sábado, setembro 25, 2010

PORTFOLIO - "PSYCHO" (1960)

PSYCHO (1960)

PSICO



Um filme de ALFRED HITCHCOCK



Com Anthony Perkins, Janet Leigh, John Gavin, Vera Miles, Martin Balsam, John McIntire


EUA / 109 min / PB / 16X9 (1.85:1)


Estreia nos EUA a 16/6/1960 (New York)
Estreia em Portugal a 22/11/1960


Norman Bates: "She might have fooled me, but she didn't fool my mother"

Após o grande sucesso de “North by Northwest”, um filme espectacular que tinha custado qualquer coisa como 4 milhões de dólares, Hitchcock pretendia fazer algo radicalmente diferente, na linha dos filmes B que na altura estavam na moda por gerarem facilmente boas receitas no box office, grande parte das vezes sem possuirem qualquer qualidade. No percurso de uma viagem comprou no aeroporto de Amesterdam um livro de bolso para se entreter no avião. Chamava-se “Psycho” e era escrito por um tal Robert Bloch. Quando chegou ao seu destino Hitchcock já não tinha dúvidas – faria daquele thriller psicológico o seu próximo filme. Comprou os direitos por nove mil dólares e decidiu rodar o filme a preto e branco porque, para além do seu já referido desejo de uma produção de baixo orçamento (“Psycho” custaria apenas 800 mil dólares) era uma maneira de tornear a censura que certamente não autorizaria a mostragem de todo o sangue descrito no livro num filme a cores.
A aposta de Hitch foi claramente ganha (“Psycho” tornou-se com os anos no maior êxito financeiro do realizador) e deve-lhe ter dado grande satisfação porque, como ele próprio sublinhou, o sucesso deveu-se não tanto ao valor do argumento ou da interpretação, mas àquilo a que chamou “puramente técnico”. «Neste filme», disse ainda, «tudo se deve à câmara, é a câmara que faz todo o trabalho. Evidentemente, não se conseguem as melhores críticas, porque os críticos só se interessam pelo argumento. Mas é preciso desenhar os filmes como Shakespeare construía as suas peças – para o público.»
Efectivamente a técnica de que Hitch fala começa logo no início do filme por nos introduzir ao pequeno mundo de Marion Crane (Janet Leigh). Depois de por alguns instantes deambular por telhados e prédios de Phoenix (somos desde logo avisados de que são 2 horas e 43 minutos da tarde de uma sexta-feira, dia 11 de Dezembro), a câmara vai-se aproximando de uma das janelas desses muitos prédios e entra na penumbra de um quarto de hotel onde Janet Leigh e John Gavin acabaram de ter uma relação sexual. Hitchcock explicou a Truffaut que a indicação da hora era importante porque sugeria ao espectador que «aquela era a única altura que ‘the poor girl’ Marion tinha para ir para a cama com o amante. A indicação da hora sugere que Marion se privou do almoço para fazer amor»
O espectador foi assim introduzido à normalidade de uma história de amor. Toda a situação parece comum ao que a experiência nos diz destes casos clandestinos, mas Hitchcock vai-se encarregar de nos fazer mergulhar nos obscuros mecanismos do subconsciente. Dá-nos a ver a banalidade das nossas vidas mas a breve trecho irá lançar-nos para fora da normalidade do dia-a-dia. Como? Fazendo-nos simpatizar com a personagem de Marion (apesar ou talvez por causa dos seus amores ilícitos) e é essa identificação que posteriormente nos leva a desculpá-la quando ela decide ficar com os 40 mil dólares em vez de os ir depositar ao Banco.
Continuamos a acompanhar Marion na sua saída da cidade, a torcer por ela, desejando que leve a sua empreitada a bom porto. Desejamos que se veja livre do polícia que por desconfiança a segue e só queremos que se desembarace rapidamente do chato vendedor de automóveis. Hitchcock faz-nos a vontade e acalma a nossa ansiedade com a chegada de Marion ao motel. Pelo menos ali Marion terá uma noite descansada. Ainda por cima o gerente, Norman Bates (Anthony Perkins no papel de toda uma vida), é um jovem tímido e simpático, que cuida da mãe enferma, e com quem Marion pode calmamente conversar.
