domingo, agosto 17, 2025

THE FLY (1986)

A MOSCA

Um filme de DAVID CRONENBERG



Com Jeff Goldblum, Geena Davis, John Getz, Joy Boushel, Les Carlson, George Chuvalo, David Cronenberg, Carol Lazare, etc.


EUA / 94 min / COR / 16X9 (2.35:1)


Estreia nos EUA a 4/8/1986
Estreia em PORTUGAL (Lisboa) a 5/2/1987 (cinema Londres)




«I always knew I had a great insect movie in me somewhere»
(David Cronenberg)



“A Mosca” fez a sua primeira aparição nas telas (sob esta espécie, claro) em 1958, no filme de Kurt Neumann, com Vincent Price no papel do protagonista. Foi uma obra que teve assinalável êxito comercial e péssimas críticas, tanto de cinéfilos como de fans de ficção científica. O êxito comercial (e para a Fox, detentora dos direitos da história de Langelaan foi só por isso que contou) determinou duas “continuações”: “The Return of the Fly” (Edward L. Bernds, 1959) e “The Curse of the Fly” (Don Sharp, 1965). Pela quarta vez, pois, “The Fly” voltou em 1986 para nos assustar (regressaria ainda em 1989, com “The Fly II” de Chris Walas, promovido a realizador). E o susto foi, certamente, muitíssimo maior que o dos fifties ou dos sixties. Se há filme de “arrepiar os cabelos” é o que vamos ver e, nessa perspectiva, ninguém terá decepções, nem mesmo o mais impassível. 



Se as antigas “moscas” eram filmes de Série B, muito baratos (embora a versão original da primeira, já tenha sido em cinemascope numa das primeiras apostas da utilização de tal formato a um género, em 58, ainda votado a gostos e espectadores pouco exigentes), esta obra de Cronenberg foi uma produção caríssima e os efeitos especiais são assinados pela famosa equipa de Chris Walas (“Scanners”, “The Return of the Jedi”, “Raiders of the Lost Ark”, “Gremlins”, ”“The Kiss", “Naked Lunch”) que aqui efectua o seu mais assombroso trabalho. Quando o co-argumentista Charles E. Pogue propôs ao produtor Stuart Cornfield (em 1984) uma nova versão de “The Fly” («a lot more disturbing and nightmarish»), o realizador escolhido foi Mel Brooks. Com tal nome, muita gente pensou numa comédia, embora a Fox se apressasse a dizer que não e recordasse “The horror side of Mel” associado já (como produtor) a um filme tão importante como “The Elephant Man” de David Lynch. 



Mel Brooks veio a afastar-se do filme e entrou David Cronenberg, a princípio relutante. Mas quando lhe foi dada a possibilidade de retrabalhar o script (e mesmo de o re-escrever), o autor de “The Brood” ou de “The Dead Zone”, apaixonou-se pelo tema. E foi sobretudo devido à sua capital colaboração (quer ao nível do argumento, quer ao nível da realização) que “The Fly” é muito mais do que um horror movie para se transformar, como nos seus mais conseguidos filmes anteriores ou posteriores, num filme em que o “horror” é mesmo horrível e não um compromisso entre os efeitos ou com os efeitos. Mais uma vez, com Cronenberg, passamos para o lado de lá: o lado do medo.



Numa das melhores sequências deste filme, essa palavra (medo) surge expressamente e dum modo que permite (muito habilmente) potencializar a passagem da publicidade à da alucinação. É quando Brundle tenta convencer a prostituta a entrar para o telépodo. Esta diz-lhe que tem medo (de modo convencional e em contexto banal) e Brundle responde-lhe no mesmo nível, que o não tenha («don’t be afraid»). Há um corte súbito e um fulgurante raccord com um contra-campo de Veronica (presença totalmente inesperada naquele momento e naquela situação, tanto para os outros personagens como para nós espectadores). E esta faz raccord verbal e sonoro, também, com a última frase de Brundle para dizer (e tudo passa a outro nível): «Be Afraid. Be very afraid». A frase veio em todos os cartazes publicitários, a sequência, a montagem, o plano, inscrevem-se noutro nível de mistério e de medo, o que, desde aí, não mais deixa de povoar o filme e de ultrapassar, em muito, a dimensão de guignol ou de “parada de horrores” (mesmo quando julgamos estar nela - como na sequência do primeiro aborto - descobrimos que nela não estamos e que esse horror “mais fácil” não era real, mas onírico). 



