Nascida a 30/6/1917, em New York (Brooklyn), EUA Falecida a 14/3/1975, em Los Angeles, EUA |
Quase todos os textos sobre Susan Hayward a tentam definir por comparações. A "trindade maldita" - ou seja, Joan Crawford, Bette Davis e Barbara Stanwyck - costuma vir à cabeça. Nos forties e nos fifties, quando Susan Hayward tinha 20 ou 30 anos, fora ela quem continuara essa galeria de wicked ladys, nunca tão boas como quando eram más. Os exemplos mais famosos ajudam a voz dos críticos. "Papelões" celebérrimos, como alcoólica, assassina, uma vez até ("Demetrius and the Gladiators", de Delmer Daves em 1954) como Messalina, mulher de Cláudio e mãe de Britanicus. Nenhuma das suas antepassadas ousou tanto. Outras vezes, citam-na como especialista de bitchy papers e a única actriz da sua geração a poder rivalizar neles com Gloria Grahame. Também não lhes falta razão.
Nunca houve mais bitchy Betsabé do que ela o foi em "David and Betsheba" (Henry King, 1951). E quando Nicholas Ray se procurou esquecer do fantasma de Gloria, caminhou ao encontro dela ("The Lusty Man", 1953). Depois da morte de Mitchum, nesse filme, ela poderia ter dito o que Gloria Grahame disse quando Bogart a deixou em "In a Lonely Place": «I was born when he kissed me / I died when he left me». Mas todas essas imagens - e ainda disseram que ela se parecia com Hedy Lamarr, Vivien Leigh ou Mitzi Gaynor - falseiam qualquer coisa e omitem o fundamental. Todas as citadas se controlaram, se mediram, se dosearam. Susan Hayward foi a que mais infringiu limites e barreiras, até à imolação exposta e escancarada. Teve uma vulnerabilidade que não conheci em mais ninguém. A vulnerabilidade mais perigosa, a que consiste em desafiar os outros como se se fosse insensível ao mal que nos podem fazer e, depois, transportar no corpo, para a vida e para a morte, as cicatrizes de cada golpe baixo recebido.
No filme "David and Bethsheba", 1951 |
Já ouviram falar de "haywardismos"? Foi um termo inventado pelos críticos para torcer o nariz aos tics dela. Eram muitos: o pulso que tremia sempre levemente a acender cigarros; um dos olhos (o direito) sempre a piscar, às vezes imperceptivelmente, outras com surpreendente cadência; a mão que procurava um sítio, algures na cara, e acabava sempre por se agarrar à boca; um movimento do beiço de baixo que contrariava o sorriso esboçado pelo de cima (exactamente o rictus contrário ao de Bogey); o movimento pendular dos braços, ora a cruzarem-se em cima do peito ora a caírem desamparados e fugitivos logo a seguir, como se tivessem sido apanhados a fazer o que não deviam. Qualquer tic - ensinam as vulgatas - esconde sempre algo que não se quer revelar ou revela sempre algo que se quer esconder. Em Susan Hayward, revelavam e escondiam que o atrevimento, a insolência, o desafio, eram apenas a máscara de quem aprendeu que, para vencer, se tinha que maquilhar assim. Mas não se habituou. E de cada vez que a dose era mais forte - ou tinha que ser mais forte - toda a alma se lhe revolvia com movimentos de corpo.
O corpo estalava-lhe porque lhe tinham entalado a alma. Cada tic desses era a forma dela gemer. Não se percebia, mas era. Parecia a última mulher para gemidos, mas os gonzos todos rangiam. Por outras palavras, foi o que Thomas Wiseman escreveu quando disse: «There are girls in Hollywood whose outer hardness conceals only an inner hardness. Miss Hayward, I would say, is not in this class. She has miscalculated too often to be accused of being calculating.» A trágica carreira dela - para tão grande mulher, tão pouca a vida - foi soma de maus cálculos, ou de poucas cautelas? Já lhes aconteceu porem o pé no sabonete, quando estão a tomar duche? É isso mesmo, não há nada a fazer. Com sorte, meia dúzia de nódoas negras. Com azar, pode ficar-se de costas partidas. Nada depende de nós, tudo do sabonete.
Quando chegou a Hollywood - em 1937 - ainda não tinha 20 anos, nascida a 30 de Junho de 1917. Nascera aliás, já, do lado errado da vida, na Brooklyn pobre, filha de operários. Chamava-se Edythe Marrenner e andou pelos bancos das escolas comerciais. Mas se não era rica, era belíssirna, com os imensos olhos luminosos e o mais sexiest hair (cabelo ruivo) que alguma vez se viu no cinema. «Her perfeet profile goes clear down to her ankles», escreveu Hedda Hopper. Slim da cintura para baixo, aumentava para cima. Aumentava muito. Quando os fotógrafos experimentaram a fotogenia dela ficaram extasiados e foram a correr ter com Selznick dizer-lhe que tinham descoberto a Scarlett O'Hara ideal. Selznick teve medo da inexperiência e não arriscou. A carreira de Susan Hayward começou com essa fatal aproximação à sorte grande.
