Um Filme de ÉDOUARD MOLINARO
Com Lino Ventura, Jacques Brel, Caroline Cellier, Jean-Pierre Darras, Nino Castelnuovo, Angela Cardile, etc.
FRANÇA-ITÁLIA / 85 min / COR /
Estreia em FRANÇA a 20/9/1973
Estreia nos EUA a 31/7/1975
Com Jeremy
Irons, Geneviève Bujold, Heidi Von Palleske, Barbara Gordon, Shirley Douglas,
Stephen Lack, etc.
“Dead Ringers / Irmãos Inseparáveis”
é, ainda hoje, um dos mais prodigiosos filmes de David Cronenberg, que nos faz atravessar
um demencial universo de horror, com Jeremy Irons num dos maiores desafios da
sua carreira. Efectivamente, o filme conduz-nos a uma impressionante incursão
pelos domínios da demência, através da acidentada trajectória de dois irmãos
gémeos mundialmente famosos, Beverly e Elliott Mantle, ambos fascinados e obcecados pelo universo
feminino, ambos prestigiados ginecologistas e ambos incapazes de resistir à
atracção pela sexualidade mais bizarra. Um filme tão impressionante e
perturbador quanto sofisticado e deslumbrante, na sua atmosfera de drama de
horror e na sua prodigiosa execução técnica e artística.
Cronenberg criou um novo jogo de
impossíveis combinações: sadomasoquismo e ginecologia, angústia existencial e
toxicodependência criativa, sedução e mutilação. Jeremy Irons, não é demais dizê-lo, é absolutamente
deslumbrante no seu duplo jogo de espelhos consigo próprio que constitui, sem
dúvida, uma das mais complexas interpretações de toda a sua carreira. Foi distinguido
como o melhor actor do Fantasporto de 1989, depois de ter conquistado o troféu
atribuído pela Associação de críticos de Nova Iorque e de Chicago, para além de
múltiplas nomeações em diversos festivais de cinema. Também Cronenberg foi
distinguido um pouco por todo o lado, arrecadando os prémios do Festival de
Avoriaz e da Associação de críticos de Los Angeles.
Em 1967, no Massachusetts, os irmãos gémeos canadianos, Beverly e Elliott Mantle, terminam com louvor a sua especialização em ginecologia. Em Toronto, dez anos depois, os irmãos Mantle têm uma sofisticada clínica, onde Claire Niveau (Geneviève Bujold), uma actriz, recebe a perturbadora notícia sobre a impossibilidade de poder engravidar. Claire cai numa depressão de contornos masoquistas e deixa-se arrastar para a toxicodependência. Mais tarde, envolve-se numa relação amorosa com o arrogante Elliott que encoraja o irmão a tomar o seu lugar sem que Claire perceba a troca. Porém, o tímido Beverly apaixona-se por Claire e recusa-se a partilhar confidências com o irmão sobre a sua relação. Claire descobre, furiosa, que há dois irmãos gémeos e que teve relações com ambos, mas volta a encontrar-se com Beverly que arrasta para a toxicodependência. Elliott decide encarregar-se da desintoxicação do irmão, e ambos embarcam numa alucinante viagem demencial. Apesar de não serem gémeos siameses funcionam como tal, acabando o filme com uma cena assustadora na qual, com o seu consentimento, Beverly desmembra o irmão numa tentativa de cortar as suas ligações físicas (que na verdade não existem). É uma espécie de pacto de suicídio, sendo curiosamente um dos finais menos derrotistas de Cronenberg (ainda que este advogue que nenhum final dos seus filmes seja derrotista).
