sábado, julho 12, 2025

THE BIRDS (1963)

OS PÁSSAROS
Um filme de ALFRED HITCHCOCK



Com Tippi Hedren, Rod Taylor, Suzanne Pleshette, Jessica Tandy, Veronica Cartwright, Ethel Griffies, etc.

EUA / 119 min / COR / 
16X9 (1.85:1)

Estreia nos EUA (Nova Iorque) a 28/3/1963 
Estreia em França (Festival de Cannes) em Maio de 1963
Estreia em Portugal (Lisboa) a 20/11/1964 (cinemas Alvalade e São Luiz)


Mother in Diner: [to Melanie] 
«Why are they doing this? Why are they doing this? 
They said when you got here the whole thing started. 
Who are you? 
What are you? Where did you come from? 
I think you're evil. EVIL!»

“The Birds” foi considerado por Alfred Hitchcock o filme mais complicado da sua carreira, aquele que lhe exigiu mais tempo de preparação e rodagem. Como confessou a Truffaut na célebre entrevista de 1966: «Costumo gabar-me de nunca olhar para o argumento enquanto rodo um filme. Sei o filme de cor, de uma ponta à outra. Sempre tive medo de improvisar no plateau, porque nessa altura, se há tempo para ter ideias, não há tempo para analisar a qualidade dessas ideias. Há ali muitos operários, electricistas e maquinistas, e eu sou muito escrupuloso com as despesas inúteis. Não posso, na verdade, imitar esses realizadores que fazem esperar uma equipa inteira enquanto se sentam para reflectir, nunca poderia fazer isso. Mas com “The Birds” foi diferente. Sentia-me muito agitado, o que é raro, pois habitualmente gracejo muito durante a rodagem. À noite, quando regressava a casa, para junto da minha mulher, continuava a sentir-me perturbado, emocionado. Qualquer coisa se passava, inteiramente nova para mim: comecei a estudar o guião durante a rodagem e encontrei-lhe fraquezas. Essa crise despertou em mim algo de novo do ponto de vista da criação.»

Quando Hitchcock adaptou a novela de Daphne du Maurier (1907-1989), sua amiga pessoal,  e autora também de “Rebecca” (que Hitch transformou em filme em 1940), retirou-lhe quase exclusivamente a ideia original para o filme. Deixou de lado a meticulosidade e os pormenores anedóticos, substituindo-os por um clima potencialmente criativo. “The Birds” é o filme mais densamente psicológico de Hitchcock, aquele em que existe uma interacção inequívoca entre as sequências de suspense e as personalidades de cada um dos diversos personagens. Essa analogia nem sempre é perceptível numa primeira visão da obra, dai o cair-se frequentemente em apressados e desajustados  juízos de valor, que não raramente remetem para uma subvalorização geral do filme. Mas atente-se em alguns exemplos:


A frivolidade das relações iniciais de Melanie (Tippi Hedren) e Mitch (Rod Taylor) – o filme arranca como se de uma screwball comedy se tratasse - só se começa a transformar em algo mais sério após Melanie ser atacada pela gaivota na baía, no caminho de retorno da casa dos Brenner. Lydia (Jessica Tandy), a mãe de Mitch, começa por exprimir uma atitude egoísta e obstrutiva em relação à atracção que desponta entre o filho e a mulher vinda de San Francisco. Devido aos ataques inexplicáveis dos pássaros sente o seu mundo particular – até aí povoado por uma segurança inquestionável, apesar da morte recente do marido – ser seriamente abalado nos seus alicerces, tornando-se, no final, uma aliada de Melanie (um afectuoso olhar entre as duas é um dos derradeiros planos do filme). O amor sublimado da professora, Annie Hayworth (Suzanne Pleshette) que se encontrava resignadamente adormecido, tem um novo alento, quer pela presença de uma nova mulher na vida do seu antigo amante quer pelos acontecimentos insólitos que irrompem na pacífica Bodega Bay. E o seu último gesto, antes de ser morta, é salvar a irmã do homem que ama.

