quarta-feira, julho 30, 2025

SUNRISE: A SONG OF TWO HUMANS (1927)

AURORA
Um filme de F.W. MURNAU



Com George O'Brien, Janet Gaynor, Margaret Livingston, Bodil Rosing, etc.

EUA / 94 min / PB / 4X3 (1.20:1)

Estreia nos EUA (NOVA IORQUE) a 23/9/1927 
Estreia em PORTUGAL (LISBOA) a 14/2/1929




« Por toda a parte onde se levante e ponha o sol, no turbilhão das cidades ou no ar puro de uma quinta, a vida é sempre a mesma, breve na sua amargura, breve na sua doçura, breve nos seus riscos, breve nas suas lágrimas» 
(F.W. Murnau)

“Sunrise” é o filme mais belo do mundo. Digo-o eu, mas não sou nada original em o dizer. Há 52 anos, esta mesma frase era expressa pelos redactores dos Cahiers du Cinéma, os quais, no número de Natal de 1958, elegiam este filme como o melhor de todos os tempos, distinguindo também o seu criador, Friedrich Wilhelm Murnau - nascido em Bielefeld, Alemanha, a 28 de Dezembro de 1988 com o apelido de Plumpe (terá escolhido o nome que o tornou célebre em memória de uma aventura amorosa vivida na cidade bávara de Murnau) e imigrante nos EUA a partir de 1926 - como o maior cineasta entre os maiores.

Visionário do delírio e dos sonhos, febril na sua letalidade, o cinema de Murnau tem a marca da consubstanciação onde nada é dissociável, tudo se penetra e confunde numa complementaridade única. Uma tal presença abissal, um tão grande inferno latente, mais não vêm que sublinhar esses universos estranhos e inquietantes, metafísicos e sagrados, letais e poéticos. Cineasta da composição com uma incomparável plástica, rica e subtil, minúcia excessiva onde todos os recursos visuais e pictórios são explorados, harmonização de movimentos e luz onde o “leit-motiv” é o factor dramático que tudo combina.

«A arte de Murnau mistura, confunde, cruza os elementos, as imagens, o começo e o final de um destino», alguém disse. Mas o que ainda surpreende em Murnau é a inserção da natureza no drama, a riqueza das diversas simbologias numa atmosfera singular. Rever os seus filmes é percorrer um itinerário de incessantes (re)descobertas, onde o “afinal já se fazia” alterna com o que “só ele é que o fez”, ou o “só ele é que podia ter feito isso”, enfim, a submissão ao génio, pelo qual todos lhe tiram o chapéu. Rever o cinema de Murnau é constatar como na construção dum espaço fílmico era possível ver tanta coisa e tão fascinante, e muitas vezes numa tão grande sobriedade e despojamento, quer ao nível narrativo, cenográfico ou interpretativo.

É verificar também como certas “arritmias” e (pretensas) quebras de acção e da espectacularidade utilizadas com um sentido e significado precisos, que só várias décadas depois se imporiam, já encontravam um vasto campo de experimentação no autor de “Sunrise”. Estamos no reino da audácia, tal como as das forças latentes que no seu cinema procuram a libertação, ou a de alguns dos seus protagonistas que enfrentam (e se consomem) nas maldições, ou naquela outra e eterna luta dos que tentam que o seu amor não seja uma vil tristeza.

Do que se trata, essencialmente, neste “Sunrise”, é da relação e do combate entre o bem e o mal. E os campos definem-se de uma forma em que o fetichismo predomina. De um lado a pureza, com a virginal personagem da mulher - que tanto remete para Lilian Gish -, a paisagem idílica, o casamento. Do outro lado, a mulher diabólica vestida de negro, a perversidade citadina. Entre os (ou nos) dois lados, o homem, que com o seu comportamento ambíguo anula toda a carga maniqueísta que poderia existir.

Ilustração desta luta e deste fetichismo é a sequência do barco, com a mudança na atitude do homem e com a assunção draculiana do seu lado diabólico a ser combatida com o cruzar das mãos da mulher, numa imploração religiosa que evoca a luta de alhos, crucifixos e estacas contra os dráculas em tantos filmes posteriores. O lado externo, visível a olho nu, desta contraposição é o binómio cidade / campo. O campo com toda a sua beleza pura e a cidade com toda a sua dimensão feérica e espectacular, e com os “benefícios” da civilização.