Diz-se que, dez anos mais tarde, quando viu "Tulsa" (título que os segundos balcões portugueses aliteraram leve mas significativamente) se arrependeu. Era um filme de Stuart Heisler, em que contracenava com Robert Preston e Pedro Armendariz, e, da terra que arrancava, como se fosse a de Tara, jorrava o petróleo que a pintava de preto. Nesse filme teve Susan - half wildcat - half angel - all woman, o seu primeiro hit, depois de ter vagueado 10 anos pela Warner e pela Paramount, sem que lhe dessem grandes papéis. Walter Wanger foi o único a apostar tudo nela desde "Canyon Passage" de Jacques Tourneur em 1946 (o primeiro grande filme de Susan Hayward) até ao seu primeiro papel de bêbeda em "Smash-Up - The Story of a Woman", de Stuart Heisler (1947).
No filme "I'll Cry Tomorrow", 1955 |
O segundo grande momento da carreira de Susan ocorreu em 1949 (quando começou o seu contrato com a Fox) no magnífico "House of Strangers", de Mankiewicz. Há nesse filme uma espantosa relação cruzada dela com Edward G. Robinson, o pai do homem que é a sua suposta paixão (Richard Conte). Nunca as pestanas lhe bateram tanto como quando Conte a esbofeteou por ela não perdoar a Robinson o que Robinson não lhe perdoou. «His hate was the only legacy he left you». Estava-se nas vésperas da década em que foi - finalmente - a big, big star (em 1953, uma das top ten; Oscar em 1958 por "I Want to Live", de Robert Wise) e em que a vida lhe começou a correr ao contrário da fama.
Em 1954, divorciou-se do actor Jess Barker, com quem se tinha casado em 1944, e em 1955, por uma noite de Lua, junto ao mar, ao som de Bach, tomou pílulas a mais. Não morreu, mas a marca da morte ficou colada à imagem que ainda exibiu até 1975, quando um cancro no cérebro pôde mais do que os comprimidos ao alcance da mão. Tinha 56 anos e os seus últimos filmes, da década de 60, já nada mostram dela, com a excepção de novo e último Mankiewiez, esse "Honey Pot" que é a mais sofisticada das «viúvas» do Volpone - Rex Harrison.
Mas, sobretudo, quando me lembro de Susan Hayward (e lembro-me tanto) vejo em grande plano dois filmes: "The Lusty Men", de Nick, e "I Want to Live" de Robert Wise. No primeiro, casada com Arthur Kennedy, entrava-lhe pela casa Robert Mitchum, à procura de passado e de calor. Nunca mais teria um segundo de sossego na carne, de cada vez que olhava para o impassível corpo de Mitchum. E era por ela que ele morria, nessa tarde póstuma do rodeo a que os ciúmes de Kennedy o obrigaram. Deitada sobre o corpo dele, de tronco nu, era como se quisesse, nesse último momento, transfundir-lhe a vida e a seiva que lhe negara. Mas era tarde, tarde de mais. Como disse Nick Ray: «O que é que quer dizer voltar a casa outra vez?... Um bocado de calor... Há quem o encontre, mas há quem só leve com a rifle up ther asses». Voltando a casa, Robert Mitchum e Susan Hayward, só tiveram a segunda alternativa. E, se ele morreu, ela ficou para sempre esventrada.
No filme "I Want To Live!", 1958 |
"I Want to Live" baseou-se na história real de Barbara Graham, condenada à morte e executada na câmara de gás aos 32 anos, depois de seis comutações da pena e de sete reconfirmações dela. O dramalhão é salvo pela fremente interpretação de Susan Hayward, culminando na longa espera da última madrugada. Piedoso, um guarda dizia-lhe que respirasse o gás muito depressa porque assim custava menos. «Como é que sabe? Já experimentou?», respondia-lhe Susan. Se alguma vez a morte física num corpo jovem foi dada no cinema, foi-o dado por ela, com o corpo mais do que nunca estremecendo e os olhos mais do que nunca piscando.
Eduardo Moreno (quem é?) recordou um dia os mil acidentes horríveis de Susan Hayward no cinema: o afogamento em "Reap the Wild Wind", de DeMille; a cara desfigurada pelas queimaduras em "Smash-Up"; a esquizofrenia em "The Last Moment", de Martin Gabel (1947); morta e carbonizada num desastre de automóvel em "They Won't Believe Me", de Irving Pichel (1947); lapidada em "David and Bathseba"; vítima de um desastre de avião no biopic famoso de Jane Froman, "Whith a Song in My Heart", Walter Lang (1952); alcoólica em último grau em "I'll Cry Tomorrow", de Daniel Mann (1955). Mesmo a sua própria morte-cancro no cérebro - a morreu em "Stolen Hours", de Daniel Petrie (1963).
