Um filme de DALTON TRUMBO
Com Timothy Bottoms, Kathy Fields, Marsha Hunt, Jason Robards, Donald Sutherland, Diane Varsi, Charles McGraw, Sandy Brown Wyeth, Donald Barry, etc.
EUA / 111 min / Cor e PB /
16X9 (1.66:1)
Estreia em FRANÇA (Festival de Cannes) a 14/5/1971
Estreia nos EUA (NY) a 4/8/1971
Estreia em PORTUGAL (Lisboa) a 23/7/1975 (cinema Império)
Joe: «I don't know whether I'm alive and dreaming
or dead and remembering»
or dead and remembering»
Dalton Trumbo (1905-1976) foi um prolífero e galardoado escritor de Hollywood, responsável por muitos e célebres argumentos de filmes: “Roman Holiday” (1953), “Spartacus” (1960), “Exodus” (1960), “The Sandpiper” (1965), “The Fixer” (1968), “Papillon” (1973) ou “Always” (1989) são alguns dos seus trabalhos mais conhecidos. Durante 6 anos (1943-1948) esteve filiado no Partido Comunista americano, o que o levou a ser integrado na célebre lista negra – os 10 de Hollywood – durante o período da “caça às bruxas”, tendo passado 11 meses na prisão federal em Ashland, Kentucky. Depois de cumprida a sentença, foi viver para o México, onde continuou a escrever para o cinema, mas sob os mais diversos pseudónimos. Chegou inclusivé a ganhar dois Óscares: o primeiro em 1954, com a assinatura de Ian McLellan Hunter, pelo filme “Roman Holiday”; e o segundo em 1957, dessa vez como Robert Rich, pelo filme “The Brave One”. Nos inícios da década de 60, Trumbo foi finalmente reintegrado no sindicato de argumentistas de Hollywood. O seu primeiro e único filme como realizador, seria este "Johnny Got His Gun". Com argumento também seu e baseado
num antigo romance homónimo (publicado em 1937), o filme é um cruel e terrível manifesto anti-bélico. A
acção é situada na Grande Guerra (mas poderá ser extensivo a qualquer outro conflito), e a situação descrita é a de um corpo
sem membros e sem rosto de um soldado vitimado por uma explosão (Timothy Bottoms, no mesmo
ano de "The Last Picture Show"), autêntico “tronco de carne” que deseja,
interiormente, voltar a sentir o toque e o contacto com o mundo à sua volta. O
filme visa o absurdo de qualquer guerra, mas fá-lo de
uma forma brutal e horrenda, visando também o lado libertador da eutanásia (isto num filme de
1971!); e nunca cai na retórica fácil ou na prédica moralizante.
Com colaboração de Luis Buñuel, que dirigiu as sequências em que intervém Jesus Cristo (Donald Sutherland), o filme atingiu rapidamente o status de cult-movie, devido à sua pouca visibilidade, um pouco por todo o lado. Proibidissimo no tempo da ditadura, só depois de Abril de 1974, com o fim da censura, é que “Johnny Got His Gun” pôde ser apresentado em Portugal. Vi-o em ante-estreia, a 23 de Julho de 1975, no cinema Império, em Lisboa, integrado no XII Ciclo da Casa da Imprensa.
Trata-se de um filme impressionante, de uma espantosa violência. Não a violência vulgar dos tiros, dos murros, ou do sangue, mas a violência cruel e esmagadora duma realidade diabolicamente viva. De novo a guerra e as suas consequências – ou melhor, uma das suas mais dramáticas consequências. É a história de um homem destroçado, física e mentalmente. Joe Bonham (Timothy Bottoms) não é mais do que um pedaço informe de “carne inteligente”, designado por “casualidade não identificada nº 47”. Que teima em não morrer. A medicina e a ciência rejubilam com a vitória alcançada, ignorando o trágico sofrimento daquele ser e vislumbrando apenas matéria-prima para experiências. O médico que o “salvou” esconde-o dos olhos dos leigos e mostra-o como troféu aos seus pares - o grande momento da sua carreira! Aos poucos, Joe vai-se apercebendo do seu estado real, descobrindo, angustiadamente, a falta do braço direito, do outro braço, das duas pernas e, finalmente, do rosto, substituído por um buraco disforme.
