sexta-feira, setembro 03, 2010

BONNIE AND CLYDE (1967)

BONNIE E CLYDE
Um filme de ARTHUR PENN

Com Warren Beatty, Faye Dunaway, Michael J. Pollard, Gene Hackman, Estelle Parsons, Gene Wilder

EUA / 112 min / COR / 
16X9 (1.85:1)

Estreia no CANADÁ, no Festival do Filme de Montréal, a 4/8/1967
Estreia em MOÇAMBIQUE a 30/3/1968
(LM, Teatro Scala)



Clyde Barrow: 
"This here's Miss Bonnie Parker. 
I'm Clyde Barrow.
We rob banks"

Filme charneira do final da década de 60, "Bonnie and Clyde" deve grande parte do seu êxito e carisma a uma identidade de propósitos e desespero entre as gerações dos anos sessenta e as da época conturbada da grande depressão económica dos anos 30. Bonnie e Clyde roubavam bancos, ajudavam os camponeses, eram auxiliados por negros e brancos pobres, encarnando em si um ideal de justiça social que a depressão e os seus anos de fome haviam afastado há muito da sociedade norte-americana.

Entrando numa engrenagem de que desconheciam as regras, mas de que suspeitavam o aliciante, Bonnie e Clyde transformaram-se num dos mais famosos casais de foras-da-lei de toda a América. Clyde, de metralhadora em punho e estranhamente impotente no amor; Bonnie, compondo poesia da sua vida aventurosa nos intervalos dos assaltos; ambos personificando a falência de um humanismo que os tornou reais. Eles, e ainda os outros que os rodeiam, os perseguem, prendem, auxiliam, encobrem ou matam, todos compõem o retrato de uma nação, de um povo, de uma época.

O filme deu em 1967 o tiro de partida para a “nova Hollywood”: a geração dos Coppola, Lucas, Spielberg, De Palma, etc., que tomaram de assalto a cidadela dos estúdios e nesse processo rejuvenesceram o cinema americano. O argumento esteve para ser filmado por Truffaut (este declinou-o por já estar comprometido com o filme “Fahrenheit 451”), mas acabou por ficar nas mãos de Warren Beatty, que decidiu entregar a direcção a Arthur Penn, cineasta na altura desiludido com os cortes sofridos pelo seu filme "The Chase / Perseguição Impiedosa" e que estava determinado a abandonar o cinema. Mas a história entusiasmou-o. Bem assim como as condições em que a mesma prometia vir a ser rodada: inteira liberdade de acção, assegurada por Beatty, que funcionava como produtor, depois de ter conseguido um adiantamento reduzido de Jack Warner.

Nunca foi segredo para ninguém a dívida do filme de Penn e, por extensão, de toda essa geração de cineastas americanos, para com o cinema europeu, e, sobretudo, a frescura e a espontaneidade da Nouvelle Vague. Mas talvez só agora, a mais de 40 anos de distância, se consiga perceber quão assumida essa dívida foi em toda a feitura de “Bonnie and Clyde”Mesmo antes de sabermos que Benton e o seu (já falecido) co-argumentista David Newman tinham proposto o filme a Truffaut e que eram devotos de Godard, já desconfiávamos que “Bonnie and Clyde era uma versão americana do “A Bout de Souffle / O Acossado” (1959). A publicidade americana da estreia parecia fazer questão de o sublinhar, embora talvez inconscientemente: «Eles são jovens, estão apaixonados... e matam gente». Tal como “O Acossado” de Godard procurava recriar a poesia urbana do film noir também “Bonnie and Clyde” pegava nos lugares-comuns do filme de gangsters para baralhar as pistas de modo inesperado, subvertendo as convenções do género de um modo que faria escola durante os anos que se seguiram.

Veja-se a introdução, os primeiros cinco minutos (que comungo com o próprio realizador o facto desse período de tempo ser a chave de todo o filme): os raccords mal-amanhados, o plano em contraplongé de Faye Dunaway a descer as escadas, a fotografia queimada pelo sol texano, tudo parece sugerir um certo amadorismo de quem quer brincar aos filmes de época sem ter unhas para tocar guitarra. É, evidentemente, deliberado: ao fim desses cinco minutos Penn já esclareceu que não, que não vai ser um filme como os outros, e que estes dois miúdos embevecidos um pelo outro vão olhar para a vida de gangster como uma grande aventura, uma brincadeira de miúdos. Define-se aí em grande parte aquilo que tornou “Bonnie and Clyde” como alegoria da contra-cultura, com o gang Barrow (proletários a quem a Grande Depressão roubara o “sonho americano”) equiparado a uma geração de jovens ainda presa no colete de forças de uma sociedade pouco aberta à diferença e com o Vietname no horizonte.

