domingo, julho 20, 2025

BLACK NARCISSUS (1947)

QUANDO OS SINOS DOBRAM
Um filme de MICHAEL POWELL e 
EMERIC PRESSBURGER



Com Deborak Kerr, Flora Robson, Kathleen Byron, Jean Simmons, David Farrar, Sabu, Esmond Knight, Jenny Laird, Judith Furse, etc.


GB / 100 min / COR / 4X3 (1.37:1)


Estreia na GB (Londres) a 24/4/1947 
Estreia nos EUA (NY) a 13/8/1947 
Estreia em Portugal (Lisboa) a 26/11/1948 (cinema Eden)



Sister Clodagh: "We all need discipline. You said yourself they're like children. Without discipline we should all behave like children"
Mr. Dean: "Oh. Don't you like children, Sister?"

“Black Narcissus” é um filme que faz irresistivelmente pensar em dois cineastas e em dois filmes que estão nos antípodas de Michael Powell: Robert Bresson e “Les Anges du Péché” (1943); John Ford e “Seven Women” (1966). Baseado num romance da escritora inglesa Rumer Godden (a autora do livro que cinco anos mais tarde inspiraria a Renoir o inadjectivável “The River”), “Black Narcissus” foi inteiramente filmado em estúdios (ao contrário do filme de Renoir), numa Índia imaginária e mítica. Powell afirmou que julgava «ter percebido bem o livro, de que gostei imenso. Li-o durante a guerra, anos antes de o filmar, e impressionou-me imenso. Só que não era filme para fazer durante a guerra. Tive imensa vontade de o realizar porque gosto da vida solitária, da vida ao pé das grandes montanhas (...) Sempre quis fazer um filme sobre as lendas sagradas e as gestas da Índia».

Para esta obra, contou Powell com Jack Cardiff e, pela primeira vez, com o concurso simultâneo dos grandes art directors alemães Alfred Junge e Heinz Heckroth (com JungePowell trabalhara antes). Porque um dos prodígios deste filme é a constituição do décor como seu cerne. O palácio hindu de Esmond Knight e Sabu («palácio não no sentido que a palavra lhe evocara») com a sua imagética à “Khamasutra” é revestido, com a chegada das freiras doutra imagética (“saint-sulpiciana” e “Kitsh”) que, mau grado o seu fundo cristão, se revela tão, ou mais erótica do que a primeira, anunciando e enunciando os fantasmas que vão possuir todas aquelas mulheres. «Só há duas maneiras de se viver aqui: como Dean ou como o eremita» diz-se a certa altura do filme. Dean é o homem dos copos e das mulheres (chega a entrar de tronco nu – numa das muitas audácias do filme – no palácio convertido em convento); o eremita é o homem que se recusa a qualquer comunicação, e nem sequer fala.

As freiras que aceitaram um presente envenenado julgaram que bastava substituir um décor e impedir a entrada de homens. Mas não podiam impedir a entrada do vento (reparem na sua omnipresença na espantosa banda sonora) e com ele de todas as suas memórias e de todos os seus fantasmas. Aos deuses hindus chega-se pelo sexo ou pela abulia, como qualquer “vulgata” ensina. Um e outro caminho estavam proibidos àquelas mulheres com voto de castidade e vida de caridade. Daí que elas não pudessem viver ali, onde o perfume do black narcissus contamina até a velha Flora Robson.

Mas tudo se vai passar entre Deborah Kerr e a incrível Kathleen Byron, a portentosa revelação deste filme. Pessoalmente não conheço sequência mais erótica do que aquela (momento supremo deste filme supremamente belo) em que Deborah Kerr lhe entra no quarto e a vê vestida de encarnado. Nenhuma nudez podia ter tido um efeito erótico assim: porque despida de freira, Kathleen Byron não exibe apenas um corpo, mas através da cor, a carne e o sangue oferecidos e escancarados, em suprema provocação ao manto de castidade de Deborah Kerr. O jogo de contracampos em grandes planos (culminando naquele close-up de Kathleen Byron a pintar a boca-sexo) é simultâneamente o cúmulo do exibicionismo e o cúmulo da perversão.