David Cronenberg abordou neste filme um tema que é já uma constante em
toda a sua extensa e densa carreira cinematográfica: a multiplicidade de
questões que envolvem a construção de identidade dos seres humanos e a
profundidade psicológica de seus personagens diante das metamorfoses físicas e
comportamentais que lhes surgem à medida que evoluem dentro da dinâmica de suas
vidas, mergulhadas num tecido social extenso. Guiado pelo argumento escrito em
parceria com Norman Snider, inspirado no livro de Bari Wood e Jack
Geasland, Cronenberg apresenta aos espectadores a trajectória de Bev e Elliot, gémeos
que deabulam de maneira brilhante pela narrativa, graças ao desempenho
dramático e eficiente de Jeremy Irons. Curioso que passado algum tempo se
consiga distinguir um irmão do outro, apenas com a representação que o genial
actor fez dos dois personagens: Elliot é o lado calculista, dominante,
agressivo, narcisista e ameaçador da “entidade” simbolizada por esse duplo que
se apresenta unificado. Beverly é o irmão mais inseguro, educado, gentil,
calmo, uma espécie de sombra do lado obsessivo e mais prepotente do outro. Os dois irmãos espelham as vidas um do outro e, ao longo do filme, os traços que os pareciam dividir fundem-se, ao ponto de no fim ser difícil diferenciá-los. Tornaram-se pois, numa só pessoa (mais cônjugues que, de facto, irmãos).
Já adultos, os gémeos comunicam e circulam socialmente de
maneira muito parecida. Isso é o que permite a troca de parceiras sexuais e as
aparições públicas onde um se passa pelo outro, de acordo com os afazeres e preferências de
cada um. Mas tudo muda com a chegada de Claire Niveau, uma
famosa actriz que decide realizar um tratamento na clínica dos irmãos, por
causa de questões complicadas do seu útero. A breve trecho Claire vê-se
envolvida naquele estranho triângulo a três, tornando-se a responsável pela
inesperada, mas inevitável ruptura que trará consequências catastróficas para
todos os envolvidos nesta trama complexa sobre identidade, obsessões, desejos e
paixões, que levam os perotagonistas às últimas consequências. Adivinha-se, portanto,
um desfecho trágico e nada hollywoodiano orquestrado por David Cronenberg.
Sempre acompanhados
pela pomposa trilha sonora de Howard Shore, parceiro constante do cineasta, os
personagens circulam pelo filme acompanhados pelos movimentos e quadros
sofisticados da direção de fotografia peculiar de Peter Suschitzky, eficiente
por valorizar cada frame dos enquadramentos, não sendo apenas mais um amontoado de
imagens genéricas. Iluminado de maneira a ressaltar os dramas que envolvem cada
figura, o sector ganha maior projeção porque
o design de produção de Carol Spier lhe fornece um material de qualidade
soberba para filmar, dos cenários aos adereços da direção de arte, em especial,
pelo espectro de cores adoptadas, delicadamente selecionadas para a exaltação
das camadas psicológicas dos temas expostos, também delineados pelos figurinos
de Denise Cronenberg.
Com efeitos especiais igualmente adequados, sector gerenciado
por Gordon J. Smith, “Dead Ringers” faz um trabalho literalmente visceral, não
deixando a devastação física fora da narrativa, em especial nos momentos de insanidade total, como aquela cena onírica e horripilante, carregada de carga simbólica, quando Claire corta
com os dentes o cordão umbilical que une os dois gémeos (trata-se de um pesadelo, é certo, mas que imagem perturbadora essa). Essa “mulher mutante”,
impossibilitada de exercer uma de suas funções biológicas basilares, é o alvo
para a ira de um dos irmãos quando as coisas começam a ficar mais complicadas.
Elliot busca os serviços de um artista local, Anders Wolleck (Stephen Lack),
para a confecção de novos instrumentos cirúrgicos, como se de armas medievais
se tratassem.
Impossibilitados de conseguir dar continuidade ao que fazem
desde a infância, o momento de separação é inevitável, principalmente quando a
actriz catalisadora da ruptura demonstra interesse em Beverly, o que deixa
Elliot envolver-se na sua zona de degradação. Na tentativa de um destruir o
outro, o lado aparentemente vencedor percebe a impossibilidade de sustentar as
suas escolhas. É hora, então, de desarmar e se entregar, num desfecho carregado
de simbologia.
