quarta-feira, janeiro 01, 2014

O QUE É UM ROUND-ROBIN?


É o meu anti-herói favorito. Ia apresentá-lo e ele interrompe-me: «A minha biografia? Para quê? Basta ir às esquadras de Los Angeles. Está lá tudo.» E, no entanto, apesar do abundante cadastro policial, Robert Mitchum é um rio tranquilo. Nasceu cansado. Macho e cansado. O segredo das suas personagens é serem homens robustos, sólidos como armários, mas cansados de esconder as coisas que nem palavras lentas, nem gestos quase imperceptíveis, conseguem dizer. Mitchum, por exemplo, escondia uma ferocíssima gentileza. Cantava e compunha. Escrevia poemas e prosa. De "Out of the Past" a "Angel Face", a emoção de Mitchum é uma emoção ferida. Se lhe dissessem que tinha um olhar inexpressivo, ainda se diminuiria mais: «Consigo ter três expressões: olho para a esquerda, olho para a direita e olho a direito.» Tinha sentido de humor, quero dizer, o corpo de Robert Mitchum tinha sentido de humor. 


O físico dele não tem nada de cómico, como o corpo bailarino de Chaplin ou o corpo acolagénico e desdobrável de Jerry Lewis. Tem o humor subtil de um actor que, quando era miúdo, queria ser invisível. «A beleza desse gajo - disse Lee Marvin - é parecer tão quieto. Mexe-se. E a verdade é que não se está a mexer.» A preguiçosa calma dele era inspiradora. Em "Farewell My Lovely", Mitchum engata uma incendiária Charlotte Rampling: - «Para minha casa?», pergunta ele; - «Para quê? Tens tudo o que é preciso contigo», jura ela. E tinha. Um metro e oitenta de falsa timidez, cabelos escuros e olhos azuis. Não ia ter com as mulheres porque as mulheres vinham ter com ele, mas gozou um casamento de 57 anos com a namorada de juventude.


Marilyn deu-se bem com Mitchum no "River of No Return". Provocou-o: «Nestas filmagens uma rapariga não se diverte grande coisa.» O duplo de Mitchum lançou-lhe logo o anzol: «Ah sim? Que tal um round-robin Sabia lá bem Marilyn o que era um round-robin. O duplo de Mitchum explicou-se em francês: um ménage à trois, mas em duetos. Ela e ele, ela e Mitchum. «Oooohh, era coisa para me matar», riu-se ela. «Ninguém morreu disso», arriscou ele. Premonitória, ela não desarmou: «Aposto que sim. Só que nas notícias, depois dizem que a rapariga morreu de causas naturais.»


E Mitchum calado. Como calado ficou, nos ensaios, ao ouvir a professora de dicção de Marilyn pedir-lhe que desse ênfase a cada frase. Preminger, o realizador, estava siderado com a violência dos movimentos da boca dela. Era impossível filmá-la. Bem pedia que ela relaxasse e nada. Quando foram filmar, Mitchum deu uma palmada amorosa no inenarrável rabo de Marilyn: «Agora acaba com o disparate e fala como um simples ser humano.» E ela, como se a língua do Espírito Santo lhe caísse em cima, começou a falar normalmente. O anti-herói favorito, digo eu, é aquele a quem invejamos a mão.
(Manuel S. Fonseca in revista Atual do semanário Expresso, 28/12/2013)

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