Repare-se que, antes, nunca víramos Kathleen Byron “profana” ao contrário do sucedido com Deborah Kerr, nos vários flash-backs. Víramos o seu olhar, adivinharamos-lhe o ódio e o amor, mas nada nos preparava para essa ostentação do corpo, como se, literalmente, Sister Ruth atirasse à cara da superiora tudo o que esta fora e tudo o que esta reprimira. Simultâneamente, Kathleen Byron denuncia a hipocrisia de Deborah Kerr, declara o seu cinismo (é depois dessa noite que diz a Dean que o ama) e exibe a natureza do seu amor-ódio por Kerr e Farrar.

E, à luz da vela, na longa vigília, contamina Deborah Kerr, até ao orgasmo-desmaio e até aquele inaudito fondu (que hei-de levar para a cova) onde David Farrar se “freiratiza” em Deborah Kerr na fusão das duas imagens. O décor “distingue” então sobre o filme todo: plano ultra-insólito com o miúdo, o grande plano de “filme de terror” dos olhos de Kathleen Byron, a água, o relógio, os sinos, até à luta de morte (vampírica) que termina, em torno da tensa corda, na morte de Sister Ruth. E o último pedido de Sister Clodagh a Dean é que vele pela tumba de Ruth, o sinal da incrível fusão dos personagens.

E é por aqui que “Black Narcissus” evoca “Les Anges du Péché”. Só que enquanto, no também perversíssimo filme de Bresson (embora com aparências contrárias) a transfusão de Anne Marie em Thérèse se processava através da Graça, em “Black Narcissus” processa-se através do pecado. Mas os extremos tocam-se: se era o Pecado (nesse sentido) que juntava a leiga e a freira do filme de Bresson, aqui é a Graça (o vento, a Índia) que une indelevelmente Ruth e Clodagh. Em estilos completamente diferentes (provavelmente os mais diferentes que imaginar se possam, no extremo do espectro do cinema), Powell e Bresson realizam exactamente a mesma coisa: a experiência poética total.

Raymond Bellour, numa bela análise do filme, cita Blanchot: o texto tradicional como imagem dum círculo branco contendo no centro um núcleo negro. E salienta que Powell procedeu exactamente como Lautrémont: «aumentar o núcleo negro até o fazer cobrir toda a superfície do círculo, desenvolvendo ao máximo as pulsões do inconsciente, de modo a que toda a racionalidade desapareça». É essa entrega ao irracionalismo total que aproxima, a meu ver, o filme de Powell do de Bresson. Se o autor de “Les Anges” escolheu a “écriture blanche” Powell optou pela “oeuvre au noir”. Se Bresson escolheu o despojamento formal, o autor de “Gone to Earth” escolheu o delírio e o excesso, a fuga e a codificação, num imaginário igualmente críptico.

A aproximação com “Seven Women” de John Ford é talvez ainda mais obscura. Porque não a faço pela idêntica situação de clausura em “orientes de sonho ou não” das mulheres de Ford e das mulheres de Powell. Nem pelo paralelismo que se possa fazer entre a relação Margaret Leighton-Sue Lyon no filme de Ford e as de Deborah Kerr-Kathleen Byron no filme de Powell (o lado homossexual). Onde os dois filmes, igualmente antagónicos em estilo e linguagem se aproximam é na inscrição do sexo feminino (o sexo não aparente) como lugar de todos os conflitos éticos e estéticos, é na suprema metáfora vaginal, elidida em Ford pela figura do “grupo” e elidida em Powell pela obsessiva repetição de grandes planos.

Em Ford, o corpo feminino colectiviza-se; em Powell fragmenta-se. Por outro lado, a figura masculina (já em tempos notei que em “Seven Women” Anne Bancroft tratada à John Wayne assume um idêntico papel): David Farrar, misto de Walter Pidgeon e Stewart Granger, é o homem só enquanto catalisador. A guerra é outra e bem mais funda (o que é igualmente visível na personagem de Sabu e no diálogo com Deborah Kerr sobre a masculinidade ou a forma masculina de Cristo).