No decurso dessa conversa (uma das sequências-chave de todo o filme) aparecem alguns indícios de que nem tudo estará bem, de que haverá por ali algumas inquietações a ter em conta: a enorme e sinistra casa sobranceira ao motel (o efeito de suspeição é criado pelo antagonismo da arquitectura das duas construções – a grande mansão na vertical, o pequeno motel na horizontal), os pássaros embalsamados (uma actividade um pouco estranha e fora do vulgar), alguns tiques nervosos de Norman, o timbre da voz de Mrs. Bates que ouvimos num diálogo à distância com o filho. Mas o final da conversa parece-nos sinal de bom presságio, até porque Marion resolveu voltar à normalidade da sua vida e regressar a Phoenix para devolver o dinheiro. Com a perspectiva do duche que ela se prepara para tomar, há como que um certo alívio em nós, acreditamos que Marion vai reencontar de novo a pacatez e, quem sabe, a felicidade a que tem direito
Daí a surpresa brutal da famosa sequência do chuveiro, que Robin Wood dizia ser provavelmente “o mais horrível crime de qualquer filme”. Há o prodígio técnico dessa sequência (70 posições da câmara em 45 segundos de filme, segundo Hitchcock), mas há sobretudo a presença do horror inesperado e sem sentido. Porque, contra todos os códigos e convenções, Hitch mata a protagonista no primeiro terço do filme, retirando-nos o personagem com que até aí totalmente nos identificávamos. A história do roubo do dinheiro perde toda a sua importância e ficamos no vazio, no mistério daquela morte absurda.
A partir daqui é outro filme que se inicia. Seguimos as investigações do amante (John Gavin) e da irmã (Vera Miles) de Marion, acompanhados pelo detective da companhia de seguros incumbido do caso (Martin Balsam), mas agora já sem a cumplicidade com que nos identificámos com Marion. O nosso polo de atenção alterou-se, agora só nos interessa saber qual a razão do crime e desvendar o mistério da relação de Norman Bates com a mãe.
Pessoalmente sempre achei que esta “segunda parte” de “Psycho” não consegue manter toda a excelência que até aí testemunhámos. Sempre senti que a morte de Marion nos tira algo que não conseguimos repôr até final. O suspense mantém-se – não nos esqueçamos que estamos na presença do mestre absoluto do género – mas já sem a envolvência total do espectador, por não haver apego emocional a qualquer outra personagem. E aquele final explicativo (sequência que o próprio Hitch teve muitas dúvidas em filmar) pareceu-me sempre um objecto estranho na narrativa do filme. A patologia de Bates está mais do que revelada nessa altura, e por isso não haveria qualquer necessidade em fazer dela uma tese académica.
Na sua entrevista com Truffaut Hitchcock fala do seu grande orgulho em ter realizado “Psycho”: «A minha principal satisfação advém de o filme ter agido sobre o público, era o que mais me interessava. Em “Psycho”, o assunto pouco me importa, as personagens pouco me importam; o que me importa é que o conjunto dos bocados de filme, a fotografia, a banda sonora e tudo o que é estritamente técnico possam fazer gritar o público. Penso que é para nós uma grande satisfação utilizar a arte cinematográfica para criar uma emoção de massa. E com “Psycho” conseguimo-lo. Não se trata de uma mensagem que tivesse intrigado o público. Não se trata de uma grande interpretação que tivesse abalado o público. Não se trata de um romance muito apreciado que tivesse cativado o público. O que emocionou o público foi o filme puro.»
CURIOSIDADES:

- Algumas das actrizes equacionadas para o papel de Marion foram Eva Marie Saint, Piper Laurie, Martha Hyer, Hope Lange, Shirley Jones e Lana Turner

- Foi o último filme de Hitchcock a preto e branco, tendo sido rodado entre 30 de Novembro de 1959 e 1 de Março de 1960.

