domingo, outubro 27, 2013

COM PENA MINHA, NÃO CHEGUEI A GANGSTER

Não tenho nenhuma vontade de morrer. Se pudesse não morrer, não morria. Mas se fosse um amigo, o meu melhor amigo, a matar-me, talvez não me importasse de morrer. Já me devia ter passado estra treta de ver filmes e pensar que vão acontecer-me as mesmas coisas. "Stand Up Guys" é um filme de velhos gangsters e eu, velho embora, com muita pena minha, não cheguei a gangster.


O filme começa com Al Pacino a sair da cadeia. À espera, Christopher Walken, de pé, junto ao carro. Não escondem os 70 anos que têm em cada perna. Olham-se, aproximam-se, abraçam-se com a delicadeza, a hostilidade amiga e a lamechice que a idade proíbe e autoriza. Só lhes falta beijarem-se. São duas sombras que se amam e se confiam. Num abraço, entregam as saudades que tiveram um do outro.



Pacino passou 28 anos na cadeia. Antes, com Walken, assaltou, matou, viveram. Um reencontro destes merece festa e farra. Pacino quer espantar a perda, com uma tonelada de alegria, coca, álcool e sexo. Walken faz a mesma coisa, mas com um casaco de tristeza, dois versos elegíacos nos bolsos das calças. Al Pacino está a divertir-se de mais. E ele sabe porquê. A sua morte está anunciada e encomendada. O mau do filme, que é mesmo mau, hipóstase de todo o mal, culpa-o da morte do filho, no tiroteio que levou Pacino à prisão. Na cadeia, pensou que o matariam logo, até perceber que, com crueldade assassina, o fariam passar 28 anos a temer a própria sombra, mas seria já livre que alguém o iria liquidar.


Queria dizer-vos que pouco me interessa se "Stand Up Guys" é um bom ou mau filme. A minha especialidade, agora, é uma especialidade de velhos: pequeninas cenas. E, mais de meia hora de filme, entre sorrisos e breve passagem pelas brasas, cai-me no colo uma cena sublime. Estão sentados, num restaurante. A luz, as espessas cores nocturnas, foram roubadas à pintura de Hopper. Derrama-se da cabeça de Pacino uma serenidade cardinalícia. Quer saber: «Quem é que vai fazer a coisa?» «Qual coisa?», diz o seráfico Walken. «Sabes muito bem...» E evitando o desconforto do amigo, diz-lhe, num murmúrio, o que já adivinhou: «És tu?» Diz-lhe isso, meigo, quase a sorrir e insiste: «C'mon man, say it's you!»


Os olhos de Walken piscam e a voz sai-lhe linda, concordante, mais em sol do que em dó, soltando um «It's me» que bem podia ser um «I love you». A câmara fica na cara dele: não se mexe um milímetro daquela pele, olhos parados no tempo, boca ligeiramente entreaberta. Alívio amargo-doce no rosto de Pacino. Estamos ali, campo, contracampo, do grande plano da cara de um para o grande plano da cara do outro. Está ali a morte sentada e ouve-se um silêncio de 10,15 segundos. Podia criar-se o mundo, um big bang, nesse silêncio. Gostava de morrer assim, como Pacino, em boas mãos.
(Manuel S. Fonseca in revista Atual, Expresso, 26/10/2013)

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