É uma sequência célebre, está no “Les Quatre Cents Coups”, estreia de François Truffaut. lrreconciliado com a escola e a família, Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud), alter-ego de Truffaut e miúdo cheio de fome pela vida, anda pelas ruas de Paris, com um amigo, a fazer trinta por uma linha (e em francês, "faire les quatre cents coups" significa isso mesmo). No átrio de um cinema, eles deparam-se com a mesma foto da rapariga que reproduzimos em cima. Não resistem: roubam a foto e fogem a sete pés. A rapariga em questão é sueca e chama-se Harriet Andersson. Na foto, está cristalizado o esplendor dos seus 20 anos. Ela é a protagonista de “Mónica e o Desejo”, 12º filme de lngmar Bergman, rodado em 1953. Estreado em França com a classificação de M/16 e considerado um filme erótico (e não é que é mesmo, erótico e sibilino?), a sua reputação foi escandalosa. E hoje? Como será recebida esta "Mónica" no cinema Nimas por quem a descobrir agora pela primeira vez, 60 anos depois, e quase sete após a morte de Bergman? Há filmes bons, há maus, mas não há filmes velhos na história do cinema - e eis uma bela prova.
No extraordinário "Laterna
Magica", livro de memórias em que Bergman também viaja no tempo, fala-nos
o realizador sueco de uma paixão, Harriet Andersson, «alguém estranhamente
forte e vulnerável, com um talento atravessado por rasgos de génio (...) que
ora se deixa levar pela emoção da personagem ora inscreve a objectividade das
coisas. E o seu humor era cáustico, jamais cínico». É bem provável que o cinema moderno
(simbolicamente representado por esse inaugural “Les Quatre Cents Coups”) tenha
esperado por uma personagem e por uma actriz assim para eclodir. Por uma miúda vinda
do music hall que, em frente à câmara, não podia ser mais directa e
sensual. A Mónica de Bergman e de Harriet é pura incitação e revolta, gesto de
liberdade, convite à viagem. Continua a escapar-se entre os dedos sem tese ou
teoria que a limitem no tempo.
Harriet Andersson tem hoje 81
anos. Falámos com ela ao telefone entre Lisboa e Estocolmo. Uma das maiores
testemunhas do mistério do cinema de Bergman, ela começou naquele filme uma
próspera carreira e uma longa colaboração com o cineasta, com quem de resto viveu
alguns anos a seguir a “Mónica...”. Harriet recorda Bergman como um homem
doentiamente ciumento («pergunte a qualquer mulher que com ele tenha vivido: todas
lhe dirão o mesmo...»), mas também aquele a quem deve tudo como actriz. «Quando
o encontrei, em 1952, ele já era muito conhecido na Suécia. Tinha uma fama
tramada pois diziam que ele gostava de bater nos seus actores, coisa que nunca
fez ou que, pelo menos, nunca vi acontecer. E eu estava bastante nervosa por
causa disso. Para nós, “Mónica e o Desejo” era só um pequeno filme de verão e de
baixo orçamento. Não tínhamos a menor suspeita da importância que ele acabaria por ganhar na história do cinema.»
A Harriet pede-se uma história
de rodagem, uma memória especial, forçosamente passadista, sobre a sua
experiência de trabalho com Ingmar, mas a actriz prefere nada sublinhar. «Às
vezes também me perguntam qual é o meu filme favorito de Bergman. Mas eu nunca
digo qual é. E não digo porque não sei. É que gosto de todos. Francamente, gosto de todos. Ora isto não é
coisa que se possa dizer de um cineasta qualquer, pois não?» Também se procura explicação para 'isto': o que significa ver o cinema de
Bergman nesta alvorada de 2014? Sem ponta de saudosismo, a resposta da actriz é
puro gelo: «Receio que não signifique grande coisa. Mesmo aqui na Suécia, Bergman é um nome esquecido. As gerações mais novas não sabem sequer
quem ele foi. É claro
que isto me magoa, mas não há nada a fazer. Os tempos mudaram e os filmes
mudaram. Eu também já não vou ao cinema, não suporto pipocas e gente a falar ao
telemóvel, prefiro ficar em casa, sózinha, a ver DVD. Com o passar dos anos,
acho que estou cada vez mais parecida com uma personagem de Bergman…»
1 comentário:
Texto excelente. Parabéns.
Bons filmes,
www.cinemaschallenge.com
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