Mas Dalton Trumbo vai mais longe. O seu filme é, também, uma crítica intransigente à mentalidade bélica dos americanos. Em nome de um falso patriotismo (habilmente transformado em sinónimo de interesses) tudo se sacrifica, tudo se justifica. Até (coloquemo-nos na época – 1918 – e no esquema social vigente) a própria virgindade de uma filha... pouco menos do que sagrada. Com efeito, partilhamos com Joe a sua primeira experiência sexual. A rapariga, Kareen (Kathy Fields), está em casa, sentada ao seu colo. O pai chega e surpreende-os em mútuas carícias. Espera-se uma descompostura e a expulsão do rapaz, tal como mandava a tradição na época. Mas após um breve lampejo de fúria a reacção é precisamente a oposta. Que diabo, Joe parte para a guerra no dia seguinte e há que lhe dar as honras devidas aos heróis, há que ser-se condescendente, há que ser-se patriótico. E o pai da moça convida-os a passar a noite no quarto.
Duplamente galardoado em Cannes (Prémio FIPRESCI e Grande Prémio do Júri), “Johnny Got His Gun” é de longe o melhor filme anti-guerra e pró-eutanásia jamais realizado. O seu grande horror, o que nos continua a perturbar ainda hoje, reside sobretudo no que não é mostrado no écran, uma vez que vemos apenas um lençol branco a cobrir os restos do que em tempos foi um homem. A imaginação transcende sempre a realidade, e Dalton Trumbo soube muito bem passar a sua mensagem. Quer filmando alternadamente a cores (para as fantasias e as lembranças) e a preto-e-branco (para a realidade) quer utilizando a voz-off para que o público pudesse ouvir os pensamentos de Joe Bonham. Socorrendo-se também de cenas de reportagens verídicas, Trumbo destribui a sua narrativa por vários hospitais, onde Joe é mantido em segredo, fechado em quartos vazios, mantido a soro e a oxigénio.
Num desses hospitais Joe encontra uma enfermeira que se interessa humanamente por ele: toca-o sem repulsa, beija-lhe a fronte, chega mesmo a masturbá-lo, ao dar-se conta que é um prazer que ele ainda é capaz de sentir. Entre os dois conseguem estabelecer uma via de comunicação (por sinais em linguagem morse) o que possibilita Joe a dar a conhecer o seu desejo: quer ser exibido de feira em feira, quer que as pessoas se apercebam daquilo que uma guerra pode criar. A recusa dos médicos a tal pedido é obviamente a reacção esperada e a Joe só lhe resta implorar por uma morte piedosa. Mas uma vez mais esbarra na cegueira de todos para quem a práctica da eutanásia é imoral, por muito desesperados que sejam os seus apelos. A enfermeira ainda tenta ir de encontro ao seu desejo final, mas é impedida nessa piedosa intenção e expulsa do quarto. «SOS...HELP ME...SOS...HELP ME...SOS...HELP ME...», é a mensagem final de Joe, antes do écran escurecer. Dalton Trumbo realizou um filme onde a fronteira entre a vida e a morte se reduz a uma linha terrivelmente difusa. Onde – ainda mais importante – a guerra e os sistemas políticos que a alimentam (quase sempre em nome da paz) são intransigentemente denunciados. Por alguma razão Dalton Trumbo foi um dos “malditos” do cinema americano.
CURIOSIDADES:
- Em 1989 segmentos do filme foram incluídos no videoclipe "One" do grupo Metallica. Eventualmente, a banda comprou os direitos do filme para poder continuar a exibi-lo nas suas apresentações ao vivo, sem ter que pagar royalties.
- John Lennon e o cineasta japonês Akira Kurosawa referiram-se a "E Deram-lhe Uma Espingarda..." como um dos seus filmes favoritos.
- Quando o filme foi exibido no Festival de Cinema de Cannes, o público permaneceu em silêncio por vários minutos após o final.
4 comentários:
Talvez o filme mais deprimente que já vi.
Algo único na história do Cinema. Terrível e deprimente, sim, mas magnífico a todos os níveis. Uma pena que Dalton Trumbo não tivesse realizado mais filmes.
Um filme visceralmente perturbante. Mas por isso mesmo inesquecível. Para quem não conhece (e serão muitos) aconselha-se vivamente a recente edição em DVD no mercado nacional pela Cine-Digital.
Preciso vê-lo urgentemente. Gosto do trabalho de Trumbo como roteirista.
Grato pela dica, Rato.
O Bottoms tinha tudo para se projetar. Não teve sorte.
Cumprimentos cinéfilos
O Falcão Maltês
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