terça-feira, agosto 19, 2025

JOHNNY GOT HIS GUN (1971)

E DERAM-LHE UMA ESPINGARDA...
Um filme de DALTON TRUMBO



Com Timothy Bottoms, Kathy Fields, Marsha Hunt, Jason Robards, Donald Sutherland, Diane Varsi, Charles McGraw, Sandy Brown Wyeth, Donald Barry, etc.

EUA / 111 min / Cor e PB /
16X9 (1.66:1)

Estreia em FRANÇA (Festival de Cannes) a 14/5/1971 
Estreia nos EUA (NY) a 4/8/1971 
Estreia em PORTUGAL (Lisboa) a 23/7/1975 (cinema Império)



Joe: «I don't know whether I'm alive and dreaming 
or dead and remembering»

Dalton Trumbo (1905-1976) foi um prolífero e galardoado escritor de Hollywood, responsável por muitos e célebres argumentos de filmes: “Roman Holiday” (1953), “Spartacus” (1960), “Exodus” (1960), “The Sandpiper” (1965), “The Fixer” (1968), “Papillon” (1973) ou “Always” (1989) são alguns dos seus trabalhos mais conhecidos. Durante 6 anos (1943-1948) esteve filiado no Partido Comunista americano, o que o levou a ser integrado na célebre lista negra – os 10 de Hollywood – durante o período da “caça às bruxas”, tendo passado 11 meses na prisão federal em Ashland, Kentucky. Depois de cumprida a sentença, foi viver para o México, onde continuou a escrever para o cinema, mas sob os mais diversos pseudónimos. Chegou inclusivé a ganhar dois Óscares: o primeiro em 1954, com a assinatura de Ian McLellan Hunter, pelo filme “Roman Holiday”; e o segundo em 1957, dessa vez como Robert Rich, pelo filme “The Brave One”. Nos inícios da década de 60, Trumbo foi finalmente reintegrado no sindicato de argumentistas de Hollywood. O seu primeiro e único filme como realizador, seria este "Johnny Got His Gun". Com argumento também seu e baseado num antigo romance homónimo (publicado em 1937), o filme é um cruel e terrível manifesto anti-bélico. A acção é situada na Grande Guerra (mas poderá ser extensivo a qualquer outro conflito), e a situação descrita é a de um corpo sem membros e sem rosto de um soldado vitimado por uma explosão (Timothy Bottoms, no mesmo ano de "The Last Picture Show"), autêntico “tronco de carne” que deseja, interiormente, voltar a sentir o toque e o contacto com o mundo à sua volta. O filme visa o absurdo de qualquer guerra, mas fá-lo de uma forma brutal e horrenda, visando também o lado libertador da eutanásia (isto num filme de 1971!); e nunca cai na retórica fácil ou na prédica moralizante.


Com colaboração de Luis Buñuel, que dirigiu as sequências em que intervém Jesus Cristo (Donald Sutherland), o filme atingiu rapidamente o status de cult-movie, devido à sua pouca visibilidade, um pouco por todo o lado. Proibidissimo no tempo da ditadura, só depois de Abril de 1974, com o fim da censura, é que “Johnny Got His Gun” pôde ser apresentado em Portugal. Vi-o em ante-estreia, a 23 de Julho de 1975, no cinema Império, em Lisboa, integrado no XII Ciclo da Casa da Imprensa.


Trata-se de um filme impressionante, de uma espantosa violência. Não a violência vulgar dos tiros, dos murros, ou do sangue, mas a violência cruel e esmagadora duma realidade diabolicamente viva. De novo a guerra e as suas consequências – ou melhor, uma das suas mais dramáticas consequências. É a história de um homem destroçado, física e mentalmente. Joe Bonham (Timothy Bottoms) não é mais do que um pedaço informe de “carne inteligente”, designado por “casualidade não identificada nº 47”. Que teima em não morrer. A medicina e a ciência rejubilam com a vitória alcançada, ignorando o trágico sofrimento daquele ser e vislumbrando apenas matéria-prima para experiências. O médico que o “salvou” esconde-o dos olhos dos leigos e mostra-o como troféu aos seus pares - o  grande momento da sua carreira! Aos poucos, Joe vai-se apercebendo do seu estado real, descobrindo, angustiadamente, a falta do braço direito, do outro braço, das duas pernas e, finalmente, do rosto, substituído por um buraco disforme. 