Uma das coisas mais notáveis deste filme é a sua magistral gradação do clímax dramático, a implacável progressão dos ataques dos pássaros, que lentamente acabam por impor aos habitantes daquela pequena localidade a incrível realidade: o mundo das aves propõe-se destruir o mundo dos homens. “The Birds” é por isso também o filme de Hitchcock que mais se aproxima, sem contudo neles se consumir, dos universos do sobrenatural e da ficção científica. Até este filme, a principal obsessão de Hitch era a da razão (ou da falta dela) do Mal e dos problemas de culpa a ele associados. Em “The Birds não existe essa culpa, o Mal existe no seu estado absoluto, está simplesmente ali, não podendo ser racionalizado ou subjectivado. É por isso que não há qualquer explicação para os ataques que vão ocorrendo ao longo do filme. Estamos confrontados com um Mal sem causa, sem culpados possíveis, até porque mesmo os agentes desse Mal – os pássaros – não podem por natureza ser culpabilizados.

Voltando à entrevista com Truffaut: «Não teria feito o filme se se tratasse de abutres ou de aves de rapina, o que me agradou foi o facto de se tratar de aves vulgares, de aves de todos os dias». Ou seja, a escolha dos mais inocentes e pacíficos dos animais é claramente intencional, porque a sua transformação em veículos do Mal assume por isso um carácter mais terrível e assustador. Quando a ornitóloga Mrs. Bundy (Ethel Griffies) nos fala da existência de mais de cem biliões de pássaros, quando Mitch diz que as suas investidas parecem obedecer a um plano organizado e sobretudo quando os vemos em acção, a nossa inquietação, como a dos protagonistas, é total, porque estamos perante a irracionalidade absoluta. A ameaça ao nosso quotidiano despreocupado vem de onde menos se espera, o que de certo modo nos coloca de sobreaviso em relação a tudo o que nos rodeia.

Tal como escreve Carlos Melo Ferreira no livro “O Cinema de Alfred Hitchcock”, «”The Birds” é o mistério insolúvel, estando para a obra de Hitchcock como “El Angel Exterminador” para a de Buñuel, “The Shangai Gesture” para a de Von Sternberg, “Le Testament du Dr. Cordelier” para a de Renoir. Sabe-se porque ocorre um tremor de terra. Sabe-se porque rebenta uma bomba atómica. Mas não se sabe porque é que, a partir daquele dia e durante algum tempo, os inofensivos pássaros de Bodega Bay atacam os habitantes da vila, que levam uma vida pacata. Nem se sabe quando (ou mesmo se) e porquê deixarão de atacar. E as relações que se podem estabelecer constituem explicações manifestamente insatisfatórias».

E continuando a citar CMF: «Os personagens podem atribuir-se culpas uns aos outros, Melanie pode ser culpada por ter ido a Bodega Bay, e pelas razões que aí a levaram, pode ser acusada do seu passado escandaloso, pode ser responsabilizada pelo sucedido por todas estas razões: o certo é que nada pode provar a culpa dos pretensos culpados, ninguém pode explicar de forma razoável, aceitável, porque minimamente científica, o mal que se abateu sobre os habitantes de Bodega Bay. Melanie pode funcionar aqui, com os seus lovebirds significando o desejo por Mitch, como a falsa culpada, em que há quem a queira transformar».

