quarta-feira, agosto 11, 2010

CARY GRANT POR PETER BOGDANOVICH

Nos finais de 1971, mais ou menos na altura em que "The Last Picture Show" se estreava na América (que foi depois de o meu pai ter morrido e depois de o meu casamento se ter desfeito), Harold telefonou- me de Nova lorque para me perguntar se estava interessado em ter uma coluna mensal na revista.

- «Sobre quê?», perguntei.
- «Hollywood»
- «Que assuntos?»
- «Os que quiseres. Tudo menos críticas de filmes. Não há nada que te interesse dizer de Hollywood, c'os diabos?»

Bem, é claro que sim, e o texto que se segue apareceu como a minha quarta. coluna (que se chamava, como seria de esperar, mas um pouco ironicamente julgo eu, considerando a natureza da revista, Hollywood). O tema, Cary Grant, telefonou-me algumas semanas depois de ter sido publicado. «Bom» disse-me ele, «o que espero é que leia isso no meu enterro» Um ano depois, contudo, ofereceu-me um belo final para o artigo, por isso considerei o seguinte um P.S.

Estávamos no Beverly Wilshire Hotel numa gala em honra de John Ford. Cary estava óptimo como sempre e cheio de alegria - mas também nunca ouvi dizer o contrário e nunca o vi em baixo. Cybill Shepherd estava comigo. «Vi-va, bel-da-de!», disse de maneira que só ele sabe, e fiquei sem ela toda a noite. No balcão das reservas, Cary inclinou-se para uma das senhoras de meia-idade que verificavam os nomes e disse

- «Vi-va! Esqueci~me do meu bi-lhete - lamento muito - posso entrar, se faz favor?»
Ela olhou-o cepticamente: - «Como se chama?»
- «Cary Grant»
Ela disse, impenetrável, - «Não se parece com Cary Grant»
De imediato Cary disse alegremente, - «Eu sei - ninguém parece»


Cary Grant foi a primeira super estrela que conheci. Foi uma experiência estranha entrar num escritório da Universal - isto foi em 1961 - e dar de caras com um homem que não me conhecia, mas que eu conhecia desde que me lembrava. Tinha acabado de sair de uma reunião em que se discutiam argumentos, o cabelo estava em desalinho, não se barbeava há um ou dois dias, e as calças escuras e a camisa branca pareciam ter sido usadas para dormir. Clifford Odets era um amigo comum - nessa altura ainda era vivo - e tinha pedido a Cary para me receber, por isso falámos um pouco de Clifford, e não me lembro de uma única palavra do que dissemos. O meu espírito estava inundado de imagens dos filmes de Cary Grant que tinha visto - e estava dominado por um estranho desejo de ser bestialmente honesto e aberto para ele, embora compreendesse que isto poderia afastá-lo. É um sentimento que tive em relação a várias estrelas de cinema que conheci - conhecê-las de uma forma tão completa como nunca elas me poderão conhecer a mim - e descobrir que é impossível ultrapassar satisfatoriamente o fosso. Só conseguia pensar em como se parecia com a sua imagem cinematográfica - o mesmo charme, o mesmo humor, o ar de mistério não fabricado mas nítido. Pensava, «É mesmo como Cary Grant» A única difierença que encontrei foi a de nunca o ter visto rir-se no écran como na vida - porque realmente ri-se, os olhos escorrem lágrimas e é alegre e brincalhão.


