segunda-feira, agosto 17, 2015

A AMÉRICA CONTRA CHAPLIN

Nascido a 16 de Abril de 1889, em Londres, Inglaterra
Falecido a 25 de Dezembro de 1977, em Vevey, Suiça
"I remain just one thing, and one thing only, and that is a clown. 
It places me on a far higher plane than any politician"

Charles Spencer Chaplin morreu num dia de Natal. Como por força dum destino implacável, neste dia em que quase todos os homens suavizam um pouco a sua existência, desapareceu também aquele que, para os da minha geração (e outras gerações mais antigas) personificava de certa forma os nossos tempos de crianças sonhadoras. Ainda hoje me lembro daquelas sessões de filmes de 8 mm que costumavam acontecer na minha meninice, e nas quais o meu pai projectava na parede (e mais tarde num pequeno écran cuja montagem me estava invariavelmente atribuída) os últimos filmes de família recebidos em pequenas bobinas de caixa amarela, com cerca de 3 minutos cada, e que ele tinha a paciência enorme de colar uns aos outros. Mas nenhuma dessas sessões acabava sem que fossem passados alguns pequenos filmes do Charlot, a figurinha do vagabundo que entrou no meu imaginário infantil, muito antes de que me apercebesse do significado dessa arte chamada Cinema. Tal como escreveu o cineasta francês  Jean-Claude Biette pouco depois da morte de Chaplin: «antes da multiplicação das televisões, Charlot era uma das primeiras pessoas que uma criança deste século conhecia, logo a seguir aos pais».


Recebido por chefes de estado e cumprimentado por reis, Chaplin foi um dos mais geniais criadores da primeira metade do século XX. Para exprimir o seu pensamento, para dar vida à personagem que lhe permitiu alcançar a glória universal, Chaplin serviu-se do cinema, isto é, de uma forma de expressão que practicamente não existia antes dele. Pegou naquelas maquinetas, ainda rudimentares, e descobriu-lhes o verdadeiro uso, que em poucos anos levou ao mais alto grau de perfeição. O filme mudo parece ser hoje em dia, e cada vez mais, um aspecto incompleto do cinema; mas nele reside, contudo, a essência da arte cinematográfica. As invenções técnicas que lhe foram sendo trazidas ao longo dos anos fizeram, em geral, desviar esta arte do seu caminho em vez de enriquecê-la. O suporte de uma obra admirável que Chaplin construíu durante dezenas de anos desmoronou-se, deixou de existir – é, agora, uma forma caduca, que tem apenas um encanto arcaico e um valor de museu.


Mais do que a sua pessoa, é a presença dessa humilde, solitária e apaixonada figurinha de vagabundo clownesco que ficará eternamente gravada na memória do mundo. É extremamente difícil falar do que se sente parte integrante de nós próprios. Charlot simbolizava o mito, ou melhor, a sua expressão viva. Por causa da sua forma tão peculiar de encarar a vida, de fazer sobressair a injustiça, a dor e a alegria, vimo-nos obrigados a herdar pedaços desse comportamento simples e desinteressado dos oportunismos mundanos. Também nós desejamos intimamente essa visão chaplinesca do universo. E o espaço ilusório que ele representava, e que no fundo constituía o verdadeiro segredo para a conquista dos corações do mundo, continua ainda a existir, apesar de todas as transformações ocorridas nestas últimas décadas. E pessoalmente ficaria muito agradado se soubesse que a sua obra poderá ainda vir a cativar muitas outras gerações. Penso que sim, que isso irá acontecer.


Charlot só teria sido possível na América. E, no entanto, Chaplin manteve-se sempre europeu: ele é verdadeiramente inglês pelas raízes da sua arte pantomímica e pela sua experiência de criança esfomeada nas ruas da Londres vitoriana («Nesses dias longínquos, lutava contra a fome e o medo do amanhã, o medo constante do amanhã. Nenhuma prosperidade me poderá libertar desse medo. Sou como um homem que estivesse habitado por um espírito: o espírito da pobreza, o espírito da privação»). Da América, aproveitará a sua ingenuidade, a sua pureza esquemática, mas não só não se alienou à cegueira da civilização yankee como manteve a nobreza do seu coração e a acutilância da sua inteligência ligadas às lembranças da sua Europa.


Chaplin teve sérios problemas com as autoridades americanas, que não lhe perdoavam a independência e a liberdade de pensamento. Isso hoje poderá parecer um contra senso mas convém recordar que, na América, os  anos 30 e 40 não foram propriamente tempos de grandes tolerâncias. Depois de vários escândalos sentimentais em que se viu envolvido, a sua obra-prima de 1936, “Tempos Modernos”, é acolhida com frieza pela crítica que o acusa de fazer propaganda comunista. A partir daí inicia-se uma autêntica perseguição ao cineasta. Em Outubro de 1940, aquando da sua estreia em Nova Iorque, “O Grande Ditador” é uma vez mais ostracizado, desta vez também pelo público, que não se quer ver envolvido na Guerra Mundial em curso na Europa. E o hoje célebre discurso que encerra o filme é mal compreendido tanto pela esquerda, que o acha ingénuo, como pela direita, que o vê apenas como mais uma provocação “comunista”.