O filme destaca-se tecnicamente por uma grande austeridade expressiva; os momentos mais surpreendentes quase não são sublinhados por efeitos de câmara ou de montagem. A excepção será o ataque dos pássaros a Melanie, no sótão da casa de Mitch – aqui temos direito a uma variante, também ela excelente, da célebre sequência do chuveiro de “Psycho”, em que planos ultra-rápidos permitem ao espectador ver o invisível. Mas em tudo o mais a frugalidade dos meios utilizados é por demais evidente; até a música foi abolida de “The Birds”, tornando-se Bernard Herrmann apenas num consultor para o som. Um dos momentos mais admiráveis e célebres de “The Birds” é a do ataque dos pássaros à escola. Relembremos o que Hitchcock confidenciou a Truffaut sobre esta particular sequência:

«Analisemos essa cena no exterior da escola, quando Melanie Daniels está sentada e os corvos se juntam atrás dela. Melanie, inquieta, entra na escola para prevenir a professora. A câmara entra com ela e, pouco depois, a professora diz às crianças: 'Agora vão saír, e quando eu lhes pedir que corram, vocês correm'. Conduzo a cena até à porta e depois corto para passar aos corvos, todos juntos, e permaneço com eles, sem cortar e sem que nada se passe, durante trinta segundos.. Então o espectador pergunta a si próprio: 'Mas que aconteceu às crianças, onde estão elas?' E só nessa altura se começa a ouvir o som de passos de crianças a correrem, todos os pássaros levantam voo e vemo-los passar por cima do telhado da escola antes de se abaterem sobre as crianças.


A velha técnica para obter suspense nesta cena consistiria em dividi-la mais: começar-se-ia por mostrar as crianças a saírem da aula, depois passar-se-ia aos corvos à espera, depois às crianças a descerem a escada, depois aos corvos a prepararem-se, depois às crianças a saírem da escola, depois aos pássaros a levantarem voo, depois às crianças a correrem e finalmente às crianças a serem atacadas. Mas hoje, para mim, esta maneira de proceder está fora de moda».

“The Birds” culmina numa sequência quase bíblica: sobre um poente de tons frios e esverdeados, entre a ameaçadora imobilidade das aves, Hitchcock introduz-nos num lúgubre apocalipse decorativo, que evoca um quadro de Marx Ernst. Todos os cuidados com que os fugitivos se dirigem para a viatura, tentando que o ruído dos seus passos não perturbe a inércia das aves vigilantes evidenciam o absurdo da situação, tanto mais que os pássaros não os atacam, como se esperassem uma ordem invisível para o fazer.


Aqui, neste derradeiro e inesquecível plano, já nem é sequer o medo que está em causa. A imagem que nos acorre ao espírito é a fuga silenciosa ante a presença do Mal, a procura da sobrevivência para além do horizonte. Hitchcock tinha pensado outro final, menos ambíguo, mas mais terrível: o carro dos protagonistas chegava a San Francisco e a ponte que dá acesso à cidade encontrava-se coberta, ao longo de toda a sua estrutura metálica, de milhares de pássaros. Ou seja, a ideia de que a ameaça não tinha ficado para trás e continuava bem real. No entanto, e por razões técnicas, não foi possível realizar-se a filmagem desse final.

Concluímos citando de novo CMF: «”The Birds” é o ponto sem regresso na obra dum artista único, que não impede posteriores obras-primas e que define melhor todo o trabalho do realizador, clarificando-o e dando-lhe, na sua ambiguidade, o seu sentido único como reflexão sobre a vida e a morte, o amor e o desejo, a sobrevivência e o terror. Sobre o Homem. E caracterizando essa obra com uma indelével marca estética: a da irreversibilidade da vida e da morte, mesmo quando aparentemente recuperáveis».


CURIOSIDADES:

- Hitchcock viu pela primeira vez Tippi Hedren num filme publicitário sobre uma bebida dietética. Nesse filme Tippi volta-se sedutoramente ao ouvir um assobio, situação recriada por Hitch (como uma private joke) logo no início do filme, imediatamente antes da sua clássica aparição, ao sair da loja de pássaros com dois cães terriers – companheiros inseparáveis do realizador duranta a rodagem do filme.

- O carro que  Tippi Hedren conduz é um Aston Martin DB2/4 Coupé.

