domingo, agosto 26, 2012

WAY DOWN EAST (1920)

AS DUAS TORMENTAS
Um filme de DAVID WARK GRIFFITH



Com Lillian Gish, Richard Barthelmess, Lowell Sherman, Burr McIntosh, Mary Hay, Vivia Ogden, etc.


EUA / 165 min / P&B (tingido) / 
4X3 (1.33:1)


Estreia nos EUA a 3/9/1920
Estreia em PORTUGAL a 12/1/1926

«Não gosto muito das películas de Griffith, pelo menos no sentido da sua dramaturgia: é a expressão última de uma aristocracia burguesa no seu apogeu. Mas é Deus Pai. Criou tudo. Não há um só cineasta no mundo que não lhe deva alguma coisa. O melhor do cinema soviético saiu das suas películas. Quanto a mim, devo-lhe tudo.»
Serguei Eisenstein

"Way Down East" começou por ser uma peça teatral assinada por um autor sem renome, Lottie Blair Parker, e de um momento para o outro tornou-se na obra teatral mais popular dos palcos norte-americanos em finais do século XIX. Melodrama social que tem no centro uma jovem que a sociedade condena depois de a ter ludibriado, seria fácil prever a sua adaptação ao cinema. Foi o que aconteceu em 1920, pela mão de D. W. Griffith, que produz um dos seus filmes mais caros até ao momento (custou qualquer coisa como 175.000 dólares, mais do que "The Birth of a Nation" e pouco menos do que "Intolerânce" sendo, todavia, uma das suas obras que teve melhor bilheteira, além de uma boa recepção crítica). Com o subtítulo "A Simple Story of Plain People", o filme assume-se, desde logo, como um melodrama sem contemplações, onde o cineasta dá livre curso ao seu lirismo intenso e a um estilo imagético muito próprio.
O filme abre com um cartão que introduz desde logo a temática. «Desde o princípio dos tempos que o homem tem sido polígamo - até os santos na histórica Bíblia o foram - mas o Filho do homem trouxe uma nova verdade e o mundo cresceu com um novo ideal. Ele deu Um Homem a cada Uma Mulher.» Numa aldeia perdida da Nova Inglaterra, Anna Moore (Lillian Gish) fala com a mãe (Kate Bruce) e esta faz-lhe ver a necessidade de a filha ir até Boston falar com os primos e procurar ajuda financeira. Anna mostra-se relutante a este tipo de actividades, mas acaba por aceitar deslocar-se à cidade, a casa dos Tremonts, onde é recebida friamente. Perde logo a pouca vontade de pedir ajuda, acaba por ofertar uma humilde prenda que as primas afastam com desdém e assiste de longe a uma partida de bridge na qual intervêm a tia Emma Tremont (Josephine Bernard), a prima Diana Tremont (Mrs. Morgan Belmont) e Lennox Sanderson (Lowell Sherman), este último conhecido por ter três especialidades na vida: «mulheres, Mulheres e MULHERES.»
Nesta história que se inicia em tom de Cinderela, Anna acaba por assistir a uma festa onde se cruza novamente com Lennox Sanderson, que fica obcecado pela beleza e inocência da rapariga, fazendo tudo para a possuir. E quando se refere "tudo" é mesmo "tudo". Como Anna só aceita entregar-se-lhe depois de casada, Lennox inventa um casamento com alguns amigos que se prestam a interpretar papéis de padre e testemunhas e logo depois tira partido da situação, impondo a seguir silêncio sobre o casamento à suposta esposa, em função de querelas familiares às quais se quer furtar. Anna assim faz, até ao dia em que descobre que está grávida. Não resta a Lennox Sanderson outra solução senão dizer a Anna a verdade: o casamento não passou de uma farsa e o melhor que ela tem a fazer é partir, ir ter a criança bem longe dali. 
Entretanto, em Bartlett Village, vivem os Bartlett, cujo pai, Squire Bartlett (Burr Mclntosh), é o mais rico fazendeiro das redondezas e um puritano feroz, tendo o filho, David Bartlett (Richard Barthelmess), uma visão mais moderna e poética da vida. É para esta aldeia que vem viver Anna, depois de ter tido o filho, que morreu pouco depois de nascer, vítima de uma doença grave, baptizado ainda assim com o significativo nome de Trust Lennox. É em casa dos Bartlett que Anna se acolhe, nada dizendo sobre o seu passado. David parece destinado desde miúdo a um casamento sem amor com a bela Kate Brewster (Mary Hay). A presença de Anna em sua casa leva-o, todavia, a descobrir o que é afinal o amor. Mas os segredos nunca se guardam por muito tempo. Martha Perkins (Vivia Ogden), a alcoviteira da terra («e nínguérn precisa de um jornal quando ela está por perto!»), descobre o terrível segredo de Anna e revela-o aos Bartlett. 
O patriarca da família expulsa-a de casa e ela parte, numa noite de Inverno, debaixo de uma tempestade brutal, com neve e vento cortantes. A sua figura frágil, batida pela intempérie, cedo desfalece no rio gelado, cujos blocos de neve vagueiam à deriva. Entretanto, David descobre que Anna foi vítima de um embuste miserável e parte em sua busca. Esta sequência final, à altura do melhor Griffith, fica como uma das mais importantes do cinema mudo, criando um clima de angústia e inquietação absolutas. Filmada sem recurso a qualquer trucagem, foi num bloco de gelo que Lillian Gish vagueou durante horas até ser resgatada e foi saltando de bloco de gelo em bloco de gelo que Richard Barthelmess pôs em perigo a sua vida, uma situação que mais tarde seria recordada pela própria nas suas memórias: 
«O Senhor Griffith estava a dirigir Dick de uma ponte sobre o rio, mas o barulho da queda de água abafava as suas indicações. Dick, que era um rapaz um pouco frágil, estava atrapalhado com o pesado casaco de guaxinim e as botas com protectores de ferro que tinha de usar. Quando eu me dirigia para a catarata, em cima da placa de gelo, o senhor Grifith gritou para Dick que ele estava a andar muito devagar, mas Dick não ouviu. As pessoas nas margens gritavam também freneticamente e quando Dick se aproximava de mim, a correr, começou a ficar nervoso. Saltou e foi aterrar num pedaço de gelo que era demasiado pequeno. 
Caiu dentro de água, voltou a sair e, por fim, levantou-me nos braços, quando eu me encontrava já à beira do desfalecimento, e correu como louco para a margem. Anos mais tarde, quando Dick e eu estávamos a recordar estas coisas, ele disse: "Não consigo perceber por que é que nos sujeitámos àquilo tudo. Podíamos ter morrido ali. Não existe dinheiro no mundo que chegasse para me pagar uma coisa daquelas hoje." E no entanto, não era pelo dinheiro que o havíamos feito... Todos nós, os que trabalhávamos com o senhor Griffith, estávamos completamente envolvidos no filme em que participávamos. Não havia sacrifício demasiado grande para que o filme ficasse bem, para o fazermos com rigor, verdade e perfeição. Nos nossos espíritos, nós não tínhamos qualquer importância, só o filme é que tinha.» 
Entretanto, "Way Down East" acaba em clima feérico, com três casamentos e vários «I will». David casa com Anna; Kate, que tudo indicava vir a ser a mulher de David, acaba por aceitar um professor que a cortejava há tempos; e até Martha Perkins, apesar de coscuvilheira, aceita Seth Holcomb, o idiota da aldeia, como marido. Assim se chega à máxima: «Para cada homem uma mulher e entre ambos a ligação sacramental - assim a vida é mais limpa e mais doce.» Em 1994, "Way Down East" foi projectado em Washington, numa sessão especial, recuperando a banda sonora original. Nessa altura, Mark Adamo, o crítico do Washington Post, afirmou: 