Em 1947 um deputado da Câmara de Representantes chega mesmo a pedir a sua expulsão dos E.U.A., ao mesmo tempo que “Monsieur Verdoux” (mais uma obra de puro génio) é proibido em vários estados, depois de ter sido apupado na estreia, em Nova Iorque. Um representante dos Antigos Combatentes Católicos acusa Chaplin de manchar a imagem da América e sucedem-se as convocações para prestar declarações ao Comité McCarthysta de Actividades Anti-americanas. Chaplin recusa comparecer, declarando à imprensa ser apenas um pacifista, mas as pressões constantes levam-no a vender as suas acções da United Artists. Dois anos depois Chaplin começa a trabalhar num novo filme, “Luzes da Ribalta”, cujas filmagens se concluem no início de 1952. Em Setembro a família embarca para Londres e, ainda durante a viagem, é-lhes comunicado que o Ministro da Justiça, James MacGranery, anunciou a abertura de uma averiguação sobre Chaplin, pelas suas “simpatias comunistas”, negando-lhe o visto de retorno para assim o impedir de voltar a pisar solo americano.


“Luzes da Ribalta” estreia-se nesse mesmo ano em Inglaterra e a Legião norte-americana proíbe a sua exibição em alguns estados. Oona O’Neill (a quarta esposa de Chaplin, filha do famoso dramaturgo Eugene O’Neill) liquida os bens do marido nos E.U.A., e renuncia ela própria à nacionalidade americana. A família fixa-se então na Suíça, numa propriedade situada em Corsier-sur-Vevey. Em 1954 Chaplin recebe o Prémio Internacional da Paz e três anos depois estreia “Um Rei em Nova Iorque” . Na América a campanha contra o cineasta não pára de crescer, chegando ao ponto do seu nome ser retirado do Passeio da Fama de Hollywood. Em Setembro de 1964 é publicada a sua auto-biografia “A História da Minha Vida” e no início de 1967 sai aquele que seria o seu derradeiro filme, “A Condessa de Hong Kong”, com Marlon Brando e Sophia Loren nos principais protagonistas. Finalmente, em 1972, a América resolve fazer as pazes com o velho cineasta e, muito diplomaticamente (ou muito cinicamente, conforme o ponto de vista), confere-lhe um Óscar Especial, ao mesmo tempo que repõe o seu nome no Passeio da Fama. Depois de vinte anos de exílio, Chaplin chega a Nova Iorque a 2 de Abril e a 16 de Abril recebe o Prémio em Hollywood. A 4 de Março de 1975 é condecorado em Londres pela Rainha Isabel II e, até ao fim da sua vida, refugia-se no seu solar na Suiça. Tinha 88 anos quando adormeceu naquela noite de Natal, para nunca mais acordar.


Recordemos o que Dinis Machado escreveu na revista Opção, nessa quadra natalícia de 1977: «Hoje, dia de Natal (que notícia mais estranha, ouvida a olhar para o pinheiro), morreu a alegria ela mesmo, a melancolia ela mesmo, a esperança ela mesmo, a geometria exacta do lirismo: morreu Charles Chaplin. Realmente, só faltava esta: morrer o Chaplin. Não era possível, realmente, descobrir notícia mais interessante, realmente, para dar no dia de Natal, do que nos virem dizer que morreu o Chaplin. O que vale, menino, é que já nada nos surpreende. Cá por mim, íntimo de Charlot até à última costela, que passei com ele as passas do Algarve, já nem ligo. O meu amogo Charlot, ninguém o mata. É o matas. Seria matar esta gargalhada que ainda houje dou, esta fraternidade de estar de pé, para estar de pé. Nisso, sou intransigente. Ninguém mata o Charlot porque eu não quero. Ninguém mata as luzes da cidade, ninguém mata as quimeras de oiro.»



FILMOGRAFIA (Longas-metragens):

1967 – A Countess from Hong Kong / A Condessa de Hong Kong
1957 – A King in New York / Um Rei em Nova Iorque
1952 – Limelight / Luzes da Ribalta
1947 – Monsieur Verdoux / O Barba-Azul
1940 – The Great Dictator / O Grande Ditador
1936 – Modern Times / Tempos Modernos
1931 – City Lights / Luzes da Cidade
1928 – The Circus / O Circo
1925 – The Gold Rush / A Quimera do Ouro
1923 – A Woman of Paris / A Opinião Pública
1921 – The Kid / O Garoto de Charlot


2 comentários:

Alexandre Macedo disse...

Parabéns pelo texto. Fiquei feliz com a lembrança de Monsieur Verdoux, uma obra-prima subestimada. Chaplin era um gênio, como ator e diretor.

Ah, sim, recomendei seu site no meu blog. Depois dê uma olhada - é uma espécie de corrente blogosférica. Saudações!

Faroeste disse...

Não adianta inventar outro, apesar do cinema ter criado muito bons comediantes, mas Charles Chaplin é insubstituível, inigualável, unico.
Não vai aqui nenhum elogio grátis, uma vez meu ponto de vista não é unico.
E vejamos, assim como sejamos acima de sinceros: ele merece tudo isto e até muito mais.
jurandir_lima@bol.com.br