Intercalando situações burlescas e de cenas de uma violência trágica e envolvente, sente-se o ritmo trepidante de uma balada do velho Oeste, que serve de pano de fundo a toda uma série de perseguições, que inevitavelmente acabam no crepitar das metralhadoras despejando a morte. Propositadamente, o volume de som durante as cenas de tiroteio era mais elevado do que no resto do filme. Como curiosidade anedótica, refira-se que na estreia em Inglaterra, o projeccionista, tendo-se apercebido das diferenças de volume num pré-visionamento, tomou cuidadosamente anotações das partes "mais altas" para durante a projecção poder baixar o volume de som e assim "corrigir" o que pensou tratar-se de um defeito da cópia a ser exibida.

A uma cena de amor impossível nos campos verdes, selvagens e livres, justapõem-se os últimos olhares de um casal vestido de branco crivado de balas e jorrando sangue de mil chagas, sangue vermelho, vivo e quente. A extrema violência da cena final, filmada num ralenti hábil e poético, provocou grande controvérsia na altura, por, segundo alguma crítica moralizante, atrair a simpatia pelo jovem casal de criminosos. É no entanto uma cena cinematicamente muito bela e enfeitiçante, e que se tornou numa referência fundamental para todos quantos nestas últimas décadas tentaram poetizar a violência mostrada nos seus filmes. Pergunte-se a Tarantino, por exemplo, um dos herdeiros legítimos desse tipo de temática.

Após algumas hesitações no que respeita à escolha da actriz que iria viver a personagem de Bonnie (Jane Fonda não aceitou o papel por na altura residir em França e não se querer deslocar aos Estados Unidos), o filme foi rodado no estado do Texas, tendo custado cerca de 2.5 milhões de dólares. A estreia mundial ocorreu no Canadá, no Festival do Filme de Montréal, a 4 de Agosto de 1967 e uma semana depois nos Estados Unidos. A crítica não gostou e o próprio Jack Warner odiou o filme. Mas em Novembro o filme estreia-se na Europa e é um sucesso instantâneo. Os críticos americanos, envergonhados, voltam à plateia e dão o dito por não dito: afinal, escrevem, "Bonnie and Clyde" é um grande filme! Mas Bosley Crowther, no New York Times, diz três vezes que não. Na última foi despedido, após muitos anos de «bons e leais serviços». Foi a última vítima de “Bonnie and Clyde”.

Cite-se ainda a interpretação de Faye Dunaway e Warren Beatty, que fazem de Bonnie Parker e Clyde Barrow dois dos muitos anjos caídos, pessoas desalojadas da sua condição, figuras à procura de um lugar, mas recusando entrar no único jogo que lhe indicam possível. Como secundários, Gene Wilder estreava-se no cinema e Gene Hackman iniciava uma notória carreira com uma nomeação para os Oscars.

“Bonnie and Clyde” tornar-se-ia num fenómeno à escala mundial, acabando nomeado para os Oscars pela própria indústria que começara por lhe torcer o nariz (embora, das nove nomeações que recebeu, apenas tenha concretizado duas, nas categorias “menores” de fotografia e actriz secundária – Estelle Parsons). Do êxito ao mito foi um salto. Bonnie e Clyde surgem em cartazes, discos ("The Ballad of Bonnie & Clyde", interpretada por Georgie Fame, ficaria célebre), propaganda, vestuário, moda. Vendem-se carros, boinas, vestidos, fatos, cartazes, revistas. Warren Beatty e Faye Dunaway invadem todos os domínios, inquietantes...

CURIOSIDADES:

- Classificado em 2007 pelo American Film Institute como o 42º melhor filme de todos os tempos

- A produtora Warner Brothers, tinha tão poucas esperanças no sucesso do filme que acedeu prontamente à pretensão de Warren Beatty de receber 40% das receitas. O grande sucesso de "Bonnie and Clyde" - cerca de 50 milhões de lucro - foi uma autêntica taluda para Beatty

- Antes de decidir interpretar ele próprio a personagem de Clyde Barrow, Warren Beatty tinha pensado em Bob Dylan, dadas as parecenças do cantor com o verdadeiro Clyde.

- A célebre cena final foi filmada simultâneamente por quatro câmaras a diferentes velocidades. Dura exactamente 54 segundos.

3 comentários:

Cristiano Contreiras disse...

Cada vez mais eu me surpreendo com seu talento. Além da ótima análise, sempre, propõe um cuidado em selecionar as principais curiosidades de produção do filme - e isso só enriquece teu espaço.

Este é um belo filme, um marco, ainda que ache que certas passagens tenham "envelhecido" mal...mas, o filme punge, ainda.

Abraço

José Luís disse...

Muito bem escrito caro Rato.
Este é um daqueles filmes de que eu gosto mesmo.
Tenho pena de não saber dizer mais do que "gosto" ou "não gosto", mas a minha cultura é pouca e a minha instrução ainda é menor.

Nowhereman disse...

FUNDAMENTAL!
E o Rato disse tudo.