A propósito da primeira versão de “The Fly” escrevi, em tempos, que nesse filme se insinuava já uma dimensão kafkiana e recordei o famoso conto de Kafka do «homem que naquele dia acordou transformado num monstruoso insecto», sublinhando as associações (analistas) desse “fantasma” ao da castração (Freud ocupou-se largamente dele) e do horror aos insectos como expressão do pavor do incesto maternal e de horror aos órgãos genitais femininos. Cronenberg - e nisso reside a grandeza deste filme - soube (apesar das aparências e efeitos ou por causa das aparências e efeitos e já me explico) entrar nesses perigosos domínios (ou nesses terríveis domínios) com enorme contenção e sentido de elipse, tornando o que se passa “entre” ou “sob” muito mais importante do que o que nos enche os olhos e introduzir, por aí, essa tal dimensão alucinante. O espaço não me dá para mais do que três ou quatro exemplos e deixo-os a reflectir neles, sem que passe o medo que o filme provoca (e não o deixem passar).



O primeiro tem que ver com a erotização, já evidente na versão de Neumann. Por um lado, pela escolha duma relação triangular como base do filme (sua capital modificação do argumento inicial); por outro, pelo papel conferido ao personagem feminino, Verónica chamada. A relação triangular progride, de modo insólito, neste filme. Da primeira vez que vemos Borans e Verónica juntos, não suspeitamos que exista entre eles outra relação, que não seja meramente profissional, entre “empregada” e “patrão”. Verónica vai comer cheese-burgers com Brundle (já volto a isso, que é capital) e a relação entre estes, nessa sequência e nas seguintes, começa a ser visivelmente mais qualquer coisa. Regressa a casa (que, pela primeira e única vez, vemos) e já há um casal. Nessa altura, a banda sonora informa-nos e informa-a que alguém mais está ali. O espectador que sabe que está num filme de terror, prepara-se para o primeiro susto. A câmara parece prepará-lo, com o lento movimento no corredor obscurecido a acompanhá-la até à casa de banho. Quem lá está, banalmente, a tomar um duche é Borans, que só então sabemos ser o ex-amante dela. Banalmente? Sim e não. Porque está ali contra a vontade dela, contra o novo amor dela (Brundle) e para coisas que ela já não quer fazer com ele. O móbil era sexual, mas o sexo existe em elipse e nem sequer a nudez de Borans nos é mostrada.



A seguir, e durante muito tempo, Borans‚ ora um empecilho, ora um “porco” (como ela expressamente lhe chama) ora um voyeur (fica uma noite inteira a espiá-la) ora um antigo namorado excessivamente ciumento (sequência do Centro Comercial). Borans passa a parecer um personagem a mais. Mas é por causa dele que Verónica deixa Brundle sozinho na noite capital (e se recusa a contar-lhe a verdade) e é por causa dele (dos ciúmes dele) que Brundle, sozinho, se decide à experiência da auto-transmutação. Muito mais tarde, é a Borans que Verónica recorre, e o “porco”, o “homem que só pensava em sexo” transforma-se no elemento salvador, no anjo da guarda. E acaba com o corpo mutilado, metaforicamente castrado pelo “insecto” sem conseguir sequer segurar a espingarda para o matar. É Verónica - a mulher, a mãe - que acaba por ter que agarrar a espingarda e matar. 



Mas os tais pavores e horrores de que falava Freud são-nos docemente servidos. É Verónica quem toma (com Brundle) a iniciativa sexual e é ela quem lhe faz a conversa da carne (a associar com os bifes e os cheese burgers). Literalmente diz a Brundle que lhe apetece comê-lo, “como as velhinhas dizem que apetece comer bebés”. Tal fome passa-lhe quando o apetite de Brundle começa a ser excessivo e quando este a quer penetrar não na carne, mas no plasma. Daí para diante e à medida que todos os elementos carnais apodrecem e se volvem em vómito, em detrito (do apetecido corpo de Brundle, ao apetecido queijo, ao apetecido bife), Verónica fica ligada ao homem apenas pelo amor maternal (se quiserem, amor protector). À “coisa”, o que a liga é um amor que tem que se afirmar sobre (mas com) a repugnância física. E deixo aos analistas o estudo do sonho dela (a forma do imaginário bebé) ou do “resto de carne” que ela mata no final ou que ela castra no final. E é precisamente porque isso é tão decisivo, que todas as cenas de cama são elididas ou cortadas e que nenhuma nudez é mostrada neste filme. Os corpos belos existem em off, numa insinuação que tem a sua máxima expressão na portentosa sequência (quanto a mim, a melhor do filme) inteiramente muda, em que Verónica vê os exercícios físicos de Brundle no início da metamorfose. É o excesso do corpo o que primeiro a apavora, muito antes de se apavorar e todos nos apavorarmos com o excesso de ausência do corpo. 