A conversa vai longa e pode parecer a muitos excessivamente cinéfila ou excessivamente hermética. Abstrusa pode ainda parecer a comparação entre dois cineastas do rigor e da disciplina como Ford e Bresson com este filme completamente desregrado e totalmente indisciplinado. E convém que se diga que para amar “Black Narcissus” é preciso uma boa dose de “infantilismo”, no sentido de uma deixa de Deborah Kerr («Without discipline, we’re all like children»). É preciso amar o gratuito, o excessivo, o maravilhoso, os filmes de terror, os filmes fantásticos e os filmes de aventura. Porque, sobretudo, “Black Narcissus” é tudo isso, ou melhor, está entre tudo isso: os Himalaias, o “holy-man”, Sabu, Jean Simmons (reparem bem nela), as gaiolas, os papagaios, os marajás, os frescos hindus, os santos “Kitsch”, a freira, as jóias (o fabuloso colar de Deborah Kerr), as trompas, os crepúsculos e aquele vento, o black narcissus e as coisas que se julgavam esquecidas «and now they came back home».

«It’s that place, with such a strange atmosphere», responde Deborah Kerr a Flora Robson quando ela lhe fala desses inesperados flash-backs. É exactamente isso. É este filme, é a atmosfera estranhíssima dele, o vento, o vento, o vento, a perda de qualquer identidade («I forgot who I am») e a perversão em qualquer sentido da palavra. «That rare thing, an erotic english film about fantasies of nuns» escreveu David Thompson. “That rare thing” na verdade. Mas o seu erotismo vai muito para além das fantasias das freiras. Digamos simplesmente que “Black Narcissus” é um filme fantástico e erótico. Com Kathleen Byron. E, já agora, para acabar como comecei, outra comparação “insólita”: quem é que se lembrou do “Vertigo” de Hitchcock? Precisamente, na metamorfose de Kathleen Byron, ela também Judy-Madeleine deste filme, ela também morrendo (vertiginosamente) sob o signo do hábito e sob o signo das monjas.
(comentário de João Bénard da Costa)

FRED & GINGER: A DUPLA-MARAVILHA DO MUSICAL AMERICANO

SWING TIME
(1936)
(RITMO LOUCO)
Um filme de George Stevens

Com Fred Astaire, Ginger Rogers, Victor Moore, Helen Broderick, Eric Blore, Betty Furness, etc.

EUA / 103 min / PB / 4X3 (1.37:1)

Estreia nos EUA (NY) a 27/8/1936
Estreia em PORTUGAL (Lisboa) a 21/12/1937




Foi já um pouco tarde, aos 22 anos, que me introduziram à magia de Fred Astaire e Ginger Rogers. Aconteceu em Junho de 1975, num ciclo de sessões clássicas do saudoso Apolo 70, onde foram exibidos os seus filmes mais célebres. Na altura o tempo não era de revivalismos (vivia-se em Portugal o que politicamente ficou conhecido pelo "Verão Quente"), muito menos de revivalismos musicais. Mas aquelas sessões, à meia-noite, fizeram-me descobrir todo um mundo maravilhoso onde imperava a alegria de viver - os inesquecíveis anos 30 do cinema musical americano. Foram essencialmente três os filmes que me fizeram ficar para sempre fã daquela dupla de bailarinos geniais: "Top Hat" (1935), "Swing Time" (1936) e "Shall We Dance?" (1937). No programa do ciclo (que ainda hoje conservo e de que aqui reproduzo a capa), podia ler-se o seguinte comentário de Lauro António, cineasta responsável nessa altura pela excelente programação do estúdio Apolo 70:

«O filme musical, na década de 30, era ainda um espectáculo subsidiário de um outro - o music-hall. Desta forma, o elemento importante de uma película musical era efectivamente o "número" musical. A ele tudo o mais se deveria submeter. Argumento e realização serviam esses elementos, bem assim como à própria cenografia. Com Fred Astaire e Ginger Rogers o essencial eram os seus duetos dançados, diálogos de emoção que caminhavam, através da simetria do entendimento perfeito, para a intimidade do casal. Com uma técnica de sapateado impecável, Fred Astaire ia por vezes mais longe e, em cada filme, ele próprio coreografava um "número" onde intervinha normalmente só. No máximo do seu talento, Astaire deslumbrava pela imaginação e elegância, em momentos de verdadeira antologia - em "Ritmo Louco", Astaire dança com as suas próprias sombras, num bailado notável; em "Vamos Dançar", Petrov ensaia com um disco riscado que não sai do mesmo sítio e o obriga a ele a acompanhá-lo, etc.