- A sequência do ataque dos pássaros no sótão da casa levou uma semana a ser rodada e originou o internamento de Tippi Hedren numa unidade hospitalar devido a um esgotamento da actriz.

- “The Birds” não acaba com o então habitual “The End” porque Hitchcock queria deixar no ar a ideia de que a ameaça dos pássaros não acabava com o final do filme.

- Melanie Griffith, filha de Tippi Hedren, encontrava-se quase sempre presente durante a rodagem do filme. Um dia Hitchcock ofereceu-lhe uma boneca que era uma réplica perfeita da mãe, dentro de uma caixa de madeira, que a garota julgou tratar-se de um pequeno caixão.


- Segundo Hitchcock o filme contém 371 efeitos especiais, 32 dos quais foram usados na sequência final.

- A escola usada no filme é a Potter Schoolhouse, que esteve activa entre 1873 e 1961, ou seja, já se encontrava encerrada quando o filme foi rodado. Hoje o edifício é uma residência privada.

- Em todos os planos onde se vêm aglomerações de pássaros, grande parte deles não são verdadeiros. Veronica Cartwright lembra-se de ter questionado Hitchcock na altura se os espectadores não iriam notar a imobilidade desses bonecos. O velho mestre respondeu-lhe lapidarmente: «o Cinema é ilusão, minha querida. Basta verem alguns deles mexerem-se para acreditarem que todos os outros estão vivos também».

- Quando o filme foi rodado, a estação de serviço frente ao restaurante Tides não existia, pelo que teve de ser implantada para se filmar a sequência do incêndio. Mais tarde, e dado o grande sucesso do filme, uma nova estação de serviço foi construída no local, a qual se mantém até aos dias de hoje.


Recordemos o que François Truffaut escreveu sobre o filme em 1963:

«Apesar de ser o único cineasta cujos filmes reeditados vinte anos após a sua estreia dão tanto lucro quanto um filme novo, Hitchcock nunca ganhou um Óscar. Decerto, o seu último filme, "Os Pássaros", não é perfeito. Rod Taylor e Tippi Hedren acasalam de modo improvável, e a história sentimental - quase sempre a mesma: a caça ao marido - ressente-se disso, mas quanta injustiça na censura geral! O que me entristece é que nenhum crítico admire a ideia do filme: "Os pássaros atacam as pessoas". Estou convicto de que o cinema foi inventado para que este filme fosse rodado. Pássaros comuns, pardais, gaivotas e corvos vão atacar pessoas comuns: a população de uma aldeia costeira. Aqui está um sonho de artista e, para levá-lo a bom porto, é preciso muita arte e ser o maior técnico do mundo.


Alfred Hitchcock e o seu colaborador Evan Hunter ("Sementes de Violência") conservaram apenas a ideia da short story de Daphne du Maurier: pássaros à beira-mar que resolvem atacar os humanos, primeiro no campo, depois na cidade, à saída das escolas e até mesmo em casa. Nenhum filme de Hitchcock teve uma progressão tão exemplar, já que os pássaros, à medida do desenvolvimento da acção, tornam-se: a) cada vez mais negros; b) cada vez mais numerosos; c) cada vez mais maus. Quando atacam as pessoas, dirigem-se preferencialmente aos olhos. No fundo, irritados por serem capturados e engaiolados - senão mesmo comidos - pelas pessoas, tudo se passa como se um belo dia tivessem decidido inverter os papéis.

              

Hitchcock pensa que "Os Pássaros" é o seu filme mais importante, e esta é também, de certo modo, senão mesmo de modo certo, a minha opinião. Partindo de uma ideia plástica tão forte, Hitch compreendeu que era preciso cuidar da intriga, de maneira que esta fosse mais do que um pretexto para ligar entre si diversas cenas de coragem ou de suspense: criou uma personagem muito bem conseguida, a de uma rapariga de São Francisco, sofisticada e muito snobe, que passa por todas estas provas sangrentas, acabando por descobrir assim a simplicidade, a naturalidade.

Pode considerar-se que "Os Pássaros" é um filme de montagens, é certo, mas são montagens realistas. Na verdade, Hitchcock, cuja mestria aumenta de filme para filme, precisa incessantemente de novas dificuldades: torna-se o atleta completo do cinema. Na verdade, não se perdoa a Hitchcock que nos assuste de forma gratuita. Todavia, acredito que o medo seja uma emoção "nobre" e que pode ser "nobre" assustar. É "nobre" confessar que se teve medo e que se teve prazer nisso. Qualquer dia, só as crianças irão conservar essa nobreza.»


LOBBY CARDS:


sexta-feira, julho 11, 2025

LE CHARME DISCRET DE LA BOURGEOISIE (1972)

O CHARME DISCRETO 
DA BURGUESIA

Um filme de LUIS BUÑUEL



Com Fernando Rey, Stéphane Audran, Jean-Pierre Cassel, Delphine Seyrig, Paul Frankeur, Bulle Ogier, Milena Vukotic, Maria Gabriella Maione, Claude Piéplu, Michel Piccoli, etc.

FRANÇA / ITÁLIA / ESPANHA / 
102 min / COR / 16X9 (1.66:1)

Estreia em FRANÇA a 15/9/1972
Estreia em PORTUGAL (Lisboa): Novembro de 1973
Estreia em Moçambique (L.M.) a 12/1/1974 (cinema Dicca)



Colonel: «Marijuana isn't a drug. Look at what goes on in Vietnam. 
From the general down to the private, they all smoke»
Mme. Thevenot: «As a result, once a week they bomb their own troops»
Colonel: «If they bomb their own troops, they must have their reasons»


Nas suas memórias, Luis Buñuel dedica um capítulo ao que chama "les plaisirs d'ici bas". Ao contrário do que se possa pensar, o sexo não ocupa o primeiro lugar, vem depois do alcool e do tabaco. Buñuel diz mesmo que os dois últimos «acompanham muito agradavelmente o acto de amor. Geralmente, o alcool deve ser antes e o tabaco depois» e acrescenta que ficou muito contente com o desaparecimento progressivo e finalmente total do seu instinto sexual, mesmo em sonhos, nos últimos anos da sua vida. «Estou muito contente, como se me tivesse, por fim, desembaraçado dum tirano. Se o Diabo me aparecesse a propor uma recuperação do que chamam a virilidade, respondia-lhe: Não, muito obrigado, não quero mais. Fortalece, antes, o meu fígado e os meus pulmões, para poder continuar a beber e a fumar à vontade.»





"Le Charme Discret de la Bourgeoisie" é um divertimento sobre uma burguesia, de que Buñuel não se exclui, e para o qual conta com a nossa cumplicidade ("burgueses somos nós todos / burgueses desde pequenos / burgueses somos nós todos / ou ainda menos", como se diz num poema de Cesariny). Será só isso? Alguns comentadores têm dito que sim e não escondem o seu desapontamento perante um filme divertidissimo, com achados prodigiosos, mas que lhes parece ter perdido muito da violência e virulência das obras anteriores. Por isso, este "Charme" teve o sucesso que teve, teve os prémios que teve e culminou com o mais alto galardão do cinema: o Oscar de Hollywood para o Melhor Filme de Língua Estrangeira, que Buñuel arrecadou aos 72 anos, depois do que Hollywood lhe fez e depois de 30 anos de uma carreira maldita.