- Hitchcock faz a sua habitual aparição (com um chapéu de cowboy na cabeça) cerca dos 4 minutos de filme, no lado de fora do escritório onde Marion trabalha.
- Sendo o filme a preto e branco Hitchcock quis enfatizar o lado psicológico de Marion ao fazê-la usar lingerie branca antes dela roubar o dinheiro e lingerie preta depois do furto. De igual modo em relação à bolsa da personagem - branca antes, preta depois.

- "Psycho" foi o primeiro filme americano a mostrar uma sanita numa casa de banho. A ideia partiu do argumentista Joseph Stefano, que escreveu uma cena de propósito para esse fim - fez Marion rasgar uma folha de papel em pequenos bocados e lançá-los em seguida na sanita

- O cachet de Anthony Perkins foi de 40 mil dólares, exactamente a quantia roubada por Marion Crane

- Quando do lançamento, "Psycho" beneficiou de uma grande campanha publicitária, tendo sido rigorosamente proibida a entrada de espectadores na sala depois do início do filme. No foyer um gravador repetia a espaços o tempo que faltava para a sessão começar e num cartaz podia ler-se a seguinte mensagem assinada por Alfred Hitchcock: "The manager of this theatre has been instructed at the risk of his life, not to admit to the theatre any persons after the picture starts. Any spurious attempts to enter by side doors, fire escapes or ventilating shafts will be met by force. The entire objective of this extraordinary policy, of course, is to help you enjoy PSYCHO more."

- Em 2007 o American Film Institute classificou "Psycho" em 14º lugar da lista dos melhores filmes de sempre

- Toda a música, da autoria de Bernard Herrmann é tocada apenas por instrumentos de corda. Hitchcock ficou tão agradado com o efeito da música no filme que duplicou o salário de Herrmann

quarta-feira, setembro 22, 2010

BECKET (1964)

BECKET - A HONRA DE DEUS




Um filme de PETER GLENVILLE


Com Richard Burton, Peter O'Toole, John Gielgud, Gino Cervi, Paolo Stoppa, David Weston, Martita Hunt, Pamela Brown


GB-EUA / 148 min / COR / 16X9 (2.20:1)

Estreia nos EUA a 11/3/1964


King Henry II: "Do you ever think?"
Baron: "Never, sire! A gentleman has better things to do!"

Peter O’Toole regressa ao grande écran depois de “Lawrence of Arabia”. Foram dois anos de ausência, em que os cada vez mais numerosos fans do actor inglês desesperaram por o voltar a ver. A espera foi longa mas largamente compensatória – a representação de O’Toole é de igual modo fabulosa na personagem do Rei Henrique II de Inglaterra (figura que o grande actor inglês iria reviver quatro anos depois em “The Lion in Winter”, então numa fase mais adiantada da vida do monarca). Mas mais uma vez a nomeação para o Oscar não seria validada pela Academia de Hollywood cujas preferências em 1965 iriam para Rex Harrison em “My Fair Lady”.
“Becket” enferma de um erro básico que se reflecte no enredo central do filme – Thomas Becket era um normando e não um saxão. Jean Anouilh, que escreveu a peça de teatro onde o filme é baseado, admitiu ter descoberto o erro só após a conclusão do livro, para o qual se teria inspirado em “História da Conquista de Inglaterra pelos Normandos”, de Augustin Thierry (1825). Mas também confessou não ter reposto a verdade do facto histórico por pensar que isso não iria contribuir para um aumento de interesse junto do público.
Erros históricos à parte, o essencial em “Becket” é a amizade entre dois homens que as relações Estado-Igreja acabam por corromper. Thomas Becket (uma grande representação de Richard Burton também) começa por ser o confidente e companheiro inseparável do Rei nas suas constantes libertinagens e acaba santificado pelo Papa. Nesse percurso, e depois de consignado no cargo de Arcebispo de Cantuária pelo próprio Rei, Becket vem progressivamente a descobrir a sua vocação religiosa que em última análise o vai tornar no principal opositor de Henrique II e dos seus interesses de Estado, precipitando inclusivé o seu próprio assassinato.
“Becket” é um filme histórico, bem representativo de um tipo de cinema que se fazia nos anos 60. Hoje em dia poderá ser visto como um objecto estranho, dada a ausência de acção e efeitos circences que caracterizam qualquer reconstituição histórica da actualidade. Mas ainda bem que assim é, que nos podemos deleitar com todo o classicismo que este filme continua a destilar. Os magníficos cenários são filmados com as cores características das cameras dos anos 60, que desde então nunca conseguiram ser superadas; e o guarda-roupa é sumptuoso, contribuindo também para o esplendor visual que é olhar-se para este filme.
CURIOSIDADES:

- O túmulo de Thomas Becket foi um lugar de peregrinação durante séculos, tendo sido mandado destruir por Henrique VIII no início do século XVI. Um santuário foi mais tarde erigido no local.

- A peça de teatro foi levada à cena na Broadway, em 1960, com Laurence Olivier como Becket e Anthony Quinn no papel de Henrique II. Depois da saída de Quinn, Olivier passou a desempenhar a personagem do Rei e Arthur Kennedy, recém-entrado para a companhia, a de Becket. Dois anos depois, quando a peça estreou no West End em Londres, Peter O’Toole foi convidado a representar Henrique II, mas não o pôde fazer por se encontrar envolvido nas filmagens de “Lawrence of Arabia”


- Na cena em que Becket e o Rei descobrem uma rapariga nua debaixo de uns cobertores numa cabana nos bosques, Peter O’Toole quis pregar uma partida a Richard Burton substituindo a actriz por Elizabeth Taylor, que na altura já era mulher de Burton. Consta que este não ficou nada agradado com a brincadeira.

- O filme foi nomeado para 12 Oscars, tendo apenas recebido o Oscar para o melhor argumento adaptado.

domingo, setembro 19, 2010

PORTFOLIO - "IL BUONO, IL BRUTTO, IL CATTIVO" (1966)

IL BUONO, IL BRUTTO, IL CATTIVO (1966)

O BOM, O MAU E O VILÃO




Um filme de SERGIO LEONE


Com Clint Eastwood, Eli Wallach, Lee Van Cleef, Aldo Giuffrè, Luigi Pistilli, Rada Rassimov


ITÁLIA / 175 min / COR / 16X9 (2.35:1)


Estreia em Itália a 23/12/1966


«Nunca teria filmado “Aconteceu no Oeste”, nem mesmo “O Bom, o Mau e o Vilão”, se John Ford não me tivesse feito descobrir o deserto do Arizona e as suas vilas de madeira banhadas por uma luz admiravelmente intensa, quando eu era uma criança. A sua América era um país utópico, mas era uma utopia irlandesa, isto é, profundamente católica, repleta de piedade e de camaradagem, dotada de humor, mas desprovida de ironia e, sobretudo, de crueldade. A minha visão da América é muito diferente da sua e, nos meus filmes, sempre considerei o lado mau do dólar, o lado obscuro»
«Desde o início quis falar da Guerra da Secessão. Queria descrever a imbecibilidade humana num filme picaresco, onde mostraria também a realidade da guerra. A verdadeira história dos Estados Unidos foi construída com uma violência que a literatura e o cinema nunca mostraram. E eu desconfio sempre da História oficial. É, sem dúvida, por ter nascido num regime fascista. Vi como se manipulava a verdade da História» (Sergio Leone)
Blondie: "You see, in this world there's two kinds of people, my friend: Those with loaded guns and those who dig. You dig"