Mas, são ainda nos momentos de grande entendimento da dupla que melhor se define a sensibilidade e invenção de Fred Astaire e Ginger Rogers. Em "Chapéu Alto", um bailado a dois, com Ginger Rogers, saída de Marienbad, repleta de plumas que evoluem ao sabor da música; em "Ritmo Louco", toda a sequência final, com Fred Astaire e Ginger Rogers descobrindo-se verdadeiramente num cabaret deserto; ou esse espantoso bailado final de "Vamos Dançar", onde Fred Astaire descobre igualmente Ginger Rogers por detrás da sua própria máscara.

Mas não são só bailarinos impecáveis e insuperáveis. A dupla Astaire-Rogers vai mais longe. Astaire, tal como Stan Laurel (o "Estica" de uma outra dupla famosa), é um cómico de uma delicadeza e de uma elegância impressionantes. Os gags nascem com uma espontaneidade admirável, perante a estupefacta descontração de Astaire e o ar sonhador de Ginger Rogers. Ambos irradiam um charme muito especial que os anos ajudam a cimentar, criando-lhe um certo ar de descoberta".



FILMOGRAFIA CONJUNTA:
1949 - The Barkeleys of Broadway / O Bailado do Ciúme
1939 - The Story of Vernon and Irene Castle / O Bailado da Saudade
1938 - Carefree / Quero Sonhar Contigo
1937 - Shall We Dance? / Vamos Dançar?
1936 - Swing Time / Ritmo Louco
1936 - Follow the Navy / Siga a Marinha
1935 - Top Hat / Chapéu Alto
1935 - Roberta
1934 - The Gay Divorcee / A Alegre Divorciada
1933 - Flying Down to Rio / Voando Para o Rio de Janeiro

sexta-feira, julho 18, 2025

ROSEMARY'S BABY (1968)

A SEMENTE DO DIABO
Um filme de ROMAN POLANSKI




Com Mia Farrow, John Cassavetes, Ruth Gordon, Sidney Blackmer, Maurice Evans, etc.

EUA / 136 min / COR / 16X9 (1.85:1)

Estreia nos EUA a 12/6/1968
Estreia em MOÇAMBIQUE (L.M.) a 12/10/1969 (teatro Manuel Rodrigues)



Rosemary: «What have you done to him?
What have you done to his eyes, you maniacs!"
Roman: "He has his father's eyes»



Em tempo de estreia do novissimo Polanski (“The Ghost Writer” / “O Escritor Fantasma”) sabe bem regressar aos tempos áureos do realizador polaco, em que ele se encontrava no auge de uma clara felicidade na sua vida pessoal. O que não o impediu de arquitectar uma das obras mais inquietantes da sua filmografia. Tudo começa (intencionalmente) num tom cor-de-rosa de novela, em que nos são introduzidos os protagonistas do filme, um jovem casal (Guy e Rosemary Woodhouse) que, como tantos outros nessa mesma situação, procuram um apartamento para poderem iniciar o caminho a dois. Guy (John Cassavetes) é um ambicioso actor, Rosemary (Mia Farrow) uma devota católica desejosa de se tornar mãe. Instalam-se em Manhattan, no edifício Dakota (que muitos anos depois se tornaria célebre pelo assassinato de John Lennon).

A calma idílica do casal continua a ser-nos mostrada pela câmara cínica de Polanski que assim vai acentuando o contraste para tudo quanto mais tarde nos irá confirmar os pressentimentos mais terríveis. E esta transição, lenta e quase imperceptível, é a “chave” que faz com que a história de “Rosemary’s Baby” funcione e o desenrolar do filme vá aumentado a angústia do espectador. Sómente através de pequenos e subtis passos é que Rosemary (e nós, através dela) começa a suspeitar que algo está errado à sua volta. São os vizinhos, os Castevet, que por detrás da sua aparente amabilidade vão denunciando uma impertinência crescente. É a morte de uma inquilina e mais tarde de um amigo do casal em condições misteriosas. É a cegueira súbita sofrida por um colega de Guy que permite a este alcançar um papel há muito desejado. São os seus próprios pesadelos que se lhe apresentam cada vez mais reais. É a afamada reputação do local, onde se teria em tempos praticado magia negra.

Mas Rosemary vai afastando todos os maus presságios, tal o desejo de ser mãe pela primeira vez; e finalmente recebe a boa nova – vai ter um filho. No entanto a espiral de acontecimentos estranhos continuam, e Rosemary vai descobrindo que a “teoria da conspiração” não pertence afinal ao seu imaginário, sendo pelo contrário bem real. Acaba por fim de dar à luz mas dizem-lhe que houve complicações e o bébé morreu, não lhe permitindo sequer vê-lo. Mantêm-na sob o efeito de tranquilizantes mas Rosemary sabe que estão todos a mentir, até porque ela consegue ouvir um choro infantil através das paredes. Finalmente consegue reunir as forças necessárias e descobrir a passagem secreta para o local onde se encontra o seu bébé. Depois é o horror da descoberta (-“o que fizeram aos seus olhos?” - “tem os olhos do pai”, respondem-lhe) e progressivamente a aceitação da inevitabilidade de se ter tornado mãe, nem que seja a mãe do filho de Satanás.

O grande achado do final desta ghost story é de nunca o bebé nos ser mostrado. Presume-se a sua monstruosidade, mas deixa-se o close-up à imaginação do espectador. Técnica de sugestão clássica, aplicada aqui por um virtuoso, e com bons resultados, visto muito gente ter falado no aspecto terrível do bébé. Existe apenas uma breve imagem dos olhos mas essa imagem pertence ao pesadelo que Rosemary teve antes de engravidar. Este drama psicológico, de um horror subtil mas terrivelmente eficaz, é servido por um excelente grupo de actores onde naturalmente se destaca Mia Farrow que tem aqui o papel de uma carreira.

“Pessoalmente não acredito nas sociedades secretas - declarou Polanski na altura - o que me interessa é dar aparências passíveis de se poder acreditar nelas”. Não seria isto brincar com o fogo? Um ano depois, a sua própria mulher, a actriz Sharon Tate, com quem se casaria após a rodagem do filme, era vítima de uma seita satânica liderada por Charles Manson. A realidade tinha largamente ultrapassado em horror a ficção.

"Rosemary’s Baby" foi um enorme êxito logo na estreia, com filas de bilheteira que se estendiam por quarteirões inteiros. Êxito que se prolongou no ano seguinte devido aos trágicos acontecimentos em que Polanski se viu envolvido. Hoje, à distância de mais de meio século, tem-se a noção clara de que “Rosemary’s Baby” foi um filme à frente do seu tempo já que anunciou a psicose de feitiçaria que iria submergir a América nos anos seguintes, além de se ter tornado a primeira referência para filmes do género. E Polanski só dez anos depois nos conseguiria dar outro filme tão ou mais inquietante do que este – “Le Locataire” / “O Inquilino”.

CURIOSIDADES:

- O edifíco Dakota foi rebaptizado de "The Bramford" para o filme.

- Foi durante a rodagem que Mia Farrow recebeu os papéis de divórcio enviados por Frank Sinatra, com quem se casara apenas dois anos antes.

- É a própria Mia Farrow que entoa a canção de embalar ouvida no início e no fim do filme.

- Antes de Mia Farrow uma grande quantidade de actrizes famosas chegou a ser equacionada para o papel de Rosemary: Tuesday Weld, Jane Fonda, Julie Christie, Elizabeth Hatman, até em Sharon Tate, a sua futura mulher, Polanski chegou a pensar. O mesmo se passou com a escolha do papel de Guy: Robert Redford, Richard Chamberlain, Jack Nicholson, James Fox.

- Quando Mia Farrow fala ao telefone com o colega de Guy é a voz de Tony Curtis que se ouve do outro lado.



THEY SHOOT HORSES, DON'T THEY? (1969)

OS CAVALOS TAMBÉM SE ABATEM
Um filme de SYDNEY POLLACK



Com Jane Fonda, Michael Sarrazin, Susannah York, Gig Young, Red Buttons, Bonnie Bedelia, Michael Conrad, Bruce Dern, Al Lewis, Robert Fields, Allyn Ann McLerie, etc.

EUA / 129 min / COR / 
16X9 (2.35:1)

Estreia nos EUA (Nova Iorque) a 10/12/1969
Estreia em Moçambique (L.M.) a 26/11/1971 (cinema Infante)



Rocky: «Yowza! Yowza! Yowza!»

Nos tempos obscuros da Grande Depressão, uma nova moda nacional nasceu na América – as maratonas de dança. De duração ilimitada, o objectivo último era a atribuição de prémios aos mais resistentes - valores irrisórios quando comparados com os ganhos publicitários obtidos pelos promotores de tais “espectáculos”. Esta primeira grande obra de Sydney Pollack pega numa dessas maratonas para denunciar o “american dream of life” e devolver-nos o clima de tragédia que constituía a sobrevivência durante a crise económica dos anos 30 nos EUA. Estamos num pavilhão localizado numa qualquer praia californiana, no interior do qual uma imensa pista de dança vai servir de palco às esperanças ilusórias de uma centena de pares que se preparam para resisistir estoicamente a longas semanas de sacrifício, físico e psicológico, no intuito de alcançarem os 1500 dólares anunciados pela organização.


O filme irá acompanhar em especial quatro desses pares: Gloria (Jane Fonda), uma jovem cínica e amarga, vinda de várias experiências infelizes, que à última hora tem de substituir o seu par (desclassificado por indícios de doença) por Robert (Michael Sarrazin), um jovem desconhecido que se encontrava no local por acaso e simples curiosidade; Alice (Suzannah York), uma inglesa aspirante a actriz cujo maior desejo é vencer em Hollywood e o seu companheiro Joel (Robert Fields) que partilha das mesmas aspirações; Sailor (Red Buttons), um veterano da Grande Guerra com a sua parceira Shirl (Allyn Ann McLerie); e um casal recém-casado de parcos recursos e à espera do primeiro filho – Ruby (Bonnie Bedelia) e James (Bruce Dern). A presidir à maratona está Rocky (Gig Young), um mestre de cerimónias sem escrúpulos que não hesita em usar todos os meios ao seu alcance para que o espectáculo desperte o interesse de um público voraz, à procura de desgraças superiores às suas, para assim se sentir confortado na sua miserabilidade.

Fazendo parte de uma vaga de jovens directores que se iniciaram na televisão em princípios dos anos 60, Sydney Pollack insere-se numa classe particular de cineastas cujo estilo se situa a meio-caminho entre o classicismo reinante nos grandes estúdios e um novo realismo que por vezes faz lembrar o documentário. À semelhança de um Frankenheimer ou de um Coppola, Pollack foi um dos responsáveis pela abertura de vias a toda uma geração de novos realizadores que se viriam a afirmar no decorrer das décadas de 70 e 80: Spielberg, Lucas, Scorsese ou De Palma, por exemplo. Tendo começado a sua carreira no grande écran por um thriller psicológico com Sidney Poitier e Anne Bancroft (“The Slender Thread”) em 1965, é com o filme seguinte, “This Property Is Condemned” (1966), um argumento assinado por Coppola e baseado numa peça de Tennessee Wiliams, que Pollack se revela como um cineasta bastante promissor. Foi também o início de uma grande amizade com Robert Redford, actor que participaria em mais sete dos seus filmes.


O período da Grande Depressão foi tratado de variadissimas formas no cinema, mas sempre se destacou (Chaplin à parte) o chamado filme de gangsters. Desde “Little Caesar”, em 1930, até “Bonnie & Clyde”, em 1967, os exemplos são ricos e variados. Com “They Shoot Horses, Don’t They?”, Pollack aborda esses anos como um autêntico retrato da sociedade da altura. Baseado num livro de um escritor norte-americano injustamente menosprezado, Horace McCoy, o argumento, brilhante (assinado por James Poe e Robert E. Thompson), centraliza quase toda a acção num único décor (a pista de dança), sem que isso belisque minimamente o interesse do espectador.



Pelo contrário, a emoção está sempre presente, fruto de uma montagem precisa e minuciosa (assinada por Fredric Steinkamp, que a partir deste filme colaboraria muitas vezes com Pollack), nomeadamente nas diversas sequências do “derby”, onde atinge um raro virtuosismo ao conseguir integrar o espectador na dor e angústia daquela louca procissão de desesperados. De salientar ainda a utilização inteligente de flashbacks e flashforwards na construção narrativa e que ao longo do filme vão anunciando a sua conclusão trágica, onde finalmente a expressão que dá título ao filme se revela em toda a sua crueza – «They shoot horses, don’t they?»




Pollack revela aqui aquela que seria uma das suas imagens de marca – a brilhante direcção de actores. Susannah York (nomeada para o Globo de Ouro e Oscar de Actriz Secundária e vencedora do BAFTA inglês para a mesma categoria), Red Buttons (nomeado para o Globo de Ouro de Actor Secundário), Michael Sarrazin (nomeado para o BAFTA da revelação mais promissora), Bruce Dern ou Bonnie Bedelia, constroem todos eles grandes personagens que irão ficar para sempre nas nossas memórias. Mas o par de cerejas em cima do bolo são efectivamente Gig Young e Jane Fonda. Young arrebataria quer o Oscar quer o Globo de Ouro para o melhor Actor Secundário, tendo ainda sido nomeado para o correspondente BAFTA.


Jane Fonda liberta-se, com este filme, da sua imagem de boneca sexual (reforçada pelo sucesso de “Barbarella” no ano imediatamente anterior) provando, sem margens para dúvidas, que estava ali uma digna sucessora do pai Henry. Teve três nomeações para Melhor Actriz Principal, uma para os Oscars, outra para os Globos de Ouros e ainda uma terceira para o BAFTA. Perderia para Maggie Smith nos primeiros (alguém se lembra do filme “The Prime of Miss Jean Brodie” ???) e para Geneviève Bujold (“Anne of The Thousand Days”) nos segundos. Quanto ao prémio inglês, o mesmo seria ganho por Katharine Ross (“Butch Cassidy & The Sundance Kid” e “Tell Them Willie Boy Is Here”). Jane Fonda seria no entanto distinguida pelas Associações de críticos de Nova Iorque e Kansas City como a Melhor Actriz de 1969.

CURIOSIDADES:

- Foi o próprio Sydney Pollack quem se encarregou de filmar alguns dos planos constantes nas corridas dos concorrentes. Para isso calçou um par de patins e misturou-se entre os pares que evoluiam à volta da pista.

- “They Shoot Horses, Don’t They?” teve 9 nomeações para os Oscars sem conter contudo a categoria de Melhor Filme: Realizador, Argumento-Adaptado, Montagem, Música, Guarda-Roupa, Direcção Artística e Cenários, Actriz Principal (Jane Fonda), Actriz Secundária (Susannah York) e Actor Secundário (Gig Young). Como acima já se disse, este foi o único Oscar conquistado pelo filme.

- A banda sonora está recheada de canções dos anos 30, incluindo algumas escritas propositadamente para o filme por John Green, conferindo assim uma atmosfera de autenticidade. Os temas incluem "Easy Come, Easy Go," "I Cover the Waterfront," "Out of Nowhere" (Edward Heyman, Green), "Coquette" (Gus Kahn, Carmen Lombardo, Green), "Sweet Sue Just You" (Will J. Harris, Victor Young), "I'm Yours" (E.Y. Harburg), "Brother, Can You Spare a Dime" (Harburg, Jay Gorney), "Paradise" (Gordon Clifford, Nacio Herb Brown), "The Japanese Sandman" (Raymond B. Egan, Richard A. Whiting), "Between the Devil and the Deep Blue Sea" (Ted Koehler, Harold Arlen), "The Best Things in Life Are Free" (B.G. De Sylva, Lew Brown, Ray Henderon), "California, Here I Come" (Al Jolsen, De Sylva, Joseph Meyer), "Body and Soul" (Heyman, Robert Sour, Frank Eyton, Green), "I Found a Million Dollar Baby" (Billy Rose, Mort Dixon, Harry Warren), and "By the Beautiful Sea”.