Aliás, Buñuel estava perfeitamente consciente do tom ameno que em geral se encontra na obra. A quem falou de sátira feroz à burguesia, respondeu: «Não é uma sátira e muito menos feroz. Creio que fiz este filme com um sentido de humor amável. Mas também não procurei que as pessoas rissem às gargalhadas do princípio ao fim». E mesmo a quem foi mais longe e quis ver no plano várias vezes repetido dos protagonistas a andar pela estrada, sem chegar a parte alguma, uma alegoria à ausência de destino histórico da burguesia, Buñuel desenganou-os: «Compreendo essa interpretação, até porque o filme termina com os personagens a andar pela estrada. Apesar disso, lamento dizer-lhes que não há nenhuma mensagem. Até porque teria vergonha de me ter proposto a mim próprio - vou demonstrar que a burguesia está perdida. Aliás, creio que o que está em vias de extinção não é só a burguesia. Em muitos países, o proletariado vai-se aburguesando pouco a pouco, vai-se tornando menos revolucionário.»



Sin embargo, Don Luis... nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Se não há sátira feroz, se não há mensagem, se não há irrisão, se não há subversão, se não há crueldade, este filme não é o do fantasma de Buñuel, nem de um Buñuel adormecido. A sua mão (a sua câmera) sente-se do princípio ao fim e o "charme discreto" da burguesia passa pelo desencanto indiscreto duma classe que pretende viver para o prazer, mas que o frustra constantemente. Os dois tipos de prazer sempre invocadas neste filme (os prazeres da mesa e os prazeres da cama) estão permanentemente em cena mas quase sempre são adiados e raramente consumados.

Sucedem-se jantares e almoços, sempre com o mesmo grupo. Fala-se de iguarias de fazer crescer água na boca. Mas, quando se passa ao acto, surge sempre a interrupção. Nunca ninguém come nada, a não ser, no fim, Fernando Rey, acordando do seu último pesadelo, a matar a fome com uns restos guardados no frigorífico. A mesma coisa para as cenas de sexo: Stéphane Audran e Jean-Pierre Cassel são interrompidos pela chegada dos convidados e têm que andar às voltas para conseguir satisfazer o seu desejo; quando Fernando Rey se prepara para ter relações com Delphine Seyrig, toda a espécie de impedimentos acontece até à chegada do marido. Só não se frustra um acto e esse é de tal forma violento que há quem diga que foi para o filmar que Buñuel fez o filme. Refiro-me ao assassinato do moribundo pelo bispo. Por alguma razão essa cena foi cortada pela censura, em Portugal, em 1973...


CURIOSIDADES:

- Luis Buñuel é referido nos créditos finais como responsável pelos efeitos sonoros. No entanto encontrava-se praticamente surdo quando rodou o filme.
   
- Luis Buñuel tinha uma verdadeira obsessão com as baratas que aparecem em muitos dos seus filmes. Aqui veêm-se na cena da tortura na prisão a sair do piano.







«O trabalho foi muito longo. Escrevemos cinco versões do argumento. Era preciso encontrar o equilíbrio certo entre a realidade da situação (um grupo de amigos tentam cear juntos sem o conseguir), que devia ser lógica e quotidiana, e a acumulação de obstáculos inesperados que, apesar disso, não deviam parecer fantásticos ou extravagantes. Nunca quis dizer: Vou demonstrar aqui que a burguesia está perdida. Eu mesmo sou burguês, mas discreto. Se fosse um burguês comme il faut viveria dos meus rendimentos, não faria filmes. Quando seleccionaram o filme para o Óscar e uns jornalistas mexicanos me perguntaram se o ganharia, respondi: Sim, estou convencido que sim. Paguei os 25 mil dólares que me pediram. Os norte-americanos têm os seus defeitos, mas são homens de palavra. Quatro dias depois da brincadeira, escândalo em Los Angeles, mas finalmente ganhei o Óscar, o que me permite repetir que os americanos têm os seus defeitos, mas são homens de palavra.»



quinta-feira, julho 10, 2025

THE POSEIDON ADVENTURE (1972)

A AVENTURA DO POSEIDON
Um Filme de RONALD NEAME


Com Gene Hackman, Ernest Borgnine, Shelley Winters, Red Buttons, Roddy McDowall, Stella Stevens, Jack Albertson, Carol Lynley, Pamela Sue Martin, Arthur O'Connell, Leslie Nielsen, etc.


EUA / 117 min / COR / 
16X9 (2.20:1)

Estreia nos EUA a 13/12/1972
Estreia em MOÇAMBIQUE (L.M.) a 19/5/1973 (cinema Scala)



Reverend Frank Scott: “Please GOD, NOT this woman”

O remake feito em 2006 deste clássico dos anos 70 veio provar, mais uma vez, que toda a técnica digital disponível hoje em dia não é prerrogativa para se conseguir fazer um bom filme. “The Poseidon Adventure” foi realizado num tempo em que a palavra blockbuster ainda não tinha sido inventada; e mesmo que já existisse não teria o significado que tem actualmente – algo produzido com orçamentos colossais mas regra geral com resultados a roçar a imbecibilidade. Do que se falava naquele início dos anos 70 era de “cinema-espectáculo”, ou neste caso concreto, de “cinema-catástrofe”.

“The Poseidon Adventure” veio precisamente enaltecer e aprimorar esse “cinema-catástrofe”, sendo por isso olhado hoje em dia como um dos exemplos mais felizes, e conotado inclusivé como o maior clássico do género. Baseado numa novela de Paul Gallico, o filme relata-nos o desastre ocorrido com o S.S. Poseidon, um transatlântico na sua última viagem, entre Nova Iorque e Atenas. Na noite de 31 de Dezembro, quando todos os passageiros comemoram a chegada do Ano Novo, um terramoto sub-aquático vai ocasionar uma onda gigantesca de 30 metros de altura, cuja força destruidora vai embater no navio virando-o literalmente do avesso.

As explosões sucedem-se, indo submergir toda a zona do restaurante onde se comemorava a passagem de ano. Dez passageiros conseguem sobreviver e é o seu percurso em direcção ao casco do navio (agora situado acima deles) que iremos acompanhar ao longo do filme, através de peripécias diversas e interrogando-nos sempre (ou não, caso conheçamos já o desfecho) quais deles conseguirão chegar sãos e salvos ao fim daquela odisseia.

A ideia do filme é brilhante e executada com grande mestria. Cenários magníficos e deveras originais (tudo se encontra de pernas para o ar, desde o salão onde a aventura pela sobrevivência começa até às casas de banho, cozinhas e todos os outros compartimentos do navio) conferem a “The Poseidon Adventure” um grau de autenticidade pouco comum neste género de filmes. Junte-se a isso um brilhante naipe de actores e o resultado não poderia ter sido melhor. Na primeira meia-hora do filme fomo-nos familiarizando com cada um dos heróis desta grande aventura e por isso iremos sofrer e torcer por todos eles até ao final.

E não se julgue que o conhecimento antecipado da história ou de quem fica pelo caminho tira emoção ao visionamento deste filme. Pelo contrário, “The Poseidon Adventure” está tão bem feito, tão bem construído em todas as suas particularidades e propósitos que a repetição da sua visão nunca nos cansa. Pessoalmente, vi-o pela primeira vez em 1973, pouco depois da sua estreia mundial, e desde essa altura já perdi a conta das vezes em que voltei a vê-lo, e sempre com o mesmo prazer.

Gene Hackman é inesquecível no papel de um reverendo de ideias avançadas, que naturalmente se torna no líder da expedição. Ernest Borgnine é o polícia resingão que casou com uma prostituta (Stella Stevens num desempenho divertidissimo) e Shelley Winters, aqui já com 52 anos, dá-nos uma Belle Rosen sensacional, que está na origem da cena mais comovente do filme. Mas todo o restante elenco – Red Buttons, Roddy McDowall, Jack Albertson e as jovens Carol Lynley e Pamela Sue Martin – é de grande qualidade, como aliás a publicidade do filme teve o cuidado de referir na altura como sendo na sua grande maioria actores distinguidos pela Academia de Hollywood.

Um dos grandes trunfos da “Aventura do Poseidon” é o clima de suspense claustrofóbico que se vai adensando à medida que a história progride. O argumento foi cuidadosamente construído de modo a proporcionar ao espectador uma adrelina sempre em crescendo até ao clímax final. Tudo começa idilicamente no grande jantar de fim-de-ano mas é depois da tragédia acontecer que o filme arranca a todo o gás, levando-nos a nós espectadores com ele. E no entanto como são importantes aqueles primeiros trinta minutos onde, como atrás já se disse, ficamos a conhecer cada um dos principais intervenientes. Sempre que se revê o filme saboreia-se o mais possível a despreocupação de cada um daqueles momentos, devido a saber-se de antemão o que vai acontecer a seguir.

Tenho lido alguns comentários onde se pretende comparar “The Poseidon Adventurea “Titanic”, quer no bom quer no mau sentido. Nada de mais inútil, até porque o filme de Cameron se situa num patamar completamente diferente. A única ilação possível é a de que este filme é um percursor muito honroso de “Titanic”, que porventura nele foi beber grande parte da sua inspiração. Inclusivé a nível técnico, como por exemplo os enormes sistemas hidráulicos para simular o naufrágio, já utilizados neste filme vinte e cinco anos antes.

Sete anos depois o produtor deste filme, Irwin Allen realizou uma espécie de sequela, conhecida como “Beyond The Poseidon Adventure”, com Michael Caine e Sally Fields a encabeçarem mais um cast de conhecidos nomes do cinema daqueles anos. O argumento, sem pés nem cabeça, relatava a história de uma série de aventureiros à procura de um tesouro escondido nos destroços do Poseidon. Era uma vez mais Hollywood a insistir ingloriamente na miragem do lucro fácil e rápido. Mas felizmente que os êxitos sempre foram feitos pelo público e não programados em quaisquer gabinetes.

CURIOSIDADES:

- Paul Gallico inspirou-se em acontecimentos vividos com ele próprio numa viagem a bordo do Queen Mary para escrever a novela que deu origem ao filme

- Todo o filme foi rodado em sequência para tornar visualmente mais compreensível o aumento de esquimoses (algumas fictícias, outras reais) e sujidade, experimentados na pele e nas roupas de cada um dos principais intervenientes

- Muitas das sequências foram rodadas no S.S. Queen Mary, ancorado em Long Beach, na Califórnia. Noutras foi usado um modelo construído com base nesse mesmo navio e que actualmente se encontra em exposição no Museu Marítimo de Los Angeles

- Apesar de terem sido usados cerca de 125 duplos no filme, foram os próprios actores que se sujeitaram às difíceis e cansativas filmagens exigidas pelo argumento - excepto nas sequências mais perigosas - chegando inclusivé a queixarem-se aos produtores do filme por causa da intensidade de algumas dessas cenas

- Shelley Winters engordou cerca de 15 quilos para representar a personagem de Belle Rosen e teve aulas de natação com um treinador olímpico por causa das cenas rodadas debaixo de água

- Petula Clark recusou o papel de Nonnie Parry, atribuido a Carol Lynley. O tema que esta interpreta no filme (na realidade a voz pertence a Renée Armand, trata-se de uma dobragem) – “The Morning After” – foi depois interpretado por Maureen McGovern, conseguindo um certo êxito na altura, devido em grande parte ao sucesso alcançado pelo filme. A canção, da autoria de Al Kasha e Joel Hirshhorn, ganhou o Oscar da melhor canção do ano. Ao filme foi ainda atribuído um Prémio Especial pelos efeitos visuais e teve ainda mais 7 nomeações para os Oscars. Shelley Winters ganhou o Globo de Ouro para a melhor actriz secundária e Gene Hackman arrebatou o BAFTA inglês para o melhor actor do ano.