17 de fevereiro de 1960, 21h30: a Filmitalus (uma distribuidora
que já não existe) estreia no Império (uma sala de cinema que mudou de ramo)
"Sorrisos de Uma Noite de Verão", um "estudo audaz sobre as
diversas facetas do amor, um filme original, picante, que apresenta situações
amorosas singulares e surpreendentes", dizia a publicidade publicada nos
jornais que acrescentava ser o filme só para adultos, maiores de 17 anos. No
dia seguinte, o Visor 27 do "Diário de Lisboa" chamava-lhe
"filme desusado" e acrescentava que "de qualquer maneira
recomendamo-lo sinceramente a todos". Foi assim que Bergman chegou a
Portugal, com um filme atrasado cinco anos (os "Sorrisos ..." são de
1955) que era o seu 16º, já ele se tornara uma celebridade internacional e nós
por cá ainda nada. Mas fez sucesso, um bom sucesso - esgotou sessões no cinema
da Alameda que tinha 1418 lugares, não era nenhuma saleta de centro
comercial...
Não tardou que outros filmes lhe viessem no rasto. "Morangos
Silvestres" ainda em 1960, "Uma Lição de Amor" e "A Fonte
da Virgem" em 1961, "O Rosto" e "O Olho do Diabo" em
1962, "Um Verão de Amor" e "O Sétimo Selo" em 1963,
"Mónica e o Desejo" e "Luz de Inverno" em 1964 - e por aí
fora. Quem se dê ao trabalho de confrontar datas de produção e de estreia em
Portugal concluirá que, até muito tarde, até aos anos 80, não conseguimos
acertar o passo com a sua obra, andámos a ver filmes desordenadamente, até porque,
pelo caminho, além de cortes (os seios de Harriet Andersson em "Mónica...", é claro) e diálogos por traduzir
(a confidência erótica de Bibi Andersson, em "A Máscara", evidentemente),
houve pura e simples proibições ("O Silêncio" e "Noite de
Circo" só os vimos depois do 25 de abril). Alguns houve que nunca estrearam
comercialmente e só foram mostrados na Cinemateca, em 1989. Um deles é "A
Prisão" que abriu, anteontem, a grande enxurrada de filmes de Bergman no Nimas e que
poderá ser visto, de novo, em fevereiro.
Corriam os anos 60 pela metade quando comecei (e comigo, toda uma
geração que, por esse tempo, chegava à juventude)
a ver os filmes de Bergman. Os jovens cinéfilos que então éramos, já tinham
visto Ford, Lang ou Anthony Mann, mas o cinema era, sobretudo, um lugar de
entretenimento. Só que em Bergman entrava pelos olhos dentro que ele estava a
lidar com grandes questões: Deus, a morte, o sentido da vida, o sofrimento, a
redenção dos simples. E fazia-o com uma estética severa e numa língua áspera e
impossível de entender (a sorte que nós tivemos em ouvir Bergman em sueco, Dreyer em dinamarquês, Wajda em polaco,
Eisenstein em russo!...). Aquilo fazia o cinema subir três degraus (quem podia ver a procissão dos flagelados de "O Sétimo Selo"
e não pensar na grande pintura), era uma arte, sem dúvida, e uma coisa que se podia discutir com vera dignidade. Ainda por cima, eram temáticas
que cruzavam imenso com o catolicismo que nós, em larga maioria, professávamos, mesmo que em trânsito para outras interpretações do
mundo.
Bergman foi, pelo menos para uma geração, o rastilho para que
começássemos a olhar o cinema com uma gravidade que, antes, não supúnhamos
adequada. Por outro lado, também estes filmes nos ensinavam que o cinema não é
feito (só) de histórias, mas (sobretudo) de modos de as contar: os flashbacks
de "Morangos
Silvestres" em que Isak Borg não deixa de ser velho quando se visita em
miúdo no seio da família; o fixo olhar de Harriet Andersson na nossa direção,
mesmo no fim de "Mónica e o Desejo", quando estamos prestes à sua condenação moral e esse olhar nos interpela,
silencioso, a perguntar que direito temos de o fazer; os corredores desertos do
hotel de "O Silêncio", onde se fala uma língua ignota e há portas que
dão para coisas inomináveis; a mulher que fala do lado de lá da morte, já
cadáver e em decomposição, num uivo da mais abissal das solidões (e não é um
fantasma, não é uma morta-viva, não é uma ressuscitada, é mesmo um cadáver), nesse
"Lágrimas e Suspiros" em que tudo se funde em vermelho; o labirinto
indecifrável de "A Máscara", com cenas em que nos perdíamos, subjugados,
em leituras tão díspares que nunca encontrámos um fio que fechasse o filme.
Há hoje a hipótese de tão cativantes encontros no ecrã do Nimas?
Quero acreditar que sim, pois há gerações que, muito provavelmente, nunca viram
um filme de Bergman num grande ecrã e na sala escura. E a sua obra é de tal
modo soberba que não há indiferenças que resistam. Não vale pedir que aqui se
trie essa obra por ordem de hipotéticas prioridades. Entre os 17 filmes que
Paulo Branco agora comprou, não há coisas descartáveis.
1 comentário:
O primeiro Bergmann que vi, foi «Morangos Silvestres» no velho Império. Então, percebi muito pouco, mas fiquei com a certeza que seria um realizador que iria acompanhar pelos tempos. Continuo a ter dificuldades com os seus filmes mas nunca desisto. Vou vendo e revendo, vão-se fazendo luzinhas...
Um cineasta único e o tempo de Paulo Branco voltar a prestar serviço público.
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