CURIOSIDADES:
- Inicialmente,
Jeremy Irons tinha dois camarins e dois guarda-roupas separados, que ele usava
dependendo do personagem que interpretava no momento. Mas rapidamente percebeu
que um dos objectivos do enredo era a mistura entre os dois personagens. Por
causa disso mudou-se para um único camarim e misturou os guarda-roupas,
encontrando uma "maneira interna" de interpretar cada personagem de
forma diferente, dando a cada uma um "ponto de energia
diferente".
-
Robert De Niro recusou os papéis dos gémeos Mantle porque se sentia
desconfortável interpretando um ginecologista.
- A Premiere elegeu este filme como um dos "25 filmes mais perigosos" e a Entertainment Weekly classificou-o como um dos 20 filmes mais assustadores de todos os tempos. Como sempre estas classificações, sobretudo vindas das terras do Tio Sam, são exageradas e fora de contexto. Mas que "Dead Ringers" não é um filme para todos os espíritos, lá isso não é.
Com Harriett Andersson, Liv Ullmann, Kari Sylwan, Ingrid Thulin, Anders Ek, Inga Gill, Erland Josephson, Henning Moritze, etc.
SUÉCIA / 92 m / COR / 4X3 (1.66:1)
A DOR EM VERMELHO
«Importam-se de me escutar por um instante, só por um
instante? Apenas quero dizer-vos que fiz um filme para vós... Possivelmente só
para vós. Escrevi uma história acerca de 4 mulheres que se encontram durante
alguns dias em circunstâncias dramáticas. Escolhi 4 actrizes maravilhosas,
minhas amigas pessoais, para o desempenho dos vários papéis. Harriet Andersson,
Ingrid Thulin, Kari Sylwan e Liv Ullmann. Pedi ao meu amigo Sven Nykvist para
fazer o trabalho das câmaras pela forma habitual. Pedi aos meus restantes
colegas para virem de novo trabalhar comigo. Descobrimos uma antiga casa
senhorial, rodeada por um jardim tranquilo. Durante 40 dias trabalhámos na
feitura de um filme de que todos gostámos. O seu nome é "Lágrimas e
Suspiros". Se me perguntassem se o filme é bom ou mau, teria de responder:
'Não sei!' Tudo o que sei é que é um filme pelo qual tenho uma
particular estima. É por isso que vos convido a vê-lo. Quero que gostem dele.»
Poucos meses antes, Ingmar Bergman escreveu uma longa carta que posteriormente enviaria a todos os elementos da equipa de filmagem de "Lágrimas e Suspiros". Aqui fica um excerpto dessa carta:
«A acção desenrola-se no começo do século. As mulheres vestem
roupas requintadas, caras, que dissimulam e valorizam. Os interiores devem ser
construídos em função de todas as suas possibilidades de oferecer as condições
de luminosidade que desejamos obter: alvoradas que não se parecem com
crepúsculos, a luz doce de um bosque, a misteriosa iluminação indirecta dos
dias de neve, a luz atenuada de um candeeiro de petróleo, a doçura dos dias de
Outono com sol, uma vela perdida nas trevas da noite e todas as sombras
movediças. Haverá uma particularidade: todos os interiores serão
vermelhos, em tons diferentes. Não me perguntem porque devem ser assim, porque
não sei. Eu próprio procurei encontrar uma razão e descobri explicações, umas
mais tontas do que outras. A mais obtusa, mas também a mais defensável, é a de
haver a possibilidade de existir qualquer coisa interna, já que desde a minha
infância sempre vi o interior da alma como uma membrana humedecida com tintas
vermelhas.
Os móveis, as decorações e outros acessórios devem ser muito exactos e devemos servir-nos deles segundo a nossa fantasia e na medida em que se adaptem às nossas intenções. Como nos sonhos: Qualquer coisa existe porque nós a desejamos ou dela temos necessidade nesse momento preciso. O drama comporta quatro protagonistas. Quatro mulheres. Vou-lhes apresentá-las rapidamente, sem qualquer ordem de classificação.