Na arena implantada no centro de um cemitério, Clint Eastwood, Lee Van Cleef e Eli Wallach afastam-se lentamente para a periferia do círculo. É o início do trielo final de “Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo”, o momento crucial das grandes decisões, o apogeu do estilo de Leone. Progressivamente a câmara vai-nos dando planos dos três homens enquanto a música de Morricone confere às imagens um sentido coreográfico. Os sucessivos close-ups vão perscutando tudo, até aos mais ínfimos pormenores: o levantar de uma sobrancelha, o piscar de um olho, o retrair de um dedo, a passagem de uma língua por uns lábios secos. A teatralização da realização passa por uma descrição feitichista das posturas e um alongamento temporal da situação até ao seu rápido desenlace.
Sergio Leone, para infelicidade de todos os seus fans, apenas assinou a realização de 7 filmes na sua meteórica carreira. Mas esses sete magníficos ficarão para sempre com um lugar cativo na história do Cinema. Este “Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo” é o quarto, o do meio da balança, e o capítulo final daquela que ficou conhecida como a trilogia dos dólares (“Per Un Pugno Di Dollari / Por Um Punhado de Dólares” em 1964 e “Per Qualche Dollari in Più / Por Mais Alguns Dólares” em 1965, foram os dois primeiros). O êxito europeu desses primeiros filmes desperta o interesse de Hollywood e a United Artists resolve financiar Leone com um orçamento de mais de um milhão de dólares, antecipando já a estreia conjunta dos três filmes nos Estados Unidos (o que viria a acontecer entre Fevereiro de 67 e Janeiro de 68). Muito ao estilo americano o herói dos três filmes é baptizado de “The Man With No Name” (certamente por causa da campa sem nome no final do último filme), mas sobretudo é o nome de Clint Eastwood que é projectado para o estrelato. Foi o primeiro personagem que no imaginário colectivo se tornou sinónimo do actor norte-americano. O segundo viria alguns anos depois, em 1971, quando Don Siegel deu vida pela primeira vez ao inspector Harry Callahan.  
Muito provavelmente pelo desafogo económico que Hollywood lhe concedeu Leone, para além de se preocupar em manter a continuidade do estilo patenteado nos dois filmes anteriores, tenta inovar e aperfeiçoar esse mesmo estilo. A ambição é agora muito maior e ganha forma no cruzamento entre duas histórias (a dos três protagonistas e a da Guerra da Secessão) que, aos poucos, se irão unir, antes de se fundirem na sequência final do cemitério. Ao fim e ao cabo é a própria Guerra da Secessão que Leone utiliza para aprimorar as suas personagens, ao mesmo tempo que denuncia o cinismo absurdo dos senhores da guerra que, de olhos cravados em cartas militares, enviam milhares de homens para a frente de batalha
Leone mantém com a guerra uma relação contrária à que tem com o western. Glorifica os personagens deste seu género predilecto mas desmistifica o heroísmo guerreiro. O capitão nortista (Aldo Giuffrè), responsável por manter uma posição inútil explica a Tuco e a Blondie o que deve fazer um bom estratega, mostrando por que motivo a garrafa de whisky é a melhor arma do soldado.
Desde muito cedo que o cemitério de Sad Hill se equaciona como o final da jornada para os três homens. Mas entre o momento em que descobrimos que o espólio está lá enterrado e o momento em que, finalmente, lá chegamos, o significado do cemitério foi alterado no nosso pensamento. O filme encarregou-se de nos lembrar que, num cemitério, há mais cadáveres de soldados mortos do que tesouros enterrados. «A ideia de arena era central», explica Leone: «uma ideia mórbida já que eram os mortos que viam o espectáculo. Fiz mesmo questão de que a música fizesse lembrar o riso dos cadáveres, no interior dos túmulos»
E Leone conclui: «Mesmo antes da sequência da arena imaginei a cena onde Clint encontra o poncho perto do jovem sulista em agonia. E fiz com que o vestisse. É o mesmo poncho que traz nos dois primeiros filmes. Posteriormente, quando liberta Tuco, afasta-se com este poncho. Vai ao encontro das aventuras anteriores. Vai para o Sul, para viver as histórias dos outros filmes. E o círculo fecha-se. A trilogia funciona num círculo fechado»

