É
o meu anti-herói favorito. Ia apresentá-lo e ele interrompe-me: «A minha
biografia? Para quê? Basta ir às esquadras de Los Angeles. Está lá tudo.» E, no
entanto, apesar do abundante cadastro policial, Robert Mitchum é um rio
tranquilo. Nasceu cansado. Macho e cansado. O segredo das suas personagens é
serem homens robustos, sólidos como armários, mas cansados de esconder as
coisas que nem palavras lentas, nem gestos quase imperceptíveis, conseguem
dizer. Mitchum, por exemplo, escondia uma ferocíssima gentileza. Cantava e
compunha. Escrevia poemas e prosa. De
"Out of the Past" a "Angel Face", a emoção de Mitchum é uma
emoção ferida. Se lhe dissessem que tinha um olhar inexpressivo, ainda se
diminuiria mais: «Consigo ter três expressões: olho para a esquerda, olho para
a direita e olho a direito.» Tinha sentido de humor, quero dizer, o corpo de
Robert Mitchum tinha sentido de humor.
O físico dele não tem nada de cómico,
como o corpo bailarino de Chaplin ou o corpo acolagénico e desdobrável de Jerry
Lewis. Tem o humor subtil de um actor que, quando era miúdo, queria ser invisível.
«A beleza desse gajo - disse Lee Marvin - é parecer tão quieto. Mexe-se. E a
verdade é que não se está a mexer.» A
preguiçosa calma dele era inspiradora. Em "Farewell My Lovely",
Mitchum engata uma incendiária Charlotte Rampling: - «Para minha casa?»,
pergunta ele; - «Para quê? Tens tudo o que é preciso contigo», jura ela. E
tinha. Um metro e oitenta de falsa timidez, cabelos escuros e olhos azuis. Não
ia ter com as mulheres porque as mulheres vinham ter com ele, mas gozou um
casamento de 57 anos com a namorada de juventude.
Marilyn
deu-se bem com Mitchum no "River of No Return". Provocou-o: «Nestas
filmagens uma rapariga não se diverte grande coisa.» O duplo de Mitchum
lançou-lhe logo o anzol: «Ah sim? Que tal um round-robin?» Sabia lá bem Marilyn o que era um round-robin. O duplo de Mitchum explicou-se em francês: um ménage à trois, mas em duetos. Ela e ele,
ela e Mitchum. «Oooohh, era coisa para me matar», riu-se ela. «Ninguém morreu
disso», arriscou ele. Premonitória, ela não desarmou: «Aposto que sim. Só que
nas notícias, depois dizem que a rapariga morreu de causas naturais.»
E
Mitchum calado. Como calado ficou, nos ensaios, ao ouvir a professora de dicção
de Marilyn pedir-lhe que desse ênfase a cada frase. Preminger, o realizador,
estava siderado com a violência dos movimentos da boca dela. Era impossível
filmá-la. Bem pedia que ela relaxasse e nada. Quando foram filmar, Mitchum deu
uma palmada amorosa no inenarrável rabo de Marilyn: «Agora acaba com o
disparate e fala como um simples ser humano.» E ela, como se a língua do Espírito
Santo lhe caísse em cima, começou a falar normalmente. O anti-herói favorito,
digo eu, é aquele a quem invejamos a mão.
(Manuel S. Fonseca in revista Atual do semanário Expresso, 28/12/2013)
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