Mas Dalton Trumbo vai mais longe. O seu filme é, também, uma crítica intransigente à mentalidade bélica dos americanos. Em nome de um falso patriotismo (habilmente transformado em sinónimo de interesses) tudo se sacrifica, tudo se justifica. Até (coloquemo-nos na época – 1918 – e no esquema social vigente) a própria virgindade de uma filha... pouco menos do que sagrada. Com efeito, partilhamos com Joe a sua primeira experiência sexual. A rapariga, Kareen (Kathy Fields), está em casa, sentada ao seu colo. O pai chega e surpreende-os em mútuas carícias. Espera-se uma descompostura e a expulsão do rapaz, tal como mandava a tradição na época. Mas após um breve lampejo de fúria a reacção é precisamente a oposta. Que diabo, Joe parte para a guerra no dia seguinte e há que lhe dar as honras devidas aos heróis, há que ser-se condescendente, há que ser-se patriótico. E o pai da moça convida-os a passar a noite no quarto.


Duplamente galardoado em Cannes (Prémio FIPRESCI e Grande Prémio do Júri), “Johnny Got His Gun” é de longe o melhor filme anti-guerra e pró-eutanásia jamais realizado. O seu grande horror, o que nos continua a perturbar ainda hoje, reside sobretudo no que não é mostrado no écran, uma vez que vemos apenas um lençol branco a cobrir os restos do que em tempos foi um homem. A imaginação transcende sempre a realidade, e Dalton Trumbo soube muito bem passar a sua mensagem. Quer filmando alternadamente a cores (para as fantasias e as lembranças) e a preto-e-branco (para a realidade) quer utilizando a voz-off para que o público pudesse ouvir os pensamentos de Joe Bonham. Socorrendo-se também de cenas de reportagens verídicas, Trumbo destribui a sua narrativa por vários hospitais, onde Joe é mantido em segredo, fechado em quartos vazios, mantido a soro e a oxigénio.

Num desses hospitais Joe encontra uma enfermeira que se interessa humanamente por ele: toca-o sem repulsa, beija-lhe a fronte, chega mesmo a masturbá-lo, ao dar-se conta que é um prazer que ele ainda é capaz de sentir. Entre os dois conseguem estabelecer uma via de comunicação (por sinais em linguagem morse) o que possibilita Joe a dar a conhecer o seu desejo: quer ser exibido de feira em feira, quer que as pessoas se apercebam daquilo que uma guerra pode criar. A recusa dos médicos a tal pedido é obviamente a reacção esperada e a Joe só lhe resta implorar por uma morte piedosa. Mas uma vez mais esbarra na cegueira de todos para quem a práctica da eutanásia é imoral, por muito desesperados que sejam os seus apelos. A enfermeira ainda tenta ir de encontro ao seu desejo final, mas é impedida nessa piedosa intenção e expulsa do quarto. «SOS...HELP ME...SOS...HELP ME...SOS...HELP ME...», é a mensagem final de Joe, antes do écran escurecer. Dalton Trumbo realizou um filme onde a fronteira entre a vida e a morte se reduz a uma linha terrivelmente difusa. Onde – ainda mais importante – a guerra e os sistemas políticos que a alimentam (quase sempre em nome da paz) são intransigentemente denunciados. Por alguma razão Dalton Trumbo foi um dos “malditos” do cinema americano.


CURIOSIDADES:

- Em 1989 segmentos do filme foram incluídos no videoclipe "One" do grupo Metallica. Eventualmente, a banda comprou os direitos do filme para poder continuar a exibi-lo nas suas apresentações ao vivo, sem ter que pagar royalties.

- John Lennon e o cineasta japonês Akira Kurosawa referiram-se a "E Deram-lhe Uma Espingarda..." como um dos seus filmes favoritos.

Quando o filme foi exibido no Festival de Cinema de Cannes, o público permaneceu em silêncio por vários minutos após o final.






4 comentários:

JC disse...

Talvez o filme mais deprimente que já vi.

José Morais disse...

Algo único na história do Cinema. Terrível e deprimente, sim, mas magnífico a todos os níveis. Uma pena que Dalton Trumbo não tivesse realizado mais filmes.

Billy Rider disse...

Um filme visceralmente perturbante. Mas por isso mesmo inesquecível. Para quem não conhece (e serão muitos) aconselha-se vivamente a recente edição em DVD no mercado nacional pela Cine-Digital.

ANTONIO NAHUD disse...

Preciso vê-lo urgentemente. Gosto do trabalho de Trumbo como roteirista.
Grato pela dica, Rato.
O Bottoms tinha tudo para se projetar. Não teve sorte.
Cumprimentos cinéfilos

O Falcão Maltês