«Hoje
a mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: 'Sua
mãe falecida. Enterro amanhã. Sentidos pêsames'. Isto não quer dizer nada.
Talvez tenha sido ontem.» Assim começa "O Estrangeiro", um dos livros
que me tem acompanhado desde Dezembro de 1972, altura em que o comprei por
37 escudos, na livraria da COOP, em Lourenço Marques, trinta anos depois de ter sido
editado pela primeira vez (com certeza absoluta seria um dos poucos livros que
levaria comigo para uma ilha deserta,
se a tal escolha fosse obrigado). O seu autor, Albert Camus (Prémio Nobel da
Literatura em 1957), nasceu na Argélia, em Mondovi, província de Constantina, a
7 de Novembro de 1913, e morreu num acidente de automóvel em Janeiro de 1960,
ao regressar a Paris de uma pequena digressão pela província. Aproxima-se
portanto o centenário do seu nascimento, comemorado aqui e ali por alguma
imprensa escrita.
Literatura
à parte, o que me interessa aqui referir é a contribuição que a sua riquissima
obra, uma das mais influentes e debatidas do século XX, teve para o Cinema. Muita
pouca, inexplicavelmente, como escreve Francisco Ferreira na revista Atual do
Expresso desta semana: «...Assustou-se o cinema com o "homem absurdo"
e o turbilhão das suas forças contraditórias? Parece-me que a questão é contudo
mais complexa do que a paupérrima lista de adaptações que se atreveram a passar
a ficção de Camus para cinema - e as poucas que existem, regra geral, ora
tombaram no embaraço ora no exercício escolar.
O
alcance é mais amplo do que parece: fica-se com a sensação de que os heróis dos
romances (o Meursault de "O Estrangeiro", sobretudo), bem como aquilo
que os constitui, se pode, de facto, encontrar aqui e ali, em centenas e
centenas de filmes que, com maior ou menor incidência, foram beber à mesma
fonte sem a nomearem, como se a inspiração fosse do domínio universal. Dos que
a nomeiam, há casos particulares: ainda há pouco, em 2011, o italiano Gianni
Amelio se interessou pelo espírito camusiano, adaptando "Le Premier
Homme", romance autobiográfico (e póstumo), com Jacques Gamblin no papel
do alter ego do escritor. Aplicado ao
nível de valores de produção, é um filme artificial e académico (não estreou
por cá e não se perdeu nada).
Também
inédito em Portugal (e aqui lamenta-se), "Fate / Yazgi" (2001) do
turco Zeki Demirkubuz, verte livremente (e com particular negrume) "O
Estrangeiro" para a actualidade e é uma das raras adaptações de Camus
conseguidas. A peça "Calígula", a mais representada do escritor, teve
várias adaptações para o cinema e TV, bem como a novela "A Peste"
(com William Hurt na versão do argentino Luis Puenzo), sem que nenhuma se tenha
distinguido.
Mas o caso mais célebre ainda é o de Luchino
Visconti. Em 1966, o cineasta italiano começa a trabalhar num argumento que
transpõe a acção de "O Estrangeiro" dos anos 30 para os anos 60,
descobrindo-lhe uma nova actualidade política focada no fim dos impérios
coloniais (com a Guerra da Argélia em pano de fundo). Acontece que a viúva de
Camus - já o trabalho ia adiantado e o produtor Dino De Laurentis investido
soma considerável - veta a veleidade, exigindo que a adaptação seja
escrupulosamente fiel ao livro. Forçado a suprimir independências e guerras
coloniais, Visconti ainda tenta desistir do projecto (agarra-se à desculpa de
Alain Delon não poder fazer de Meursault - e seria Mastroianni a ficar com o
papel), mas já era demasiado tarde. Uma vez concluído, à pressa, "Lo
Straniero" resulta, de facto, num Visconti menor, num filme 'sem olhar'
que nada acrescenta ao trabalho do seu autor.»
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