Um filme de ALFRED HITCHCOCK
Com Tippi Hedren, Sean Connery, Diane Baker, Martin Gabel, Louise Latham, Bob Sweeney, Milton Selzer, Alan Napier, Bruce Dern, etc.
EUA / 130 min / COR / 16X9 (1.85:1)
Estreia na GB a 9/7/1964
Estreia nos EUA a 22/7/1964
Estreia no BRASIL a 21/8/1964
Estreia em PORTUGAL a 13/1/1967
Mark Rutland: «But I do want to go to bed, Marnie.
I very
much want to go to bed»
"Marnie" foi o filme que me introduziu à obra de
Alfred Hitchcock. Na altura tinha apenas 13 anos e nunca tinha ouvido
falar em semelhante nome. O que era perfeitamente natural, porque desconhecia a
importância do realizador na execução de um filme. O que me interessava eram
apenas os nomes dos actores, e mesmo estes eram quase sempre ilustres
desconhecidos. Como neste caso. Não tinha visto qualquer dos filmes de James
Bond (e já tinham sido rodados quatro) e portanto Sean Connery era uma
autêntica novidade. Bem como Tippi Hendren, entenda-se. Vi o filme durante umas
mini-férias em Johannesburg, num daqueles cinemas de sessões contínuas (que
apelidávamos de "piolhos"), de aspecto sombrio e frequência duvidosa,
mas que faziam as minhas delícias de jovem adolescente.
Havia sempre dois filmes em cartaz e a programação não fugia
muito ao cinema fantástico e de ficção-científica (vi por lá muitos monstros "made
in Japan"), ao western-spaghetti
ou então aos filmes de aventuras, nomeadamente de piratas. Normalmente, quando
entrava na sala, lá para o fim da manhã (as sessões começavam bem cedo), um dos filmes já ia a meio e por isso
passava longas horas no cinema, até a visão do programa em exibição ficar completa.
Lembro-me que havia um tabuleiro corrido à frente e ao longo das cadeiras, onde
se colocavam as bebidas e as sandes que íamos consumindo sem despregar os olhos
do écran: belos hot-dogs, os que eu
comi, com enormes salsichas vermelhas e cheios de tudo e mais alguma coisa.
Mas às vezes os programadores dessas salas deviam enganar-se e
lá passavam um filme ou outro diferente do habitual. Como neste caso, no Royalty
(assim se chamava este cinema). Nesse dia, 24 de Janeiro de 1967, uma
terça-feira, os filmes em exibição chamavam-se "Marnie" e
"Massacre na Cidade do Mármore". Deste último desconheço o título
original ou mesmo o elenco, pelo que não faço a mínima ideia de que filme se
tratava. De qualquer modo não é para aqui chamado, por isso deixem-me avivar as
minhas primeiras memórias sobre "Marnie". Foram essencialmente duas:
o abate de um cavalo depois deste ter batido com uma das patas traseiras num
muro de pedra e o vermelho, uma cor que durante muito tempo associei a
"Marnie". Com toda a razão, diga-se, conforme pude constatar em
futuras visões, já mais esclarecidas. Mas foi um filme que de certo modo me
perturbou na altura, sem contudo ter percebido a razão de tal perturbação. Até
porque houve muita coisa da história a que passei ao lado: não havia legendas e
a minha compreensão da língua inglesa era practicamente nula naquela altura.
Ao longo dos anos vi todos os agora célebres filmes de
Hitchcock (a grande maioria por diversas vezes), tenho os meus favoritos bem
sedimentados ("Vertigo", "Notorious", "North By
Northwest", "The Wrong Man", "The Birds", "Dial M For Murder", a 2ª versão de "The Man Who
Knew Too Much" e este "Marnie" fazem sempre parte do meu Top 10 hitchcockiano), mas aquela primeira
visão do filme ainda hoje me assombra, perdurando nas minhas memórias cinéfilas.
Realizado em 1964, logo após "The Birds", o filme é a última grande obra de Hitchcock, que depois dela rodaria apenas mais 4: "Torn
Curtain" [1966], "Topaz" [1969], "Frenzy" [1972] e
"Family Plot" [1976]. Com "Marnie" Hitchcock retomava os
temas da anormalidade de comportamento originada na infância, que são comuns a
"Spellbound" e a "Psycho", mas agora referentes a um
personagem feminino.