Tinha prometido dois ou três apontamentos e já vou em muito mais. Mas não resisto, ainda, a chamar-lhes a atenção (quando já tiver passado o estado de choque) para a casa de Brundle. Vagamente assustada com o aspecto sinistro da rua, na primeira vez que lá vai, Verónica reage àquele “exterior”. Brundle responde-lhe que é mais limpo e mais claro “lá dentro”. O resto do filme se encarregará de nos esclarecer e de nos obscurecer. E se a carga erótica deste filme é tão grande (como em todos os grandes filmes de medo), a carga de ludus não é menor. Desde os efeitos especiais (especialíssimos) aos diálogos e às muitas citações cinéfilas. Destas últimas, uma das mais belas reenvia-nos ao arquétipo chamado King Kong quando Brundle (second element is not Brundle) a vem raptar à clínica e a leva pelos ares, depois de, num fabuloso plano subjectivo (em imenso plongé) se ter apercebido que ela e o outro se preparavam para lhe matar o filho. 



E tudo acaba na metáfora da Santíssima Trindade, com a fusão dos três corpos num só, the ultimate folly. Quem se pode impedir de se sentir frustrado, por não ver o resultado dessa experiência? “The Fly” acaba na mais portentosa (e tenebrosa) elipse. Aparentemente, “The Fly” é um filme de excessos. Fundamentalmente, é um filme de ausências. E acabo como a publicidade e como Verónica: «Be afraid. Be very afraid». Há muitas razões disso, muito mais fundamentais e originárias do que as que os sociólogos tentaram quando vos disseram que "The Fly" era um filme dos anos SIDA. Porque é o filme de dois mil anos de pecado. (João Bénard da Costa)



CURIOSIDADES:

- Depois de assistir a alguns de seus primeiros filmes, o director Martin Scorsese pediu para conhecer David Cronenberg. Ao conhecê-lo, Scorsese disse que ele parecia um cirurgião plástico de Beverly Hills. Isso inspirou Cronenberg a fazer uma aparição no filme como médico ginecologista, até porque lhe pedira isso também, para se sentir mais à vontade durante a rodagem daquela cena.

Foram necessárias quase cinco horas para aplicar as etapas mais extensas de maquilhagem de Jeff Goldblum .

David Cronenberg encontrou alguma oposição quando anunciou que queria contratar Jeff Goldblum para o papel principal. O executivo da Fox que supervisionava o projeto achava que Goldblum não era uma estrela rentável, e Chris Walas sentiu que o seu rosto seria difícil de trabalhar para os efeitos de maquilhagem. Ambos, no entanto, cederam ao julgamento de Cronenberg. O próprio Cronenberg mais tarde teve reservas quando Goldblum sugeriu Geena Davis, sua namorada na época, para o outro papel principal, pois ele não queria ter que trabalhar com um casal da vida real. Cronenberg finalmente convenceu-se após a primeira leitura de Davis de que ela era a actriz certa para o papel. E a química entre os dois actores teve uma motivação extra para as rodagens mais íntimas.

Quanto à sua relação criativa com Cronenberg, Walas afirmou que o director «é fascinante de se trabalhar. Ele é muito inteligente, observador e compreensivo, embora também seja desafiador e prestativo. Tem uma ideia muito clara do que quer e de como vê as coisas, então a fase de design tende a ser rápida. As suas orientações também tendem a ser mais emocionais e psicológicas do que as da maioria dos directores. A maioria descreve o que quer fisicamente. Mas as indicações de David eram mais como: 'Precisa sentir mais dor, e eu quero ver confusão em seus olhos'. Eu diria que o estilo de David é muito mais completo e abrange uma abordagem de design mais ampla do que a da maioria dos directores.»

David Cronenberg afirmou frequentemente que não vê o filme como um filme de terror, mas sim como uma metáfora para o processo de envelhecimento e doenças terminais, e como o impacto desumanizador no corpo humano é para a pessoa que o vivencia e para aqueles próximos a ela.

- Chris Walas e Stephen Dupuis venceram o Óscar para o melhor make-up. Cronenberg recebeu o prémio especial do júri do Festival Fantástico de Avoriaz. A Academia Americana de Ficção Científica, Fantasia e Horror atribuíu 7 nomeações ao filme, três das quais foram mesmo ganhas Melhor Filme de Horror, melhor actor (Jeff Goldblum) e melhor make-up (Chris Walas).

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