Um filme de ARTHUR PENN
Com Warren Beatty, Faye Dunaway, Michael J. Pollard, Gene Hackman, Estelle Parsons, Gene Wilder
EUA / 112 min / COR /
16X9 (1.85:1)
Estreia no CANADÁ, no Festival do Filme de Montréal, a 4/8/1967
Estreia em MOÇAMBIQUE a 30/3/1968
(LM, Teatro Scala)
Clyde Barrow:
"This here's Miss Bonnie Parker.
I'm Clyde Barrow.
We rob banks"
"This here's Miss Bonnie Parker.
I'm Clyde Barrow.
We rob banks"
Filme charneira do final da década de 60, "Bonnie and Clyde" deve grande parte do seu êxito e carisma a uma identidade de propósitos e desespero entre as gerações dos anos sessenta e as da época conturbada da grande depressão económica dos anos 30. Bonnie e Clyde roubavam bancos, ajudavam os camponeses, eram auxiliados por negros e brancos pobres, encarnando em si um ideal de justiça social que a depressão e os seus anos de fome haviam afastado há muito da sociedade norte-americana.
Entrando numa engrenagem de que desconheciam as regras, mas de que suspeitavam o aliciante, Bonnie e Clyde transformaram-se num dos mais famosos casais de foras-da-lei de toda a América. Clyde, de metralhadora em punho e estranhamente impotente no amor; Bonnie, compondo poesia da sua vida aventurosa nos intervalos dos assaltos; ambos personificando a falência de um humanismo que os tornou reais. Eles, e ainda os outros que os rodeiam, os perseguem, prendem, auxiliam, encobrem ou matam, todos compõem o retrato de uma nação, de um povo, de uma época.
O filme deu em 1967 o tiro de partida para a “nova Hollywood”: a geração dos Coppola, Lucas, Spielberg, De Palma, etc., que tomaram de assalto a cidadela dos estúdios e nesse processo rejuvenesceram o cinema americano. O argumento esteve para ser filmado por Truffaut (este declinou-o por já estar comprometido com o filme “Fahrenheit 451”), mas acabou por ficar nas mãos de Warren Beatty, que decidiu entregar a direcção a Arthur Penn, cineasta na altura desiludido com os cortes sofridos pelo seu filme "The Chase / Perseguição Impiedosa" e que estava determinado a abandonar o cinema. Mas a história entusiasmou-o. Bem assim como as condições em que a mesma prometia vir a ser rodada: inteira liberdade de acção, assegurada por Beatty, que funcionava como produtor, depois de ter conseguido um adiantamento reduzido de Jack Warner.
Nunca foi segredo para ninguém a dívida do filme de Penn e, por extensão, de toda essa geração de cineastas americanos, para com o cinema europeu, e, sobretudo, a frescura e a espontaneidade da Nouvelle Vague. Mas talvez só agora, a mais de 40 anos de distância, se consiga perceber quão assumida essa dívida foi em toda a feitura de “Bonnie and Clyde”. Mesmo antes de sabermos que Benton e o seu (já falecido) co-argumentista David Newman tinham proposto o filme a Truffaut e que eram devotos de Godard, já desconfiávamos que “Bonnie and Clyde” era uma versão americana do “A Bout de Souffle / O Acossado” (1959). A publicidade americana da estreia parecia fazer questão de o sublinhar, embora talvez inconscientemente: «Eles são jovens, estão apaixonados... e matam gente». Tal como “O Acossado” de Godard procurava recriar a poesia urbana do film noir também “Bonnie and Clyde” pegava nos lugares-comuns do filme de gangsters para baralhar as pistas de modo inesperado, subvertendo as convenções do género de um modo que faria escola durante os anos que se seguiram.
Veja-se a introdução, os primeiros cinco minutos (que comungo com o próprio realizador o facto desse período de tempo ser a chave de todo o filme): os raccords mal-amanhados, o plano em contraplongé de Faye Dunaway a descer as escadas, a fotografia queimada pelo sol texano, tudo parece sugerir um certo amadorismo de quem quer brincar aos filmes de época sem ter unhas para tocar guitarra. É, evidentemente, deliberado: ao fim desses cinco minutos Penn já esclareceu que não, que não vai ser um filme como os outros, e que estes dois miúdos embevecidos um pelo outro vão olhar para a vida de gangster como uma grande aventura, uma brincadeira de miúdos. Define-se aí em grande parte aquilo que tornou “Bonnie and Clyde” como alegoria da contra-cultura, com o gang Barrow (proletários a quem a Grande Depressão roubara o “sonho americano”) equiparado a uma geração de jovens ainda presa no colete de forças de uma sociedade pouco aberta à diferença e com o Vietname no horizonte.