Inicialmente Hitchcock tinha pensado em Grace Kelly para
protagonista (seria a sua quarta colaboração com o mestre, depois dos êxitos
"Dial M For Murder" e "Rear Window", ambos de 1954, e de
"To Catch a Thief", de 1955). Mas Grace tornara-se já princesa do
Mónaco e o seu regresso ao mundo do cinema (por ela tão desejado) teve de ser
plebescitado pela minúscula população do Principado. O resultado foi um rotundo
"não"! Grace teve de se contentar com a sua nova condição de soberana
e Hitchcock resolveu apostar de novo em Tippi Hedren, que tão boa conta tinha
dado de si nos "Pássaros".
"Marnie" é portanto Tippi Hendren, uma mulher
solitária, traumatizada, cleptomaníaca, e, como tudo isso não bastasse,
sexualmente frígida, com uma repulsa constante a ser tocada pelo sexo oposto,
aqui representado pelo charmoso e atlético Sean Connery então nos píncaros da
fama por causa dos seus filmes de agente secreto 007 com ordem para matar. Mark
Rutland (assim se chama o personagem de Connery), assume o papel de libertador
dos traumas de Marnie, a ponto de forçar um casamento sem grandes perspectivas
de futuro. Hitchcock joga com a complexidade das relações
Marnie-Mark, procurando tornar evidente a sua interdependência, os seus jogos
de ocultações e de disfarces, de mistérios e de surpresas, de aparências e de
realidades.
Ao contrário de outros filmes, Hitchcock não se fica pela
alusão e chama as coisas pelo seu nome. Marnie é mesmo frígida, apesar de tanto
nós como Sean Connery só darmos por isso quase a meio do filme. A viagem de
núpcias por barco é um desastre. Depois da consumação à força do casamento
(trata-se inequivocamente de uma violação), Marnie chega a tentar o suicídio,
atirando-se para a piscina do barco. Aterrorizada pela cor vermelha, vítima de
horríveis pesadelos, Marnie é uma neurótica e a cleptomania não é mais do que
uma compensação para a frigidez.
Truffaut tinha uma predilecção especial por
"Marnie" e numa das suas célebres entrevistas com o mestre do
suspense, Hitchcock confessava-lhe: «Se eu tivesse utilizado, como no meu velho
filme inglês "Murder", o processo do monólogo interior, ouviríamos
Sean Connery dizer a si próprio: - "Desejo que ela se apresse a cometer novo
roubo, para poder apanhá-la em flagrante e possuí-la finalmente". Desse modo,
conseguiria um duplo suspense. Filmaríamos sempre Marnie do ponto de vista de
Mark e mostraríamos a sua satisfação quando vê a rapariga cometer o roubo. Para
falar cruamente, deveria ter mostrado Sean Connery surpreendendo a ladra diante
do cofre-forte, desejoso de lhe saltar para cima e de a violar ali mesmo. Mas
não podemos realmente representar estas coisas no écrã, porque o público
recusaria, dizendo. «Oh, não! Isso não!...»
Transcreve-se de seguida um extracto da crítica de João
Bénard da Costa sobre o filme: «Tal como "Spellbound",
"Marnie" só aparentemente é um filme sobre a psicanálise. É um filme
sobre o desejo sexual, correlativo, no universo católico que forma e informa
Hitchcock, do tema da culpa. Se "The Birds" é o ponto culminante da
interrogação de Hitch sobre a culpa, "Marnie" é o seu equivalente
sobre o tema do desejo e da sua culpada associação ao Mal. Porque nenhumas das
associações psicanalíticas do filme explica Marnie ou Mark, ou explica a
atracção que os leva um para o outro, ou um contra o outro.
