme importante a vários níveis, ficará sobretudo conotado com o facto de ter contribuído, decisivamente, para a popularidade do Rock ‘n’ Roll na América e, a partir daí, em todo o mundo. Tudo por causa de uma música electrizante que abria e fechava o filme: “Rock Around The Clock”, interpretada por Bill Haley & The Comets. O tema, gravado em 12 de Abril de 1954, saltava para os charts americanos um ano depois, a 14 de Maio de 1955, onde permaneceria 24 semanas - 8 delas em 1º lugar -  e com vendas superiores a 25 milhões de cópias. Um êxito fabuloso para a época, alcançado em grande parte por causa do impacto do filme, estreado dois meses antes. Até no Portugal cinzento dos anos 50 o filme causou sensação, tendo-se estreado simultâneamente nos cinemas S. Luís e Alvalade a 29 de Novembro de 1955, com o título de “Sementes de Violência”. Por curiosidade, transcreve-se de seguida o texto que apareceu no dia seguinte, no jornal “Diário Popular”:



«A atmosfera de interesse criada à volta deste filme com a recordação do incidente diplomático que ele originou na Bienal de Veneza, deu à estreia de ontem uma expectativa que, na realidade, não foi iludida, pois o público que aplaudiu, no final, viu um bom espectáculo de cinema. “Sementes de Violância” (“Blackboard Jungle”) é um filme corajoso e duro. O problema (comum a todos os países que viveram a guerra, mas mais sensível na América) da delinquência infantil, bem explicado por um dos personagens quando diz “os rapazes criaram-se de qualquer maneira, com os pais na guerra e as mães na fábrica”, é tratado com o vigor de um libelo e a enternecedora emoção de uma mensagem de esperança: a de que os jovens só são maus quando não se compreendem os seus problemas e não se coaduna a sua educação com o objectivo de fazer sobressair os seus sentimentos puros e de os afastar das más influências. O filme serve também para exaltar a missão dos professores, mal pagos em toda a parte, até na grande e rica república americana. Filme de tese, “Sementes de Violência” adquire, no entanto, tal intensidade dramática que o espectador é subjugado pelo desenvolvimento da acção de princípio ao fim. A realização, de Richard Brooks, é notável. Sem sobressaltos, sem artifícios, a história é contada com uma violência extraordinária, mas com uma emoção sempre presente em todas as imagens. A interpretação de Glenn Ford é bem um exemplo de como deve representar-se em Cinema. Mas o numeroso grupo de actores que o acompanha é outro dos muitos motivos de êxito. É também de assinalar, com relevo, a adaptação musical, em que figuram algumas belas canções, muito bem tocadas e cantadas. Bons complementos. Um programa que se recomenda.»



Sem dúvida uma curiosa crítica da época, onde ficamos a saber que os professores já eram muito mal pagos, um pouco por todo o lado. De assinalar também o modo cândido como o autor descreve a música. Três semanas depois, o mesmo “Diário Popular” publicou no dia 19 de Dezembro uma pequena notícia: «As músicas de “Blackboard Junge” (“Sementes de Violência”) causaram um delírio junto dos apreciadores da música moderna. A tal ponto, que a primeira remessa para Portugal é da ordem dos 1.500 discos e que já se encontra vendida, mesmo antes de chegar. Trata-se de “Rock Around The Clock” (gravação Decca), “Invention For Guitar And Trumpet” (gravação Capitol) e “The Jazz Me Blues” (gravação Columbia).»



Salários dos professores à parte (algo que, ao que parece, não muda com o passar dos anos), “Blackboard Jungle” é um filme datado, mas por isso mesmo bem representativo das mentalidades, usos e costumes dos anos 50. O argumento foi baseado num romance do escritor norte-americano Evan Hunter (pseudónimo adoptado em 1952 por Salvatore Albert Lombino, nascido em 1926 e falecido em 2005. O escritor ficaria ainda mais conhecido como Ed McBain, que foi outro pseudónimo, adoptado em 1956 e usado para os muitos livros policiais que escreveu a partir daí). O romance, que se revelaria um grande sucesso de vendas, mesmo antes de ser transposto para o grande écran, dá-nos conta de uma realidade sociológica, cuja violência assenta basicamente em relações onde as diferenças rácicas ditam as suas leis. Nisso, e também na falta de meios económicos das classes mais miserabilistas.



Filme generoso e idealista do começo da carreira de Richard Brooks, “Blackboard Jungle” denota ainda alguma ingenuidade nos seus propósitos, nomeadamente a confiança nos valores da democracia americana. Era ainda um Brooks fiel ao sonho americano (do qual se veio a desencantar posteriormente), que dizia quando realizava este filme: «A América é um milhão de coisas e esta é uma delas. Uma coisa pequena. Se está mal corrigimo-la.» Mas, apesar de tudo, Brooks denotou alguma coragem ao realizar este filme, expondo publicamente uma chaga social dos Estados Unidos. Tal temeridade valeu-lhe alguns dissabores na altura, nomeadamente a acusação de ser anti-patriótico. Como referido atrás, "Blackboard Jungle" é hoje um filme datado, apesar de continuar a ter um encanto muito especial. Recheado de magníficas interpretações (foi a faísca que despolotou a longa carreira de Sidney Poitier), é um verdadeiro clássico do género, e as suas influências ainda hoje se fazem sentir.

CURIOSIDADES:

- O single “Rock Around The Clock” pertencia à colecção de discos de Peter Ford, filho de Glenn Ford, tendo por isso sido ouvida casualmente por Richard Brooks, que a escolheu imediatamente para o filme. Sabe-se que muitas das filmagens foram feitas ao som do célebre tema.


- O embaixador americano em Itália, Clare Boothe Luce, proibiu a apresentação do filme no Festival de Veneza, por considerar o mesmo pernicioso à juventude.

- Sidney Poitier, na altura com 28 anos, viria a protagonizar, 12 anos depois, “To Sir With Love” (1967), filme onde desempenha o papel de um professor com problemas de relacionamento com os seus alunos.

- Na altura da estreia, em Inglaterra, o filme foi censurado em cerca de 6 minutos (a cena completa do confronto entre Dadier and Artie), o que lhe retirou todo o clímax final.

- Richard Kiley, que desempenha o papel do professor Joshua Edwards, a quem os alunos dão cabo da colecção de discos, fartou-se de receber, durante toda a sua vida (viria a falecer em 1999), muitos discos antigos de Jazz, que fans do filme lhe enviavam.