Mas nenhuma destas horríveis mortes foi igual à que foi morrendo de filme em
filme e de vida em vida, à medida que tapava todas as saídas para si própria. Nas vésperas do suicídio de 1955, conta-se que se fechou num cemitério, com um homem que amava, para passar a noite. Como nos filmes dela, parecia mais uma bravata parva, uma provocação gratuita. Mas, quem viveu com ela, sabe que não houve profanação alguma. E que Susan Hayward passou a noite acordada e sozinha, tendo dito uma única frase: «É o começo da minha loucura». Dias depois, era internada.
Quem a viu não suportou a sua imobilidade. Era a pessoa mais inquieta para finalmente o poder estar. Talvez, por isso, Ruy Belo me tenha um dia dito que pensou sobretudo nela no poema que dedicou à morte de Marilyn. Ela, também, foi a melhor mulher. Por isso, não pôde mais. E, por isso, de todas as imagens, talvez seja a que ainda hoje mais me perturba e mais aflição me convoca. Nela coube toda a convulsão e toda a confusão. «Possa o máximo mar inteiramente condensar» as órbitas para sempre acendidas de Susan Hayward, mulher física, mulher química.
João Bénard da Costa no jornal O Independente, 1 de Junho de 1990
FILMOGRAFIA:
1972 - The Revengers / Os Justiceiros
1967 - Valley of the Dolls / O Vale das Bonecas
1967 - The Honey Pot / O Perfume do Dinheiro
1964 - Where Love Has Gone / Para Onde Foi o Amor
1963 - Stolen Hours / Horas Roubadas
1962 - I Thank A Fool / O Grito da Alma
1961 - Back Street / A História de Um Grande Amor
1961 - Ada / Ada
1961 - The Marriage-Go-Round / O Marido, a Mulher e o Problema
1959 - Thunder In The Sun / Tormenta ao Sol
1959 - Woman Obsessed / Meu Coração Tem Dois Amores
1958 - I Want To Live! / Quero Viver! (Oscar de Actriz Principal)
1957 - Top Secret Affair / Escândalo na Primeira Página
1956 - Gengis Khan, The Conquerer / O Conquistador
1955 - I'll Cry Tomorrow / Uma Mulher no Inferno (Nomeação para o Oscar de Actriz Principal)
1955 - Soldier of Fortune / O Aventureiro de Hong Kong
1955 - Untamed / Enquanto Dura a Tormenta
1954 - Garden of Evil / O Jardim do Diabo
1954 - Demetrius and The Gladiators / Demétrius, o Gladiador
1953 - White Witch Doctor / A Feiticeira Branca
1953 - The President's Lady / A Dama Marcada
1952 - The Lusty Men / Idílio Selvagem
1952 - The Snows of Kilimanjaro / As Neves do Kilimanjaro
1952 - With a Song in My Heart / Quando o Coração Canta (Nomeação para o Oscar de Actriz Principal)
1951 - David and Bathsheba / David e Betsabé
1951 - I Can Get It For You Wholesale / Ambição de Mulher
1951 - Rawhide / O Correio do Inferno
1951 - I'd Climb the Highest Mountain / A História de Uma Alma
1949 - My Foolish Heart / Meu Louco Coração (Nomeação para o Oscar de Actriz Principal)
1949 - House of Strangers / Sangue do Meu Sangue
1949 - Tulsa / Tulsa - Ouro Negro
1948 - The Saxon Charm / O Vencido
1948 - Tap Roots / Raízes Fortes
1947 - They Won't Believe Me / Não Me Condenem
1947 - The Lost Moment / Recordações
1947 - Smash-Up: The Story of a Woman / História de Uma Mulher (Nomeação para o Oscar de Actriz Principal)
1946 - Canyon Passage / Amor Selvagem
1946 - Deadline at Dawn / Um de Nós é Criminoso
1944 - And Now Tomorrow / O Amanhã é Nosso
1944 - Murder, He Says
1944 - The Hairy Ape / Macaco Peludo
1944 - The Fighting Seabees / O Batalhão Suicida
1943 - Jack London / A Vida de Jack London
1943 - Young and Willing / Vedetas à Força
1943 - Hit Parade of 1943 / Melodias Fantásticas
1942 - Star Spangled Rhythm / Cocktail de Estrelas
1942 - I Married a Witch / Casei Com Uma Feiticeira
1942 - The Forest Rangers / Clarão no Horizonte
1942 - Reap the Wild Wind / O Vento Selvagem
1941 - Among the Living / Ódio Que Vive
1941 - Sis Hopkins / Serenata da Broadway
1941 - Adam Had Four Sons / Os Quatro Filhos de Adão
1939 - A Thousand Dollars a Touchdown
1939 - Our Leading Citizen
1939 - Beau Geste / Beau Geste
1938 - Girls on Probation
1 comentário:
Bom texto. Vim aqui por acaso, quando procurava informações sobre o filme "Recordações". Susan é uma das minhas atrizes mais queridas. O que mais me encanta no seu belo rosto é aquele narizinho arrebitado. Um abraço. Francisco Sobreira
PS. Usei o perfil 'anônimo", do qual não gosto, porque foi o único que deu certo.
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