«o que é espantoso no filme não é que as frágeis convenções do melodrama levado à cena em 1890 se mantivessem em cada fotograma. (Mesmo o aparente pioneirismo feminista do filme cheira a velho: os títulos em estilo levítico levam-nos a considerar que a queda da trémula ingénua  representada por Lillian Gish nas mãos de um libertino fortemente caracterizado é "a história da Mulher"). O que é espantoso é que grande parte da representação, inteligente, divertida, intuitiva de Gish, em especial no meio do filme, quando dá à luz o filho ilegítimo, transcende o tempo, o lugar e a tecnologia. lgualmente espantoso é o esforço singular de Griffith, com os seus planos artísticos de exteriores, os planos aproximados subtis e os interiores ousadamente encenados, com o objectivo de criar um estilo novo especificamente cinematográfico.» 
Lauro António in "Temas de Cinema", Setembro de 2010

CURIOSIDADES:


- A actriz Norma Shearer aparece como figurante neste filme

- A célebre sequência final, nas placas de gelo, é rodada no White River Junction (Hartford Village) e nas Niagara Falls. As filmagens foram feitas com os próprios actores, sem duplos e sem trucagens. Lillian Gish ficou até ao fim da vida com um problema de articulação na mão direita, devido ao tempo prolongado que a manteve dentro da água gelada.



1 comentário:

Nowhereman disse...

A sequência no rio gelado é na verdade inesquecível. Os riscos que estes pioneiros do cinema corriam...
Mas a historieta é mesmo um melodrama excessivo, que deverá ser enquadrado no espírito da época. Mas é pela realização assombrosa de Griffith que "Way Down East" tem de ser apreciado na actualidade. Um clássico, como todos os outros grandes filmes deste injustiçado cineasta.