AGNÈS (Harriet Andersson) - É a proprietária da casa, que habita desde a morte dos pais. Nunca se decidiu a deixá-la. Faz parte de si desde o nascimento e nela deixou a sua vida derramar-se tranquila e imperceptivelmente sem prazer nem desgosto. Ela tem vagas ambições artísticas, pinta um pouco, toca às vezes piano, tudo de uma maneira um bocado patética. Nenhum homem entrou na sua vida. Para ela, o amor ficou um segredo bem guardado e nunca divulgado. Com cerca de 30 anos está atingida por um cancro no útero e prepara-se para deixar o mundo com a mesma calma e resignação com que viveu. Passa a maior parte do dia na cama, a grande cama do quarto de dormir dos pais. Mas ela pode levantar-se de vez em quando, até que as dores a prostem de novo. Nunca se queixa e não pensa que Deus seja cruel. Nas orações endereça a Cristo as suas humildes esperanças. Está terrivelmente descarnada e o seu ventre inchou como se estivesse grávida de vários meses.
KARIN (Ingrid Thulin) - Dois anos mais velha do que Agnès,
fez um casamento rico e instalou-se noutra região. Verificou depressa que o
casamento foi um fracasso. O marido, vinte anos mais velho do que
ela, só lhe inspira repugnância, física e moral. Mãe de cinco crianças, não
parece, no entanto, tocada pelas suas maternidades nem pela tristeza do seu
casamento. Aparece sempre irrepreensível e passa por arrogante e de contacto
difícil. A sua lealdade a respeito do casamento é inabalável. Mas este aparente
controlo de si mesma dissimula um ódio impotente contra o marido e um rancor
contra a vida. A sua angústia e o seu desespero só se manifestam nos sonhos,
que a atormentam de tempos a tempos. Não obstante esse furor contido, tem
momentos de afecto, de ternura e de convivência. Mas esta imensa riqueza
interior está escondida e inutilizada.
MARIA (Liv Ullmann) - É a benjamim das irmãs, também rica e
bem casada com um homem belo e de excelente posição social.
Tem uma filha de 5 anos e ela própria é uma criança mimada, doce, alegre,
risonha, constantemente curiosa e sensual. Dá um grande valor à sua própria
beleza e às possibilidades de prazer que o seu corpo lhe oferece. Não tem a
menor ideia do mundo que a rodeia, basta-se a si mesma e nunca se atormenta com
constrangimentos morais, perante si e os outros. A sua única regra é agradar.
ANNA (Kari Sylwan) - É a criada da casa. Com cerca de 30 anos, jovem ainda, teve uma filha que Agnès tomou à sua conta. Isto criou um secreto laço entre as duas, uma amizade tácita e nunca expressa entre duas mulheres sós. A criança morreu aos 3 anos, mas o laço entre elas permaneceu. Anna é muito taciturna, muito esquiva, de contacto difícil. Está sempre presente, vê, espia, escuta. Tudo é pesado em Anna: o seu corpo, o seu rosto, a boca, o olhar. Não diz nada e talvez nem pense. Quando o filme começa, a situação é a seguinte: A doença de Agnès agrava-se bruscamente e o médico declara que ela tem já pouco tempo de vida. As duas irmãs (a sua única família) vêm passar o tempo que lhe resta à sua cabeceira.»
Este é apenas o primeiro capítulo dos
dezasseis que compõem a carta escrita por Bergman
na ilha Farö, a 3 de Junho de 1971, uma 5ª feira. Tal como era usual na maioria
dos grandes cineastas, nada é deixado ao acaso, tudo é planeado ao mais pequeno
pormenor de modo que, quando chegasse o tempo da rodagem, bastava apenas filmar
tudo quanto se encontrava há muito visualizado na cabeça do realizador.