A propósito desta obra-prima absoluta do cinema mudo, recorde-se o que sobre ela escreveu Bénard da Costa: «”Sunrise” segue sendo o apogeu de uma certa concepção de cinema: aquela em que prevalece, acima de tudo, o que um cineasta é capaz de dizer com movimentos de câmara e de corpos, com luzes e sombras, com composição e ritmo dos planos. Para os que consideram o cinema uma arte narrativa, “Sunrise”, sendo embora um filme admirável (tal adjectivo ninguém em seu juízo lho poderá retirar), foi ultrapassado muitas vezes, antes e depois. Para os que olham um filme como arte plástica (o que não é sinónimo de arte visual) é muito difícil deixar de repetir o juízo dos anos 50 e 60: “Sunrise” é o mais belo filme do mundo.»

Texto algum, nem o mais poético, pode conter o encanto transmitido por este filme verdadeiramente mágico. Daí a grande vantagem do cinema sobre a literatura. Murnau atinge com “Sunrise” uma simbiose perfeita entre o expressionismo alemão dos anos 20 e as raízes do cinema clássico americano. E nesse feliz enlace coloca toda a sua mestria no tratamento do espaço fílmico, na organização da cenografia, na profundidade de campo, nas sobreposições de imagens ou na subtileza dos movimentos de câmara. Mas a modernidade de Murnau não se esgota na utilização técnica. O que mais interessa é o seu olhar, impregnado de poesia, que torna o seu cinema tão límpido e tão único.

Dou uma vez mais a palavra escrita a Bénard da Costa: «É na viagem de ida que Ansass tenta matar Indre. E nessa espantosa sequência no lago (mais tarde imitada por tantos, de Sternberg a Stevens) Indre percebe as intenções do marido e foge-lhe apavorada, num eléctrico irreal que a conduz do lago à cidade. Entre travelings – nunca vimos tão belos – Ansass persegue-a para lhe dizer da sua culpa, do seu medo, da sua vergonha. E quando chegam à cidade, aquele homem que queria matar aquela mulher, aquela mulher que sabe que aquele homem a queria matar, esquecem a morte para redescobrir o amor e, como duas crianças, perdidamente se reapaixonam, irmanados na mesma inocência nova. A chuva os baptizará.

Como crianças cansadas e felizes regressam ao barco e ao lago. A tempestade é a última maldição. Indre cai à água e Ansass julga-a morta. O milagre final é o único desfecho possível para este filme de milagres e de renascimentos. “Sunrise” significa exactamente isso. Descobrir uma linha de fuga (o eléctrico) e um espaço mágico (a cidade). Então, tudo pode começar de novo, maravilhosamente de novo.»

CURIOSIDADES:

- Os negativos originais do filme foram destruídos num incêndio, em 1937.

- Todas as cenas da cidade foram rodadas num enorme estúdio, construído de propósito para o filme.

- A peruca loura que Janet Gaynor usa durante todo o filme decepcionou os seus fans na altura, que estavam habituados a vê-la com o seu longo e natural cabelo escuro.

- Vencedor de 3 Óscares na 1ª edição dos mesmos, em 1929: Melhor Filme ("Unique and Artistic Production"), Cinematografia e Actriz Principal. Foi ainda nomeado para a Melhor Direcção Artística





domingo, julho 20, 2025

BLACK NARCISSUS (1947)

QUANDO OS SINOS DOBRAM
Um filme de MICHAEL POWELL e 
EMERIC PRESSBURGER



Com Deborak Kerr, Flora Robson, Kathleen Byron, Jean Simmons, David Farrar, Sabu, Esmond Knight, Jenny Laird, Judith Furse, etc.


GB / 100 min / COR / 4X3 (1.37:1)


Estreia na GB (Londres) a 24/4/1947 
Estreia nos EUA (NY) a 13/8/1947 
Estreia em Portugal (Lisboa) a 26/11/1948 (cinema Eden)



Sister Clodagh: "We all need discipline. You said yourself they're like children. Without discipline we should all behave like children"
Mr. Dean: "Oh. Don't you like children, Sister?"