Deve ter sido uma conversa excitante desse ponto de vista - este miúdo a olhar para ele aparvalhadamente e a tentar não parecer completamente atrasado mental. Se ele deu conta, nunca o mostrou - era a graciosidade em pessoa. Penso que estava habituado a este tipo de reacção - era uma estrela há mais ou menos vinte e cinco anos - e devia ter encontrado uma data de desajeitados. (Disse-me alguns anos depois que às vezes há pessoas que o vêm ver só para lhe pedir que diga qualquer coisa - seja lá o que for - só o querem ouvir falar).
É claro que não foi a sua celebridade que me impressionou; conheço muitas estrelas que nunca poderiam impressionar-me, mas Cary Grant foi sempre um dos meus três ou quatro actores favoritos, e certamente uma de um punhado de grandes personalidades do cinema. Contudo, o que o distingue de todos os outros - algo de especialmente pertinente nesta época em que o sistema de estúdio desapareceu - é o facto de Cary ter sido a primeira estrela a tornar-se independente. Desde que o seu contrato com a Paramount acabu em 1936, Grant nunca mais assinou em exclusivo para qualquer companhia. Por isso, ao contrário de qualquer outra estrela (até aos inícios dos anos cinquenta), foi ele a escolher os argumentos e os realizadores com quem desejava trabalhar; nenhum executivo lhe escolheu os filmes, nunca foi forçado a fazer coisas de que não gostasse. Grant era responsável pelos seus materiais, e construiu o arco da sua carreira, moldou a sua persona cinematográfica através das suas próprias opções, coisa que homens como Bogart ou Cagney ou Tracy ou Cooper nunca puderam fazer. É significativo, de facto, que esta característica sua não começasse a ser notada senão depois da sua ligação à Paramount ter acabado.
Até então, pouco mais era que uma primeira figura masculina apreciável, levemente desajeitada e bastante convencional numa fieira de filmes para esquecer. Se alguém se lembra de o ver contracenar com Mae West em "She Done Him Wr.ong" ou com Marlene Dietrich em "Blonde Venus", de Josef von Sternberg, é porque é tão surpreendentemente diferente do Cary Grant futuro.


Começamos a notar a diferença pela primeira vez em "Sylvia Scarlet", de George Cukor (1935), e dois anos depois, desta vez quase atingindo a perfeição, em "The Awful Truth", de Leo McCarey, em 1938, com "Holiday" de Cukor e "Bringing Up Baby" de Hawks, o nome de Cary Grant tornou-se sinónimo de uma determinada personagem - uma espécie de impertinência cockney mesclada de um gosto impecável e de uma graça subtil e requintada. O que o tornou tão desejável como intérprete, e tão inimitável (e teve muitos imitadores ao Iongo dos anos) foi uma mistura poderosa de talento de farceur e de aspecto de ídolo de matinée. Qual seria a estrela capaz de expressar cólera resfolegando como um cavalo (como fez em "Bringing Up Baby") e no entanto manter a sua masculinidade? Quem mais seria capaz de dar cambalhotas para exprimir o seu amor pela vida (como em "Holiday") e fazer com que isso parecesse o modo justo? Tinha uma maneira especial de dizer as frases mais banais que as fazia parecer uma coisa inteligentissima (vale a pena ver "Dream Wife").
Tornou-se um mestre tão perfeito em comédia, alta ou baixa, que os seus talentos foram muitas vezes subestimados. Contudo, a profundidade emocional e a amplitude do seu trabalho em filmes como "Oníy Angels Have Wings" de Hawks ou "Penny Serenade" de George Stevens ou "None But the Lonely Heart" de Clifford Odets apagariam quaisquer dúvidas. Mesmo um melodrama simpático mas menor como foi o primeiro filme de Richard Brooks, "Crisis", é animado pelo sentimento de verdade e a qualidade profissional que Cary põe na sua interpretação; desempenha o papel de um cirurgião - observe-se as cenas de operação e julgar-se-á que nunca fez outra coisa na sua vida. Com um argumento adequado e mesmo um realizador indiferenciável, a personalidade de Grant pode transformar um filme como "Mr. Lucky" em algo de memorável e tocante. Quando todos os elementos estão certos, a sua presença torna-se parte indispensável da obra-prima: "Only Angels Have Wings" e "His Girl Friday" de Hawks, "North by Northwest" e "Notorious" de Hitchcock.


Primeira figura masculina ideal, bobo perfeito, dandy admirável e patife encantador: se exceptuarmos os seus primeiros tempos na Paramount, nunca lhe foi concedida autorização para morrer no fim do filme, e com toda a razão - quem acred!taria? Cary era indestrutível.
E no entanto, em 1965, nunca tinha obtido um Prémio da Academia. Nesse ano, ao receber um Oscar por ter sido co-argumentista em "Father Goose", Peter Stone foi perfeitamente sucinto: «Muito obrigado a Cary Grant», disse, «que continua a ganhar estas coisas para as outras pessoas.» Cinco anos depois, quando finalmente a Academia o agraciou pelo conjunto da sua carreira (foi o ponto alto da noite e a única vez que apareceu na televisão), Grant fez um discurso de agradecimento particularmente elegante e espirituoso, mencionando vários dos grandes realizadores que o tinham dirigido. Era cá uma lista, e não por acaso, mas um monumento ao seu bom-gosto assim como às suas capacidades - pois trabalhou com mais bons realizadores do que qualquer outra estrela de cinema: Hawks (5 vezes), Hitchcock (4), Stanley Donen (4), Cukor (3), McCarey (3), Stevens (3), Raoul Walsh, Frank Capra, Joseph L. Mankiewicz, Blake Edwards, Garson Kanin.
Cada um revelou facetas diferentes da fascinante personalidade de Grant; perguntei a vários deles o que achavam de certos momentos particularmente deliciosos dos seus filmes com Grant, recebendo frequentemente a mesma resposta: «Isso deve-se unicamente a Cary» Hitchcock, cuja reputação pelo menos (embora eu saiba que não é verdade) é a de um realizador que liga pouco aos actores, disse-me, «Ninguém dirige Cary Grant, só é preciso pô-lo à frente da câmara»


Cary não faz filmes desde 1966, quando fez "Walk Don't Run", no qual deixou Jim Hutton e Samantha Eggar conduzir a matéria amorosa, enquanto desempenhava o papel de casamenteiro, interpretação que tinha sido originalmente de Charles Coburn na primeira versão da história, "The More the Merrier". O filme não é desagradável, mas o público não está interessado em vê-lo fazer aquele papel. Há um momento do filme em que Cary dá a Miss Eggar uma taça de champanhe e um beijo na mão que deve ter feito toda a gente ansiar por mais - é de certeza o momento mais romântico de todo o filme. Mas Cary tinha decidido que estava demasiado velho para contracenar com mulheres mais novas e, de facto, julgo que o relativo fiasco de "Walk Don't Run" acelerou a sua partida inesperada do cinema. Se as pessoas o queriam apenas como figura romântica e ele se sentia demasiado velho para isso, a única coisa a fazer era abandonar. Como é que o poderemos convencer de que não tem razão?
Há pouco tempo disse a Cary que gostaria de o ter outra vez num filme e ele respondeu-me a brincar que se fosse um papel de um velho de cadeira de rodas talvez aceitasse. Não lhe interessa o facto de parecer ter apenas cinquenta anos e de a maior parte das mulheres que conheço (novas ou velhas) começar a devanear à simples menção do seu nome. Não há nada a fazer - está metido até ao pescoço no mundo dos negócios e diz que adora. Talvez seja feliz, mas o cinema perdeu alguém insubstituíveI. Cedo de mais. Pode argumentar ter feito tudo que havia a fazer no cinema, o que é verdade, mas desejaria que lá continuasse. Por mim, daria tudo para o ter num filme, assim como muitos outros realizadores, e tenho a certeza que o público não ficaria triste por ter esse estilo especial e essa sofisticação única de novo no écran. Deve ser para os espectadores, como foi para mim da primeira vez que com ele me encontrei, um velho e querido amigo. Temos saudades dele.

(Peter Bogdanovich, Abril de 1972)

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