Raramente Ingmar Bergman terá ido tão
longe na expressão cinematográfica do sofrimento físico e moral, o quadro de um
universo sem esperança, a perseguição de seres feridos, encarcerados na sua
solidão: «Senti sempre uma impressão
estranha perante os mortos que pude ver à minha volta, na minha família ou
entre os meus amigos. Sempre tive, no momento em que morreram, ou nos instantes
precedentes, a impressão da sua solidão. A minha imaginação sempre foi
apaixonadamente alertada por esta solidão que precede a morte... Quando se
sofre, o sofrimento ajuda, mas quando se morre, está-se sózinho.»
Poucos cineastas terão levado tão longe
o dispositivo da representação e narração cinematográficas como Bergman e
poucos também, como ele, terão compreendido que a estética do instante perfeito
não tem a ver com o puro prazer formalista mas tem, sobretudo, a ver com a
necessidade da arte saber escolher os seus referentes e se denunciar
abertamente irreal, irrealista, artificial ou, se quiserem, demonstrativa e
exemplar. Finalmente, recusando agora a metafísica católica, a aventura de
Bergman continua a ser a do espírito, a de uma membrana interior a que ele,
aliás sem ingenuidade, chama alma e a que nós – à falta de melhor – poderíamos dar
o nome tão simples de consciência.
Esta obra de agonia poderia ser uma ilustração literal da famosa frase de Cocteau: «O cinema é a arte de filmar a morte em acção.» Nesta fúnebre oratória, o autor cria areais de lirismo campestre (as quatro mulheres de vestido branco passeando-se no parque), que alternam com cenas de uma crueza absoluta (em particular aquela, horrorosa, em que Karin afunda na vagina cacos de vidro). Doçura e dor estão indissoluvelmente ligadas na imagem admirável da criada semi-nua com a morta nos seus braços no final do filme, qual majestosa Pietá, que se converte num dos mais sublimes e arrepiantes planos da história do cinema. E, em voz-off, ouve-se o que Agnès escreveu na última página do seu diário:
«Dia de verão. Está fresco devido à proximidade do outono, mas o tempo está bonito e calmo. As minhas irmãs, Karin e Maria, vieram ver-me. É maravilhoso podermos estar juntas como dantes, quando éramos crianças. Sinto-me muito melhor, pudemos até dar um passeio as três, um grande acontecimento, sobretudo para mim que não saio de casa há tanto tempo. Passeámos calmamente até ao velho baloiço suspenso do carvalho. Em seguida ficámos sentadas as quatro (Anna também estava connosco) e deixámo-nos embalar, vagarosamente, docemente. Fechei os olhos e senti o vento e o sol acariciarem-me o rosto. As dores tinham desaparecido. Os seres que mais amo no mundo estavam ao pé de mim, podia ouvi-las falar baixinho à minha volta, sentia a presença dos seus corpos. O calor das suas mãos. Mantive os olhos fechados, queria reter esses instantes e pensava: isto é certamente a Felicidade. Não posso desejar nada de melhor. Neste momento, e durante alguns minutos, posso saborear a plenitude. E sinto-me cheia de gratidão para com a minha vida que me dá tanto.»
O que mais me apaixona - é o termo - neste filme de Ingmar Bergman é a serena simplicidade da narrativa, em profundo contraste com o universo carregado de “gritos e murmúrios” que povoa esta “homenagem à mãe”, como o próprio Bergman confessou. Neste aspecto, neste silenciar de sentimentos gritados, neste serenar faustoso de emoções em fúria, Tchekov seria o termo de comparação ideal e foi François Truffaut, por isso mais uma vez certeiro, que disse que este filme começava como “As Três Irmãs” e terminava como “O Cerejal”. Se se tratasse de Godard, bastaria dizer que se falava “do mais belo dos filmes”, porque isso seria dizer tudo. Em algumas entrevistas, Bergman declarou que, em “Lágrimas e Suspiros”, quis exprimir quatro aspectos da sua mãe, uma mulher extraordinária, que ele adorava. Para o filme, esforçou-se por descobrir alguma coisa dela. Sem pretender traçar um retrato ou uma biografia, encontrou um meio de melhor a conhecer (e de melhor a dar a conhecer), fazendo interpretar os diferentes caracteres por quatro mulheres, três irmãs e uma criada.
Obcecado pelo tempo, “Lágrimas e Suspiros” inicia-se por algumas panorâmicas sobre relógios que marcam o tempo. Da natureza, onde reina a paz, para o interior de uma mansão sueca, nos fins do século passado. Os relógios estabelecem esta ligação, caminhando da vida para a morte, do exterior para o interior, da serenidade da madrugada para a agonia. «É manhã e eu sofro», escreve Agnès (Harriet Andersson) no seu diário, depois de ter olhado pela janela. Uma frase que encerra, desde logo, uma das dualidades mais graves que o filme de Bergman procura analisar: nasce o dia e Agnès morre lentamente. Nascimento e morte, dualidade que terá, no final do filme, termos de uma equação equivalente; da morte (da Agnès) para o renascimento da vida, nessa majestosa Pietá que se converte num dos mais sublimes e arrepiantes planos da história do cinema. Numa mansão da Suécia, portanto, em fins do século passado (em Faro, mais precisamente, ilha para onde Bergman se costumava desterrar, sempre que queria rodar um novo filme, irá assistir-se à agonia de uma mulher: Agnès, no seu leito de moribunda. Sofre. Pelos sintomas, pode pensar-se num cancro no útero. A doença mina o corpo que se crispa de dores e grita a sua revolta, perante a impotência, o medo, o amor de quem a rodeia. À volta de Agnès, duas irmãs: a mais velha, Karin (Ingrid Thulin), a mais nova, Maria (Liv Ullman) e uma criada, Anna (KarI Sylwan). Agnès vivia isolada no campo, acompanhada unicamente por Anna. Quando a morte se aproxima. Karin e Maria viajam para junto da irmã, procurando auxiliá-la nos derradeiros momentos de vida. Mas a doença, a dor, a proximidade da morte, finalmente, a presença física de um corpo sem vida faz oscilar o equilíbrio existente entre as três irmãs.
Assim, se o centro de “Lágrimas e Suspiros” é, efectivamente, a agonia de Agnès, essa agonia acaba por repercutir-se a vários níveis, sendo como que a mola accionadora de um mecanismo que irá definir as relações entre as irmãs, entre irmãs e respectivos maridos (relações estas conhecidas através da introdução de alguns flashbacks) e entre irmãs e criada. Através de uma despojada meditação sobre a morte (e a vida) o amor (e o ódio), a dor e a doença (e a felicidade), Bergman retrata-nos uma época, uma sociedade de privilégios e os preconceitos de uma classe, a falência de uma instituição (o casamento) os laços instáveis de uma relação (a família), o desespero de um mundo descrente de Deus (e a fé vertiginosa no homem e nas possibilidades da sua obra), as relações de profundo desequilíbrio social que se estabelecem entre as diversas classes (irmãs e maridos, em função de Anna), etc. Um acontecimento motor desenrolará um mecanismo preciso. A genial maestria de Bergman irá, porém, pôr a funcionar este mecanismo, desmontando-o, quase sem qualquer tipo de ficção a servir-lhe de suporte. Na verdade, toda a “história” de “Lágrimas e Suspiros” se resume a duas linhas: a agonia de uma mulher, assistida por duas irmãs e uma criada. Não há, portanto, vestígios de uma intriga clássica. Situações, sentimentos, emoções, memória, tudo isto resulta de uma admirável mise-en-scène, na qual Bergman se serve predominantemente de olhares, de gestos, de movimentos, por vezes imperceptíveis, de sons (toda a banda sonora tem um volume de som aparentemente desmedido, fazendo com que os ruídos assumam uma importância decisiva na criação de um ambiente de uma densidade invulgar), de cor.