O primeiro plano do filme mostra-nos as imagens de um livro
a desfolhar-se. Como esse livro, Marnie é um personagem que quer ser aberto. Ao
cavalo que Mark lhe dá e que tanto ama, dirá a certa altura: «Se queres morder
alguém, morde-me a mim.» Depois dessas imagens, destacam-se no silêncio os
passos de Marnie, levando na mão duas carteiras de pele de crocodilo, uma
cinzenta, outra amarela. Essas duas cores acompanham a protagonista ao longo de
todo o filme. E na cantilena final das crianças faz-se referência a uma
"senhora de carteira de crocodilo" chamada em vez do médico, quando
tudo fica pior. A referência é obscura, mas não será ousado ver nessa senhora uma
metáfora da morte. Por isso, a revelação do episódio da infância nada resolve.
A frigidez de Marnie é a máscara do seu desejo, forma suprema de voracidade
sexual.
A certa altura do filme, a mãe diz a Marnie que as únicas
coisas que amamos são aquelas que nunca conseguimos dizer. "Marnie" é
um filme sobre o indizível do sexo e do desejo e sobre o absurdo de os tentar
compreender através da psicanálise ou de outra explicação qualquer. Num filme
em que estamos sempre descentrados
(nunca nos identificamos com Mark, nunca nos identificamos com Marnie - o que
é, de certo modo, novo na obra de Hitch - e talvez daí a perplexidade do
espectador), o ponto de vista é o da fissura entre a total assunção do desejo e
a sua total recusa. Para desejarmos totalmente, temos totalmente que nos reter.
Nenhuma explicação explica, nenhuma palavra liberta. Só o mistério total pode
conduzir ao que é totalmente misterioso. "Marnie" é o filme do
indizível. Por isso acaba, sem saída, em trompe
l'oeil, num cenário em que todas as perspectivas estão distorcidas.»
CURIOSIDADES:
- Evan Hunter, argumentista que já tinha trabalhado com Hitchcock em "The Birds", opôs-se fortemente a escrever a cena em que Mark viola Marnie durante a lua-de-mel. Hitchcock despediu-o de imediato e contratou uma mulher, Jay Presson Allen, que não teve qualquer problema, dizendo inclusivé que a cena realçava o carisma de Sean Connery. Hitch confessou mais tarde que aquela cena tinha sido a razão principal pela qual fizera o filme
- Para filmar as cenas de Marnie a cavalgar, Hitchcock usou um cavalo mecânico da Disney. Aliás, é bem visível a utilização de cenários durante essas sequências (um dos aspectos menos conseguidos do filme)
- Depois de filmar algumas cenas com Connery, Tippi Hedren perguntou a Hitchcock se ela tinha mesmo de ser frígida. «Have you seen him?», perguntou a actriz, referindo-se ao jovem e musculado Connery. «Yes, my dear, it's called acting», respondeu Hitchcock.
- Tippi Hedren e Hitchcock desentenderam-se variadíssimas vezes no set, tendo a actriz mais tarde confessado que a amizade que a ligara ao realizador tinha acabado no final das filmagens, apesar de "Marnie" ser o seu filme favorito entre todos aqueles que protagonizou
- Foi depois de verem algumas cenas do primeiro filme de Sean Connery como James Bond ("Dr. No"), que Hitchcock e a argumentista Jay Presson Allen decidiram de imediato contratar a jovem estrela para o papel de Mark, apesar de o não considerarem como o típico aristocrata americano retratado no livro de Winston Graham
- A música de "Marnie" foi a última colaboração de Bernard Harmann com Hitchcock
- O filme estreou-se em Nova Iorque numa sessão dupla. O outro filme, "Never Put It In Writing", era interpretado por Pat Boone
- Depois de se ter visto impossibilitado de contratar Grace Kelly (por imposição da população do Mónaco, que não viram com bons olhos que a sua soberana voltasse ao mundo do cinema), e antes de se decidir por Tippi Hedren, Hitchcock ainda pensou nas actrizes Eva Marie Saint, Lee Remick, Vera Miles, Claire Griswold e Susan Hampshire. Catherine Deneuve declarou mais tarde em entrevistas que teria adorado interpretar o papel de Marnie
- O filme foi filmado entre 26 de Novembro de 1963 e 19 de Março de 1964, e teve um orçamento de cerca de 3 milhões de dólares
- A aparição de Hitchcock (cameo obrigatório em grande parte dos seus filmes), ocorre logo no início, a saír de uma porta no corredor do hotel onde Marnie se dirige para trocar de identidade
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