“Black Narcissus” é um filme que faz irresistivelmente pensar em dois cineastas e em dois filmes que estão nos antípodas de Michael Powell: Robert Bresson e “Les Anges du Péché” (1943); John Ford e “Seven Women” (1966). Baseado num romance da escritora inglesa Rumer Godden (a autora do livro que cinco anos mais tarde inspiraria a Renoir o inadjectivável “The River”), “Black Narcissus” foi inteiramente filmado em estúdios (ao contrário do filme de Renoir), numa Índia imaginária e mítica. Powell afirmou que julgava «ter percebido bem o livro, de que gostei imenso. Li-o durante a guerra, anos antes de o filmar, e impressionou-me imenso. Só que não era filme para fazer durante a guerra. Tive imensa vontade de o realizar porque gosto da vida solitária, da vida ao pé das grandes montanhas (...) Sempre quis fazer um filme sobre as lendas sagradas e as gestas da Índia».

Para esta obra, contou Powell com Jack Cardiff e, pela primeira vez, com o concurso simultâneo dos grandes art directors alemães Alfred Junge e Heinz Heckroth (com JungePowell trabalhara antes). Porque um dos prodígios deste filme é a constituição do décor como seu cerne. O palácio hindu de Esmond Knight e Sabu («palácio não no sentido que a palavra lhe evocara») com a sua imagética à “Khamasutra” é revestido, com a chegada das freiras doutra imagética (“saint-sulpiciana” e “Kitsh”) que, mau grado o seu fundo cristão, se revela tão, ou mais erótica do que a primeira, anunciando e enunciando os fantasmas que vão possuir todas aquelas mulheres. «Só há duas maneiras de se viver aqui: como Dean ou como o eremita» diz-se a certa altura do filme. Dean é o homem dos copos e das mulheres (chega a entrar de tronco nu – numa das muitas audácias do filme – no palácio convertido em convento); o eremita é o homem que se recusa a qualquer comunicação, e nem sequer fala.

As freiras que aceitaram um presente envenenado julgaram que bastava substituir um décor e impedir a entrada de homens. Mas não podiam impedir a entrada do vento (reparem na sua omnipresença na espantosa banda sonora) e com ele de todas as suas memórias e de todos os seus fantasmas. Aos deuses hindus chega-se pelo sexo ou pela abulia, como qualquer “vulgata” ensina. Um e outro caminho estavam proibidos àquelas mulheres com voto de castidade e vida de caridade. Daí que elas não pudessem viver ali, onde o perfume do black narcissus contamina até a velha Flora Robson.

Mas tudo se vai passar entre Deborah Kerr e a incrível Kathleen Byron, a portentosa revelação deste filme. Pessoalmente não conheço sequência mais erótica do que aquela (momento supremo deste filme supremamente belo) em que Deborah Kerr lhe entra no quarto e a vê vestida de encarnado. Nenhuma nudez podia ter tido um efeito erótico assim: porque despida de freira, Kathleen Byron não exibe apenas um corpo, mas através da cor, a carne e o sangue oferecidos e escancarados, em suprema provocação ao manto de castidade de Deborah Kerr. O jogo de contracampos em grandes planos (culminando naquele close-up de Kathleen Byron a pintar a boca-sexo) é simultâneamente o cúmulo do exibicionismo e o cúmulo da perversão.

Repare-se que, antes, nunca víramos Kathleen Byron “profana” ao contrário do sucedido com Deborah Kerr, nos vários flash-backs. Víramos o seu olhar, adivinharamos-lhe o ódio e o amor, mas nada nos preparava para essa ostentação do corpo, como se, literalmente, Sister Ruth atirasse à cara da superiora tudo o que esta fora e tudo o que esta reprimira. Simultâneamente, Kathleen Byron denuncia a hipocrisia de Deborah Kerr, declara o seu cinismo (é depois dessa noite que diz a Dean que o ama) e exibe a natureza do seu amor-ódio por Kerr e Farrar.

E, à luz da vela, na longa vigília, contamina Deborah Kerr, até ao orgasmo-desmaio e até aquele inaudito fondu (que hei-de levar para a cova) onde David Farrar se “freiratiza” em Deborah Kerr na fusão das duas imagens. O décor “distingue” então sobre o filme todo: plano ultra-insólito com o miúdo, o grande plano de “filme de terror” dos olhos de Kathleen Byron, a água, o relógio, os sinos, até à luta de morte (vampírica) que termina, em torno da tensa corda, na morte de Sister Ruth. E o último pedido de Sister Clodagh a Dean é que vele pela tumba de Ruth, o sinal da incrível fusão dos personagens.