Sobre a cor. Raras vezes a cor adquiriu no cinema um papel tão significativo como neste filme de Bergman. Tanto mais que a secura e a nudez dos cenários, o hierarquismo das composições, a gravidade de todos os movimentos (dos gritos aos murmúrios, do trágico estertor aos sussurros de reconciliação) parecem participar no resfolegar sanguíneo, onde a preponderância de tons vermelhos indica uma única substância unificando a vida e a morte: o sangue. Na verdade, é o vermelho cor de sangue, quente e vivo, que dá a tonalidade a esta célebre obra de Bergman: são as paredes da mansão, são as alcatifas, são, sobretudo, as fusões de planos nas admiráveis viragens a vermelho, donde emergem e onde desaparecem náufragos rostos. O vermelho, plasma de vida e de morte, sinaliza toda a obra, pautando espaços, silêncios, unindo e desagregando imagens. Nestes cenários de uma cor dominante, as figuras centrais: de início, o branco dos «anjos da guarda» de Agnès (quando o filme principia, as irmãs deixaram-se adormecer, velando por Agnès: a dominante é o branco de uma pureza ofuscante). Depois, à medida que a morte vai ganhando terreno, o negro do luto invade o écran. Mas, outras cores delimitam planos e cenas (o castanho, com Maria, a filha e a boneca; o azul, quando Anna acorda e atravessa uma sala por onde a manhã procura romper).
O rosto. O rosto, sua imagem e memória. Em "Lágrimas e Suspiros", quatro rostos abrem como que o episódio relativo a cada um. Quatro rostos de mulher, cada um deles interrogando-se sobre uma personagem; "Agnès, Maria, Karin e Anna. Agnès, a moribunda, recorda a infância, junto à mãe, cujos carinhos inveja. Um flashback reconstitui tempos passados: uma sessão familiar com lanterna mágica. De resto, Agnès é uma figura de certo modo neutra, passiva, limitando-se a lutar ingloriamente contra a morte. A sua função, no interior do filme, é mais de centro aglutinador do que de sujeito de acções. O cancro mina-lhe as entranhas que nunca conheceram contactos. Karin, a irmã mais velha, é, por seu turno, a figura dominante. Violenta, odiando um marido que despreza (um diplomata, cuja silhueta se descobre igualmente num flash back), frígida e seca, Karin detesta qualquer tipo de relação física. Para contrariar o marido, amputa-se, introduzindo no sexo um pedaço de vidro. Repele todas as hipóteses de relações possíveis (quando Anna a ajuda a despir-se, manda-a embora, porque o olhar da criada lhe parece suspeito; com a irmã, recusa quase sempre o diálogo, o contacto, com excepção de uma cena, que logo renega). Maria, a irmã mais nova, frívola e sensual, casada com um marido mais ou menos impotente, amante do médico da família, recorda também o suicídio frustrado do marido, quando este descobre as relações existentes entre ela e o médico. Receosa, apavora-se com a morte da irmã. No seu universo de frivolidade e de instantes fugazes de prazer vividos numa casa de boneca, não suporta a presença obcecante da morte. A única saída para tais encontros é a fuga.
Anna, a criada, é a sombra da família, uma mulher humilde, dedicada, discreta, silenciosa. No enquadramento dos planos de Bergman, Anna ocupa quase sempre um plano secundário, afastado da câmara, movimentando-se por detrás das irmãs. É também a presença reconfortante, quente, a dádiva generosa. Quando todos fogem da morte, Anna é a única que despe a camisa e oferece o calor do seu peito ao rosto frio de Agnès, que procura a paz e a doçura que lhe permitam transpor os limites da vida e entrar no desconhecido. Tal como Agnès (mas de forma diferente), Anna não tem um papel activo nesta obra que seria de um maior e angustiante pessimismo sem a sua presença. Reservados para Karin e Maria os papéis activos (elas detêm o poder, só elas podem resolver, mandar, deliberar) Agnès e Anna assumem a solidariedade dos marginais. Tendo perdido uma filha, Anna faz de Agnès a sua “menina”, que não se cansa de ouvir chorar e chamar por ela. Estes longínquos chamamentos de fraternidade (que só Anna entende, que só Anna não teme) conduzem a essa Pietá sublime de que atrás se falou. Mas o sublime não se concentra neste plano indescritível. Perpassa por toda a obra, infiltra-se de forma absoluta nessa figura de uma doçura inenarrável que Kari Sylwan soberbamente interpreta. Na longa galeria de retratos de mulher que o cinema até hoje nos ofereceu, esta Anna de Bergman ocupará, seguramente, destacado lugar.
Quatro rostos num terrível huis clos. O grito de Angès atravessando a casa: «Ninguém me socorre!». O olhar dos vivos, impotentes perante o espectáculo da morte. A terrível angústia, expressa numa decantada austeridade, numa secura, numa simplicidade de processos que definem um “clássico”. Um filme onde Bergman se expõe integralmente. Com as suas dúvidas, os seus temores, a sua esperança. Um Bergman barroco e metafísico, como o fora Bergman de “O Sétimo Selo” ou “A Fonte da Virgem”? Não, um Bergman linear e profundamente humano, atento ao instante, interrogando o homem, num universo que Deus parece ter abandonado de vez. Quando a morte parece ter conquistado terreno, quando a injustiça e a crueldade mesquinha dos interesses se julgaria ter triunfado, eis que Anna retira do tempo um diário que abre e soletra. É Agnès quem regressa, é a vida, o sol, a natureza que revivem. «Quarta-feira, 3 de Setembro. Sente-se o ar do Outono, embora tudo esteja ameno. Sinto-me muito melhor. As minhas irmãs, Karin e Maria, vieram ver-me. É bom estarmos juntas, como nos velhos tempos. Podemos até ir dar um passeio as três, é um acontecimento para mim. Há muito que não saía de casa. Corremos a rir para o velho baloiço, que não víamos desde crianças. Sentámo-nos as três e Anna empurrou-nos devagar. Todas as minhas dores tinham passado. As pessoas de quem mais gosto no mundo estavam comigo. Podia ouvi-las tagarelar. Senti a presença dos seus corpos e o calor das suas mãos. Quis agarrar-me a esse momento e pensei: Venha o que vier, isto é felicidade. Nada de melhor posso desejar. Agora, por poucos minutos, posso experimentar a perfeição. Sinto grande gratidão pela minha vida, que tanto me deu.» Excerto de um diário, de que se ouve ler ainda uma passagem; «Quinta-feira, 30 de Setembro; Recebi a melhor prenda que alguém pode ter na vida. A prenda tem vários nomes - solidariedade, camaradagem, contacto humano, afeição. Creio que o que se chama graça.»
"Lágrimas e Suspiros" ("Viskningar Och Rop", no seu título original) teria a sua primeira apresentação pública em Nova Iorque, ainda em 1972, próximo do Natal, no dia 21 de Dezembro. Em todos os outros lados, o público só teria acesso à última grande obra do cineasta sueco durante o ano seguinte, inclusivé no seu país natal, a 5 de Março, em Estocolmo. Em Portugal o filme foi estreado no dia 14 de Dezembro, nos cinemas Apolo 70 e Pathé, mas a cena da introdução dos cacos de vidro na vagina de Karin, foi de imediato cortada pela censura ainda existente no nosso país. Curiosamente, é a única cena em que o sangue aparece neste filme. No que me diz respeito, só tive oportunidade de ver esta obra-prima absoluta de Ingmar Bergman quase um ano depois, no dia 15 de Novembro de 1974, uma sexta-feira à noite, no Teatro Manuel Rodrigues em Lourenço Marques, então já sem qualquer corte. Sven Nykvist ganharia o Oscar pela melhor cinematografia e outras 4 categorias seriam também nomeadas: Filme, Realizador, Argumento original (todas estas três creditadas a Ingmar Bergman) e ainda o Guarda-Roupa (Marik Vos-Lundh).