Ouçamos ainda Leone sobre a utilização da música de Morricone em “Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo”: «A música tinha uma importância permanente nesse filme. Podia ser o próprio elemento de uma acção. É o caso da sequência do campo de concentração. Uma orquestra de prisioneiros que tem de tocar para abafar os gritos dos torturados. Por vezes tinha de acompanhar as quebras de ritmo, como a chegada da carroça-fantasma, no deserto. Também desejava que a música raiasse o barroco, que não se limitasse à repetição entrecruzada do tema de cada personagem. Por vezes fazia tocar a música no local das filmagens. Isso criava a atmosfera da cena, influenciando a representação dos actores. Clint Eastwood gostava muito deste método.»
Uma vez mais os génios de Leone e Morricone se misturaram, ao ponto de não conseguirmos dizer onde acaba a música e começa o filme e vice-versa. O tema principal evoca de imediato o nome do filme, mesmo a quem nunca o tenha visto. A cena em que Tuco corre à volta do cemitério ao som de “Ecstacy of Gold” é pura poesia. E o duelo final, a seis mãos, é orquestrado de modo sublime.
É com “Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo” e “C’era Una Volta Il West”, realizado dois anos depois, que a reputação de Leone atravessa todas as fronteiras, afirmando-o como uma lenda cinematográfica. Nestas duas obras reescrevem-se as regras do western, a sua mitologia e todos os seus códigos são reavaliados. E ao mesmo tempo reconciliam o grande público com o cinema de autor. Lembre-se a propósito o que escreveu o jornalista Baptista-Bastos: «A grande aventura cultural de Sergio Leone não surge, isoladamente, da perspectiva histórica: nela se insere e fortalece. Não há “cinema-esparguete”, como não há “cinema-sardinha assada”. Há expressões culturais que se definem pela sua grandeza, pela sua audácia e pelo impulso que dão a outras relações humanas, portanto política, portanto sociais. Leone pertence a essa história. À nossa história»
 CURIOSIDADES:


- O filme foi rodado em Itália e Espanha e tirando os actores principais ninguém mais falava inglês, os restantes intervenientes expremiam-se nas línguas de origem (italiano ou espanhol), tendo por isso mesmo sido todos dobrados para a versão inglesa.


- O poncho que Clint Eastwood usa nos três filmes é o mesmo, nunca tendo sido limpo

- Toda a sequência da escolha da arma por Tuco é completamente improvisada. Por não perceber nada de armas Eli Wallach foi autorizado a fazer o que muito bem entendesse

- A versão original italiana (cerca de 175 minutos), estreada em 23 de Dezembro de 1966, foi reduzida em cerca de 14 minutos quando o filme foi exportado para o estrangeiro, em virtude de não terem sido dobrados em inglês. Esses 14 minutos apareceram como “extra” na primeira edição em DVD do filme.
Só recentemente, em 2003, é que a versão original foi totalmente restaurada em inglês por Martin Scorsese, Clint Eastwood e Alberto Grimaldi, tendo sido apresentada nos cinemas australianos e incluída na nova edição-dupla em DVD (2004). Essa restauração passou inclusivé pela adição de novos diálogos em inglês, feitos por Clint Eastwood e Elli Wallach, além do som, que foi convertido para 5.1



Para os interessados junto se anexa a banda-sonora original: