Um Filme de ORSON WELLES
Com Orson Welles, Joseph Cotten, Dorothy Comingore, Agnes Moorehead, Ruth Warrick, Ray Collins, Everett Sloane, etc.
EUA / 119 min / P&B / 4X3 (1.37:1)
Estreia nos EUA a 1/5/1941 (New York)
Estreia no BRASIL a 16/6/1941
Estreia em PORTUGAL a 27/10/1941
Emily: «Really Charles, people will
think...»
Charles Foster Kane: «…what I tell them to think»
Charles Foster Kane: «…what I tell them to think»
São
conhecidas as famosas palavras de Orson
Welles ao visitar pela primeira vez os estúdios da R.K.O.: «Aqui está o
mais belo comboio eléctrico que um rapaz pode sonhar!». Conforme recorda André
Bazin no seu livro sobre o cineasta,
o menino-prodígio de Hollywood preparou-se devidamente para a sua estreia no
cinema. Durante um ano, entre o Verão de 1939 e o Verão de 1940, Welles aproveitou todo o tempo que
conseguiu arranjar para se iniciar, muito metodicamente, diga-se, nos
mecanismos do estúdio e nos segredos da filmagem, visionando algumas centenas de
filmes, para além de trabalhar conjuntamente com Houseman e Mankiewicz no argumento
de “Citizen
Kane”. As filmagens começaram solenemente, e diante de toda a imprensa
convocada, no dia 30 de Julho de 1940. No Motion
Picture Herald, no dia seguinte, o artigo começava por: «Silêncio! Um génio
a trabalhar!»
“Citizen
Kane”
inspirou-se em parte na vida de William Randolph Hearst, o grande magnate da
imprensa que possuía 28 jornais, 13 revistas, 18 milhões de leitores, 8
estações de rádio, um milhão de hectares de terra e de florestas, minas de
ouro, de prata, de cobre e poços de petróleo. Mas era também possivelmente
Jules Brulator, proprietário da Kodak. Ambos tinham querido, à semelhança de
Kane, fazer da sua mulher uma grande cantora. Mas Hearst não era, tal como
Kane, um verdadeiro self-made-man.
Era um herdeiro, que, após ter entrado na posse de uma mina de ouro e ter sido
expulso da Universidade de Harvard, iniciara a sua vida com 30 milhões de
dólares no bolso. Vivia com a amante, Marion Davies, numa propriedade fabulosa
rodeada dum parque de 120.000 hectares. Comprara um castelo escocês, uma
catedral espanhola e um palácio da Renascença que fora reconstruído, pedra por
pedra, na Califórnia. O Xanadu de
Kane invoca a imponência dessas propriedades de Hearst.
Como
Kane em relação a Susan, Hearst tentara em vão fazer de Marion uma grande
artista. De igual modo tinha gasto 2 milhões de dólares para ser eleito
governador do Estado de Nova Iorque e não o conseguira. Isto é, cada vez que
procurava dominar a realidade pelos seus próprios meios, falhava. Este facto é
importante para compreendermos as observações que foram feitas quando se
descobriu em “Citizen Kane” uma crítica à sociedade americana, uma sociedade
fundamentada sobre o dinheiro. Welles
aceitou tal interpretação, mas sempre foi dizendo que o personagem central do
seu filme não era mais do que um indivíduo que se aproveita de heranças sem
dono, um homem do passado, que vive no passado e pelo passado. A América que Welles critica surge assim bem mais
como uma América de herdeiros do que como uma América de fundadores.
Mas,
na verdade, Kane não é apenas um herdeiro, é também um trapaceiro. Utiliza um
poder cuja fonte está fora dele. Neste sentido, o bric-à-brac cultural de Xanadu
não é mais do que o simbolismo duma incapacidade criadora: é a pilhagem duma
Europa percursora, a ilusão de uma cultura de que se limita a colher os
despojos. Assim, não surpreende que essa mentira profunda, essa poeira lançada
aos olhos, deixe o coração insatisfeito. É que nada aí corresponde a um esforço
autêntico, tudo permanece com o carácter de brinquedo. O próprio objecto do
amor não é mais do que um brinquedo: é significativo o facto de, no instante em
que a mulher o deixa, Kane destruir o quarto de Bonecas de Susan. A amante não
era para ele mais do que um brinquedo, da mesma forma que os seus jornais, a
política ou os homens que subjugava e gravitavam à sua volta. E na hora em que
quebra as bonecas daquela que escapa à sua tirania de menino mimado, surge
inevitavelmente a imagem dos jogos infantis de que o herói nunca se libertou: a
bola de vidro que continha uma casa coberta de neve, a recordação do trenó com
o nome de Rosebud gravado.
Numa
entrevista concedida a André Bazin, em Paris, no ano de 1958, Welles afirmou: «Penso que é dever de
todo o artista criticar a sua civilização, os seus contemporâneos. É uma
obrigação clara e nítida para um artista com alguma ambição. Mas se admitisse
que critico o capitalismo, pareceria tomar uma atitude marxista, quando não é o
caso. Não é por acidente que "Citizen Kane" foi
proibido na União Soviética. Não gostam mais dele, de modo algum, do que os
capitalistas. Sou um anti-materialista: não amo nem o dinheiro, nem o poder, e
reconheço o mal que fazem às pessoas. É um velho sentimento muito simples. E
sou muito especialmente contra a plutocracia: foi a plutocracia americana que
critiquei de diferentes maneiras, em "The
Magnificent Ambersons", "The Lady From Shangai" e "Citizen
Kane".»
Esta
primeira obra de Welles vai pois
muito além da crítica à América, muito além dum julgamento do dinheiro,
revelando-se, socialmente, uma realidade muito humana: o drama dos homens que o
passado paralisa, por estar escondido ou ter sido esquecido. É preciso
actualizar esse passado para que novamente algo se produza. Desmembrado entre a
América e a Europa, entre a barbárie e a civilização, entre o amor aos crápulas
e a atracção da moral, entre o passado e o futuro, entre o coração e o
espírito, Welles conduz-nos através
de uma dissociação que é, não apenas a do seu país, mas mais profundamente a da
época e, em última análise, a do mundo.
“Citizen
Kane” conta a
investigação levada a cabo por um jornalista chamado Tompson para descobrir o
sentido das últimas palavras de Kane. Porque, segundo ele, as últimas palavras
de um homem devem explicar a sua vida. Talvez seja verdade. Ele nunca chega a
descobrir o que Kane queria dizer, mas o público descobre-o. A sua investigação
leva-o junto de cinco pessoas que conheciam bem Kane, que o amavam ou
detestavam. Elas contam-lhe cinco histórias diferentes, cada uma delas muito
parcial, de tal forma que a verdade sobre Kane apenas pode ser deduzida, como
aliás toda a verdade sobre um indivíduo, pela soma de tudo o que é dito sobre
ele. Kane era ao mesmo tempo egoísta e desinteressado, era ao mesmo tempo um
idealista e um intrujão, um grande homem e um indivíduo medíocre. Tudo depende
de quem fala, ele nunca é visto através do olhar objectivo de um autor – a
finalidade do filme reside aliás mais na apresentação do “problema” do que na
sua resolução.
São
esses testemunhos retalhados que levaram Welles
a jogar livremente com a cronologia. Todos os que fazem as diferentes
narrativas não ficaram indiferentes ao drama interior de Kane. Chocaram-se com
ele, pois tais narrativas retomam, sob outros aspectos, os factos já citados
nas actualidades projectadas por ocasião da morte de Kane. Cada uma dessas
narrativas não é um flashback, não
interrompe a acção. É sempre um momento da vida de Kane contado no presente. O
filme é uma sucessão de "presentes". Aquele homem morto está ainda
terrivelmente presente. Interrogamo-nos sobre a verdade de Kane, de quem apenas
sabemos, pelas observações recolhidas, ter sido duma importância capital, tanto
para os seus partidários, como para a sua época.
Note-se
que cada um dos narradores é um solitário. A apresentação de cada sequência, em
que esses narradores nos são mostrados, é bastante significativa a esse
respeito; aquela em que nos é apresentada a actriz é particularmente
insistente, embora essa insistência desapareça perante a qualidade da
narrativa. Os grandes momentos da vida de Kane mostram-no solitário: o jovem
director triunfante, sobre os maços de jornais; o homem omnipotente que quis
impor a mulher como cantora e que aplaude sózinho numa sala de teatro; ou o
velho Kane a trocar raras palavras com a mulher, no salão do palácio de Xanadu (um parêntesis aqui para realçar
aquela genial economia de meios com que Welles
nos faz sentir o passar do tempo em apenas meia dúzia de planos, iniciando a
sequência na troca de frases doces e acabando-a no silêncio total). Outros momentos
ainda, que caracterizam o filme e que encontramos em todas as narrativas,
mostram-nos um Kane absolutamente só.
A
construção do filme é uma constante dispersão e cada imagem dispersa-se também
numa profusão de pormenores. A presença dos tectos (que fez correr tanta tinta)
não é o esmagamento do herói, é uma dilatação do espaço horizontal - sabe-se
que Welles sentia o écran largo, muito antes da invenção do cinemascope. A profundidade de campo, os
cenários dispostos de tal modo que um único plano faça a economia de vários,
pois o espaço é rico e utilizado de maneira fecunda, são elementos coordenados
de modo a fazerem evidenciar-se o poder do herói e, ao mesmo tempo, a sua
solidão. No desejo de servir o personagem, Welles
viu-o desmedido, omnipotente, orgulhoso; e impõe-nos essa visão. Essa perpétua
consideração do personagem sob ângulos insólitos fá-lo aparecer tal como é:
orgulhoso e sedento de poder e, por consequência, solitário. Pode parecer um
paradoxo, mas encontra-se exposto de maneira convincente pelo recurso à
estilística de Welles. O cineasta
escolheu a abundância da riqueza, para fazer surgir o seu herói mais só e mais
vulnerável.