E é por aqui que “Black Narcissus” evoca “Les Anges du Péché”. Só que enquanto, no também perversíssimo filme de Bresson (embora com aparências contrárias) a transfusão de Anne Marie em Thérèse se processava através da Graça, em “Black Narcissus” processa-se através do pecado. Mas os extremos tocam-se: se era o Pecado (nesse sentido) que juntava a leiga e a freira do filme de Bresson, aqui é a Graça (o vento, a Índia) que une indelevelmente Ruth e Clodagh. Em estilos completamente diferentes (provavelmente os mais diferentes que imaginar se possam, no extremo do espectro do cinema), Powell e Bresson realizam exactamente a mesma coisa: a experiência poética total.

Raymond Bellour, numa bela análise do filme, cita Blanchot: o texto tradicional como imagem dum círculo branco contendo no centro um núcleo negro. E salienta que Powell procedeu exactamente como Lautrémont: «aumentar o núcleo negro até o fazer cobrir toda a superfície do círculo, desenvolvendo ao máximo as pulsões do inconsciente, de modo a que toda a racionalidade desapareça». É essa entrega ao irracionalismo total que aproxima, a meu ver, o filme de Powell do de Bresson. Se o autor de “Les Anges” escolheu a “écriture blanche” Powell optou pela “oeuvre au noir”. Se Bresson escolheu o despojamento formal, o autor de “Gone to Earth” escolheu o delírio e o excesso, a fuga e a codificação, num imaginário igualmente críptico.

A aproximação com “Seven Women” de John Ford é talvez ainda mais obscura. Porque não a faço pela idêntica situação de clausura em “orientes de sonho ou não” das mulheres de Ford e das mulheres de Powell. Nem pelo paralelismo que se possa fazer entre a relação Margaret Leighton-Sue Lyon no filme de Ford e as de Deborah Kerr-Kathleen Byron no filme de Powell (o lado homossexual). Onde os dois filmes, igualmente antagónicos em estilo e linguagem se aproximam é na inscrição do sexo feminino (o sexo não aparente) como lugar de todos os conflitos éticos e estéticos, é na suprema metáfora vaginal, elidida em Ford pela figura do “grupo” e elidida em Powell pela obsessiva repetição de grandes planos.

Em Ford, o corpo feminino colectiviza-se; em Powell fragmenta-se. Por outro lado, a figura masculina (já em tempos notei que em “Seven Women” Anne Bancroft tratada à John Wayne assume um idêntico papel): David Farrar, misto de Walter Pidgeon e Stewart Granger, é o homem só enquanto catalisador. A guerra é outra e bem mais funda (o que é igualmente visível na personagem de Sabu e no diálogo com Deborah Kerr sobre a masculinidade ou a forma masculina de Cristo).

A conversa vai longa e pode parecer a muitos excessivamente cinéfila ou excessivamente hermética. Abstrusa pode ainda parecer a comparação entre dois cineastas do rigor e da disciplina como Ford e Bresson com este filme completamente desregrado e totalmente indisciplinado. E convém que se diga que para amar “Black Narcissus” é preciso uma boa dose de “infantilismo”, no sentido de uma deixa de Deborah Kerr («Without discipline, we’re all like children»). É preciso amar o gratuito, o excessivo, o maravilhoso, os filmes de terror, os filmes fantásticos e os filmes de aventura. Porque, sobretudo, “Black Narcissus” é tudo isso, ou melhor, está entre tudo isso: os Himalaias, o “holy-man”, Sabu, Jean Simmons (reparem bem nela), as gaiolas, os papagaios, os marajás, os frescos hindus, os santos “Kitsch”, a freira, as jóias (o fabuloso colar de Deborah Kerr), as trompas, os crepúsculos e aquele vento, o black narcissus e as coisas que se julgavam esquecidas «and now they came back home».

«It’s that place, with such a strange atmosphere», responde Deborah Kerr a Flora Robson quando ela lhe fala desses inesperados flash-backs. É exactamente isso. É este filme, é a atmosfera estranhíssima dele, o vento, o vento, o vento, a perda de qualquer identidade («I forgot who I am») e a perversão em qualquer sentido da palavra. «That rare thing, an erotic english film about fantasies of nuns» escreveu David Thompson. “That rare thing” na verdade. Mas o seu erotismo vai muito para além das fantasias das freiras. Digamos simplesmente que “Black Narcissus” é um filme fantástico e erótico. Com Kathleen Byron. E, já agora, para acabar como comecei, outra comparação “insólita”: quem é que se lembrou do “Vertigo” de Hitchcock? Precisamente, na metamorfose de Kathleen Byron, ela também Judy-Madeleine deste filme, ela também morrendo (vertiginosamente) sob o signo do hábito e sob o signo das monjas.
(comentário de João Bénard da Costa)

FRED & GINGER: A DUPLA-MARAVILHA DO MUSICAL AMERICANO

SWING TIME
(1936)
(RITMO LOUCO)
Um filme de George Stevens

Com Fred Astaire, Ginger Rogers, Victor Moore, Helen Broderick, Eric Blore, Betty Furness, etc.

EUA / 103 min / PB / 4X3 (1.37:1)

Estreia nos EUA (NY) a 27/8/1936
Estreia em PORTUGAL (Lisboa) a 21/12/1937




Foi já um pouco tarde, aos 22 anos, que me introduziram à magia de Fred Astaire e Ginger Rogers. Aconteceu em Junho de 1975, num ciclo de sessões clássicas do saudoso Apolo 70, onde foram exibidos os seus filmes mais célebres. Na altura o tempo não era de revivalismos (vivia-se em Portugal o que politicamente ficou conhecido pelo "Verão Quente"), muito menos de revivalismos musicais. Mas aquelas sessões, à meia-noite, fizeram-me descobrir todo um mundo maravilhoso onde imperava a alegria de viver - os inesquecíveis anos 30 do cinema musical americano. Foram essencialmente três os filmes que me fizeram ficar para sempre fã daquela dupla de bailarinos geniais: "Top Hat" (1935), "Swing Time" (1936) e "Shall We Dance?" (1937). No programa do ciclo (que ainda hoje conservo e de que aqui reproduzo a capa), podia ler-se o seguinte comentário de Lauro António, cineasta responsável nessa altura pela excelente programação do estúdio Apolo 70:

«O filme musical, na década de 30, era ainda um espectáculo subsidiário de um outro - o music-hall. Desta forma, o elemento importante de uma película musical era efectivamente o "número" musical. A ele tudo o mais se deveria submeter. Argumento e realização serviam esses elementos, bem assim como à própria cenografia. Com Fred Astaire e Ginger Rogers o essencial eram os seus duetos dançados, diálogos de emoção que caminhavam, através da simetria do entendimento perfeito, para a intimidade do casal. Com uma técnica de sapateado impecável, Fred Astaire ia por vezes mais longe e, em cada filme, ele próprio coreografava um "número" onde intervinha normalmente só. No máximo do seu talento, Astaire deslumbrava pela imaginação e elegância, em momentos de verdadeira antologia - em "Ritmo Louco", Astaire dança com as suas próprias sombras, num bailado notável; em "Vamos Dançar", Petrov ensaia com um disco riscado que não sai do mesmo sítio e o obriga a ele a acompanhá-lo, etc.

Mas, são ainda nos momentos de grande entendimento da dupla que melhor se define a sensibilidade e invenção de Fred Astaire e Ginger Rogers. Em "Chapéu Alto", um bailado a dois, com Ginger Rogers, saída de Marienbad, repleta de plumas que evoluem ao sabor da música; em "Ritmo Louco", toda a sequência final, com Fred Astaire e Ginger Rogers descobrindo-se verdadeiramente num cabaret deserto; ou esse espantoso bailado final de "Vamos Dançar", onde Fred Astaire descobre igualmente Ginger Rogers por detrás da sua própria máscara.

Mas não são só bailarinos impecáveis e insuperáveis. A dupla Astaire-Rogers vai mais longe. Astaire, tal como Stan Laurel (o "Estica" de uma outra dupla famosa), é um cómico de uma delicadeza e de uma elegância impressionantes. Os gags nascem com uma espontaneidade admirável, perante a estupefacta descontração de Astaire e o ar sonhador de Ginger Rogers. Ambos irradiam um charme muito especial que os anos ajudam a cimentar, criando-lhe um certo ar de descoberta".



FILMOGRAFIA CONJUNTA:
1949 - The Barkeleys of Broadway / O Bailado do Ciúme
1939 - The Story of Vernon and Irene Castle / O Bailado da Saudade
1938 - Carefree / Quero Sonhar Contigo
1937 - Shall We Dance? / Vamos Dançar?
1936 - Swing Time / Ritmo Louco
1936 - Follow the Navy / Siga a Marinha
1935 - Top Hat / Chapéu Alto
1935 - Roberta
1934 - The Gay Divorcee / A Alegre Divorciada
1933 - Flying Down to Rio / Voando Para o Rio de Janeiro