Intercalando situações burlescas e de cenas de uma violência trágica e envolvente, sente-se o ritmo trepidante de uma balada do velho Oeste, que serve de pano de fundo a toda uma série de perseguições, que inevitavelmente acabam no crepitar das metralhadoras despejando a morte. Propositadamente, o volume de som durante as cenas de tiroteio era mais elevado do que no resto do filme. Como curiosidade anedótica, refira-se que na estreia em Inglaterra, o projeccionista, tendo-se apercebido das diferenças de volume num pré-visionamento, tomou cuidadosamente anotações das partes "mais altas" para durante a projecção poder baixar o volume de som e assim "corrigir" o que pensou tratar-se de um defeito da cópia a ser exibida.
A uma cena de amor impossível nos campos verdes, selvagens e livres, justapõem-se os últimos olhares de um casal vestido de branco crivado de balas e jorrando sangue de mil chagas, sangue vermelho, vivo e quente. A extrema violência da cena final, filmada num ralenti hábil e poético, provocou grande controvérsia na altura, por, segundo alguma crítica moralizante, atrair a simpatia pelo jovem casal de criminosos. É no entanto uma cena cinematicamente muito bela e enfeitiçante, e que se tornou numa referência fundamental para todos quantos nestas últimas décadas tentaram poetizar a violência mostrada nos seus filmes. Pergunte-se a Tarantino, por exemplo, um dos herdeiros legítimos desse tipo de temática.
Após algumas hesitações no que respeita à escolha da actriz que iria viver a personagem de Bonnie (Jane Fonda não aceitou o papel por na altura residir em França e não se querer deslocar aos Estados Unidos), o filme foi rodado no estado do Texas, tendo custado cerca de 2.5 milhões de dólares. A estreia mundial ocorreu no Canadá, no Festival do Filme de Montréal, a 4 de Agosto de 1967 e uma semana depois nos Estados Unidos. A crítica não gostou e o próprio Jack Warner odiou o filme. Mas em Novembro o filme estreia-se na Europa e é um sucesso instantâneo. Os críticos americanos, envergonhados, voltam à plateia e dão o dito por não dito: afinal, escrevem, "Bonnie and Clyde" é um grande filme! Mas Bosley Crowther, no New York Times, diz três vezes que não. Na última foi despedido, após muitos anos de «bons e leais serviços». Foi a última vítima de “Bonnie and Clyde”.
Cite-se ainda a interpretação de Faye Dunaway e Warren Beatty, que fazem de Bonnie Parker e Clyde Barrow dois dos muitos anjos caídos, pessoas desalojadas da sua condição, figuras à procura de um lugar, mas recusando entrar no único jogo que lhe indicam possível. Como secundários, Gene Wilder estreava-se no cinema e Gene Hackman iniciava uma notória carreira com uma nomeação para os Oscars.
“Bonnie and Clyde” tornar-se-ia num fenómeno à escala mundial, acabando nomeado para os Oscars pela própria indústria que começara por lhe torcer o nariz (embora, das nove nomeações que recebeu, apenas tenha concretizado duas, nas categorias “menores” de fotografia e actriz secundária – Estelle Parsons). Do êxito ao mito foi um salto. Bonnie e Clyde surgem em cartazes, discos ("The Ballad of Bonnie & Clyde", interpretada por Georgie Fame, ficaria célebre), propaganda, vestuário, moda. Vendem-se carros, boinas, vestidos, fatos, cartazes, revistas. Warren Beatty e Faye Dunaway invadem todos os domínios, inquietantes...
CURIOSIDADES:
- Classificado em 2007 pelo American Film Institute como o 42º melhor filme de todos os tempos
- A produtora Warner Brothers, tinha tão poucas esperanças no sucesso do filme que acedeu prontamente à pretensão de Warren Beatty de receber 40% das receitas. O grande sucesso de "Bonnie and Clyde" - cerca de 50 milhões de lucro - foi uma autêntica taluda para Beatty
- Antes de decidir interpretar ele próprio a personagem de Clyde Barrow, Warren Beatty tinha pensado em Bob Dylan, dadas as parecenças do cantor com o verdadeiro Clyde.
- A célebre cena final foi filmada simultâneamente por quatro câmaras a diferentes velocidades. Dura exactamente 54 segundos.
3 comentários:
Cada vez mais eu me surpreendo com seu talento. Além da ótima análise, sempre, propõe um cuidado em selecionar as principais curiosidades de produção do filme - e isso só enriquece teu espaço.
Este é um belo filme, um marco, ainda que ache que certas passagens tenham "envelhecido" mal...mas, o filme punge, ainda.
Abraço
Muito bem escrito caro Rato.
Este é um daqueles filmes de que eu gosto mesmo.
Tenho pena de não saber dizer mais do que "gosto" ou "não gosto", mas a minha cultura é pouca e a minha instrução ainda é menor.
FUNDAMENTAL!
E o Rato disse tudo.
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