quarta-feira, setembro 16, 2015

BUÑUEL POR BUÑUEL

“A Morte Cansada”, de Fritz Lang, foi para mim uma revelação. Quis fazer cinema e até 1927 ou 1928 interessei-me muito pelo meio. Em Madrid, apresentei uma sessão de cinema de vanguarda francês (que na altura não chegava a Espanha) e tive um êxito enorme. No dia seguinte fui chamado por Ortega y Gasset, que me disse: «Se eu fosse jovem, dedicava-me ao cinema.»
Quase todos os meus filmes têm a frustração como tema. Burgueses que não podem saír de uma casa, gente que quer jantar e é sempre impedida, um tipo que deseja assassinar mas cujos crimes falham… É a distância entre o desejo e a realidade. Tentar e fracassar. Interessa-me sempre ver como as circunstâncias vão fazer mudar as personagens. É como metê-las numa misturadora. Há ocasiões em que se pode comprovar que gente muito inteligente e civilizada, perante uma situação de perigo comum, torna-se brutal, animaliza-se. Alguns melhoram com a experiência, outros pioram. Desconfio da razão e da cultura. No nosso pensamento há imagens que aparecem repentinamente, sem que meditemos nelas. Em todos os meus filmes, até nos mais convencionais, há uma tendência para o irracional, para uma conduta que não se pode explicar logicamente.
Não faço cinema de ideias. Tenho, à partida, ideias a que sou fiel, e posso dizer que muitas são as mesmas que tinha aos 28 anos, apesar de terem gradações diferentes. Eu exponho, não imponho essas ideias. E mais que ideias, são imagens, sentimentos. Gosto do que Pilatos disse a Jesus: «O que é a verdade?» Nisso entendo mais Pilatos que Jesus. Simpatizo com os que se esforçam em buscar a verdade; desagradam-me os que falam como se a tivessem encontrado
Gala teve uma influência muito negativa em Dali. Quando ma apresentou, reconheço que não tive boa impressão dela, mas ele estava fascinado. Dali é muito assexuado, quase andrógino, como os anjos. E por causa de Gala acabou por se zangar com muita gente. No seu livro “A Vida Secreta de Dali”, acusava-me de sacrílego e radical. Uma vez, fiz-lhe ver as complicações profissionais que essas palavras me estavam a provocar. Contestou que: «Escrevi um livro para subir a um pedestal, não para te realçar.» Continuámos a falar um bocado e acabei por me ir embora sem lhe ir à cara. Acabou ali a nossa amizade, de forma definitiva. Fernando Cesarman, o psicanalista, disse que sou um misógino, que nos meus filmes a mulher fica sempre de rastos. Não sei, acho que não sou misógino. Talvez entenda pouco as mulheres. Também é verdade que me encontro muito mais à vontade entre homens do que entre mulheres.
A ambiguidade está sempre a pairar por aí. Nos meus filmes, o meu objectivo não é pôr coisas que tanto podem interpretar a preto como a branco. Seria fazer batota. O que sei é que qualquer homem em determinadas situações tem impulsos contraditórios. Eu deixo a interpretação ao espectador. Quanto à minha, talvez tivesse de me psicanalisar para saber onde estão os detalhes que me atraíram e comoveram. O mal é que, segundo um psicanalista, eu sou não-psicanalisável. Há um elemento de mistério, de dúvida, de ambiguidade. Sou sempre ambíguo. Identifico-me com a ambiguidade, porque rompe com as ideias feitas, imutáveis. Racionalmente não acredito em milagres, mas posso fingir que acredito porque me interesso pelo que vem a seguir. Além disso, estou a trabalhar no cinema, que é uma máquina de fabricar milagres.
Não me preocupo com as minhas obsessões. Porque cresce a erva no jardim? Porque está adubada para isso. Posso ter obsessão pelos pés ou pelos insectos, mas suponho que não me vão meter na cadeia por isso. Na realidade, os pés e os sapatos, de homem ou de mulher, deixam-me indiferente. Atrai-me o fetichismo do pé como elemento pitoresco e de humor. A perversão sexual repugna-me, mas pode atrair-me intelectualmente. Há quem diga: «Aqui está um salto alto que simboliza o pénis, segundo este ou aquele parágrafo de Freud.» É absurdo. Esta psicologia fácil chega a ser risível. Freud abriu uma janela maravilhosa para o interior do homem, mas o freudismo converteu-se numa igreja com resposta para tudo.
Entre os meus filmes preferidos figuram o filme inglês “Dead of the Night” (“A Dança da Morte”), delicioso conjunto de várias histórias de terror, e “White Shadows in the South Seas” (“Sombras Brancas nos Mares do Sul”), que me pareceu muito superior a “Tabu” de Murnau. Adorei “Portrait of Jennie” (“O Retrato de Jennie”) com Jennifer Jones, uma obra desconhecida, misteriosa e poética. Declarei nalgum sítio o meu amor por esse filme e Selznick escreveu-me a agradecer. Detestei “Roma Città Apperta” (“Roma Cidade Aberta”) de Rosselini. Achei que o contraste fácil entre o padre torturado e, na sala contígua, o oficial alemão bebendo champanhe com uma mulher no colo era um procedimento repugnante. Gostei de “The Treasure of the Sierra Madre” (“O Tesouro da Serra Madre”) de John Huston, que foi filmado muito perto de San José Purúa. Huston é um grande realizador e uma pessoa muito afável. Foi em grande parte graças a ele que “Nazarin” foi apresentado em Cannes.
Gosto de “Paths of Glory” (“Horizontes de Glória”) de Kubrick, “Roma” de Fellini, “O Couraçado Potemkine” de Eisenstein, “La Grande Bouffe” (“A Grande Farra”) de Marco Ferreri, monumento hedonístico, grande tragédia da carne, “Goupi Mains Rouges” de Jacques Becker e “Jeux Interdits” (“Brincadeiras Proibidas”) de René Clément. Gostei muito dos primeiros filmes de Fritz Lang, Buster Keaton,  e dos Marx Brothers. Gosto muito dos filmes de Renoir até à Guerra, e de “Persona” (“A Máscara”) de Bergman. De Fellini, gosto também de “La Strada” (“A Estrada”), “Le Notti di Cabiria” (“As Noites de Cabíria”), “La Dolce Vita” (“A Doce Vida”). Nunca vi “I Vitelloni” (“Os Inúteis”) e tenho pena. Em contrapartida, em “Casanova” saí da sala muito antes do fim. De Vittorio de Sica gostei muito de “Sciuscà”, “Umberto D” e “Ladri di Biciclette” (“Ladrões de Bicicleta”), onde ele conseguiu transformar uma ferramenta de trabalho numa vedeta. Foi um homem que conheci e de quem me sentia muito próximo.
Gostei muito dos filmes de Eric von Stroheim e de Sternberg. Na altura, achei “Underworld” (“Vidas Tenebrosas”) soberbo. Detestei “From Here to Eternity” (“Até à Eternidade”), um melodrama militarista e nacionalista que infelizmente teve muito sucesso. Gosto muito de Wajda e dos filmes dele. Nunca o conheci, mas há muito tempo, no festival de Cannes, ele declarou publicamente que os meus primeiros filmes lhe deram vontade de fazer cinema. Lembra-me a admiração que eu próprio sentia pelos primeiros filmes de Fritz Lang e que determinou o rumo que dei à minha vida. Acho comovente esta continuidade secreta que há entre os filmes, entre os países. (…) Há quatro anos que não vou ao cinema por causa da minha vista, da minha surdez, do meu horror ao trânsito, às multidões. Nunca vejo televisão. Às vezes, a partir das cinco recebo alguns amigos, converso. Janto às sete com a minha mulher e deito-me muito cedo.
Fui católico, mas perdi a fé aos 17 anos. Perdi-a antes até de ler Darwin. A minha dúvida começou pelas ideias sobre o Inferno e a justiça de Deus. Mas não quer dizer que uma cerimónia em honra da Virgem, com as noviças nos seus hábitos brancos e o seu aspecto de pureza, não me possa comover profundamente. Como posso negar que estou marcado culturalmente, e espiritualmente, pela religião católica? (…) A conclusão a que chego para meu uso próprio é muito simples: acreditar e não acreditar são a mesma coisa. Se me provassem neste instante a luminosa existência de Deus, o meu comportamento não se alteraria em absolutamente nada. Não posso acreditar que Deus me vigia constantemente, que se encarrega da minha saúde, dos meus desejos, dos meus erros. Que sou eu para ele? Nada, a sombra de uma lama. A minha passagem é tão rápida que não deixa qualquer marca. Sou um pobre mortal, não conto nem no espaço nem no tempo. Deus não trata de nós. Se existe, é como não existisse. Em tempos resumi este raciocínio na seguinte fórmula: «Sou ateu, graças a Deus.» Uma fórmula contraditória apenas em aparência.
Acredito mais no indivíduo que na sociedade. Nesta época científica e tecnológica, o homem está moralmente como na idade das cavernas. Já não acredito no progresso social. Houve uma época em que as minhas simpatias iam na direcção do movimento colectivo, mas agora sou um céptico bem intencionado. Posso pensar que o comunismo continua a ser o mais firme pilar da revolução mundial, apesar de, na verdade, eu já estar fora dessa luta. Procuro simplesmente não atraiçoar as minhas convicções de juventude, fazer-lhes o menor dano possível. E tento que os meus filmes sejam moralmente honrados.
Para mim, a fornicação tem algo de terrível. A cópula, considerada objectivamente, parece-me ao mesmo tempo risível e trágica. É o mais parecido com a morte: os olhos em branco, os espasmos, a baba. E a fornicação é diabólica: vejo sempre nela o Diabo. (…) Uma mulher com uma chemise negra, meias com ligas e sapatos de salto alto, é mais erótica que uma mulher nua. O nu total é geralmente puro, não é erótico. Não sou adverso ao erotismo, mas sim à pornografia, que é a fisiologia do erotismo. E sou contra a pornografia porque acredito no amor.
A liberdade é um fantasma. Pensei nisto seriamente e acredito nisso desde sempre. É um fantasma de névoa. O homem persegue-o, acha que o agarrou, e só lhe fica um pouco de névoa nas mãos. Para mim, a liberdade sempre se expressou nesta imagem. (…) Sade só cometia os seus crimes na imaginação, como forma de se libertar do desejo criminal. A imaginação pode permitir-se todas as liberdades. Outra coisa é a realização do acto. A imaginação é livre; o homem não. Uma coisa é a imaginação e outra a vida. Em termos de imaginação, ninguém tem nada a ensinar-me, porque sei tudo, espero tudo. Com a vida é diferente. Na realidade nunca fui um homem de acção, mas na imaginação, isso sou. Ao mesmo tempo que cumprimento uma pessoa, na realidade posso ter a fantasia de matá-la. A imaginação é o único terreno em que o homem é livre. A realidade, sem a imaginação, é metade da realidade.
Detesto a proliferação da informação. A leitura de um jornal é a actividade mais angustiante do mundo. Se fosse ditador, limitaria a imprensa a um único jornal e a uma única revista, ambos estritamente censurados. Esta censura seria apenas aplicável à informação, a opinião permaneceria livre. A informação-espectáculo é uma vergonha. Os títulos enormes – no México batem recordes – e as manchetes sensacionalistas dão-me vontade de vomitar. Todas aquelas exclamações acerca da miséria alheia para vender um pouco mais de papel!
Com a idade que tenho, deixo os outros falar. A minha imaginação ainda aqui está , na sua inatacável inocência sustentar-me-á até ao fim dos meus dias. Horror à compreensão. Felicidade de acolher o inesperado. Estas tendências antigas acentuaram-se ao longo dos anos. Vou-me retirando pouco a pouco. O ano passado calculei que em seis dias, que equivalem a cento e quarenta e quatro horas, só tinha conversado com amigos durante três horas. O resto do tempo, solidão, devaneio, um copo de água ou um café, aperitivo duas vezes ao dia, uma recordação que me apanha desprevenido, uma imagem que me visita, uma coisa leva à outra, e já é noite. Não sou filósofo, nunca tive capacidade de abstracção. Se alguns espíritos filosóficos, ou aqueles que assim se consideram, sorriem perante o que lêem, fico contente por tê-los feito passar um bom bocado. É um pouco como estar de regresso ao colégio dos Jesuítas de Saragoça. O professor aponta para um aluno e diz: «Refute-me o Buñuel!» E está feito em dois minutos.
De algum tempo para cá, a ideia da morte tornou-se familiar. Desde os esqueletos levados pelas ruas de Calanda aquando das procissões da semana santa, a morte sempre fez parte da minha vida. Nunca quis ignorá-la ou negá-la. Mas quando se é ateu como eu, não há muito a dizer acerca da morte. Há que morrer com o mistério. Por vezes penso que gostaria de saber, mas saber o quê? Não se sabe durante nem depois. Depois do todo, o nada. Nada nos espera senão a podridão, o cheiro adocicado da eternidade. Para o evitar, talvez peça para ser incinerado.
Todos os textos acima transcritos foram retirados da autobiografia de Luis Buñuel, "O Meu último Suspiro", que se aconselha vivamente a todos os apaixonados por estas coisas do Cinema.