Aliás,
o tema da solidão, é-nos apontado logo no início do filme, muito antes de
travarmos conhecimento com as várias facetas de Kane. O encadeamento de travellings fixos para a frente fazem-nos
passar por todas as zonas, simultaneamente pitorescas e impressionantes, que
separam Xanadu, morada de Kane, do
mundo exterior. Aqui, o movimento de câmara reveste-se dum valor simbólico
preciso: o cartaz inicial "No trespassing" ("Proibida a
entrada") indica-nos desde logo a solidão que pesará sempre sobre o
destino do herói. Esse tema é orquestrado por essa longa série de travellings para a frente que nos faz
sentir, de maneira cada vez mais penetrante, como é difícil ter acesso à
intimidade do protagonista. O filme finaliza com essa mesma caminhada, mas agora em sentido inverso:
começa com o plano geral do espólio acumulado por Kane (como já vimos um
símbolo da sua solidão) e vai recuando até encontrarmos de novo o cartaz de
aviso do início, fechando assim o ciclo da história de Charles Foster Kane.
Solidão,
nostalgia, memórias antigas. Até "Citizen Kane" nenhum
outro filme utilizara com tanta habilidade o retorno ao passado. Jorge Luís
Borges (1899-1986), poeta-escritor e ensaísta argentino, fez exemplarmente o
elogio dos labirintos wellesianos:
«Esta descoberta da alma secreta de um homem, através das obras que ele
construíu, as palavras que pronunciou, os destinos que tentou impedir, esta
rapsódia de cenas heterogéneas, sem ordem cronológica, este caos aparente, tudo
isto tem algo de genial, no sentido mais sombrio e mais alemão do termo.» E
André Bazin elogiou a especificidade
de uma obra que «abalou o edifício das tradiçõrs cinematográficas.»
Orson Welles tinha 25 anos quando realizou "Citizen
Kane". E uma coisa que sempre nos impressiona - a mim, à minha
geração e às gerações precedentes - todas as vezes que o revemos, é podermos
constatar como o filme se manteve (e mantém) magnífico, irresistivelmente
jovem. Quando o vi pela primeira vez, há muitos, muitos anos, a convicção,
imediata, foi a de que, se o cinema podia realmente fazer aquilo, então seria capaz de tudo. O tempo dar-me-ia razão, mas
infelizmente nem sempre a melhor das razões. “O Mundo a Seus Pés” é
daquelas obras verdadeiramente geniais (e o adjectivo aqui não é levianamente
usado), porque não limitada a um tempo preciso.
E
o caminho de descoberta é quase
sempre o mesmo: primeiro o espanto, a constatação da originalidade das diversas
técnicas de filmagem, que numa primeira visão se sobrepõe à emotividade. Daí
muitos iniciados considerarem o filme inócuo, sem chama. Mas depois, com o
passar dos anos, a cada retorno, descobrimos encantados a maravilhosa emoção de
tudo aquilo. Porque estamos mais
velhos, mais nostálgicos, mais solitários. Welles,
enormíssimo cineasta, mas também inovador, conspirador, um homem de efeitos, um
hipnotizador, marcou profundamente a consciência colectiva do cinema. E "Citizen
Kane" é um filme feito em perseguição de um sonho - um Gatsby do
cinema.
CURIOSIDADES:
-
Entre as centenas de filmes que Welles visionou para se preparar para a rodagem de “Citizen
Kane”, encontrava-se “Stagecoach”,
de John Ford, que o jovem realizador terá visto cerca de 40 vezes
- A
cena em que Kane destrói o quarto de Susan foi filmada num primeiro e único
take. Diz-se que Welles chegou a
sangrar das mãos, tal a violência colocada na acção
- Apesar
da enorme publicidade feita à sua volta (a maior parte dela negativa,
proveniente de sectores ligados ao império de Hearst), o filme não teve o
impacto pretendido, sendo na sua estreia um enorme flop comercial. Inclusivé, na apresentação dos Óscares de 1941,
cada vez que era anunciada uma nomeação (foram nove no total) ouvia-se na sala
um coro de assobios. A R.K.O. não teve outro remédio senão voltar a recolher o
filme e apenas nos meados dos anos 50 voltou a repô-lo nas salas
- Na
cena em que Kane persegue Gettys pela escada abaixo Welles torceu um tornozelo, o que o obrigou a dirigir as filmagens
sentado numa cadeira de rodas, durante um período de 15 dias
-
A origem da palavra “Rosebud” é explicada pelo argumentista Herman J.
Mankiewicz como sendo o nome dado por ele a uma bicicleta que teve em criança.
No entanto, numa crítica aparecida no New York Review of Books, o autor, Gore
Vidal, escrevia que “Rosebud” (“botão de rosa”) era o nome dado por Hearst ao
clitóris da sua amante, Marion Davies
- Para
as cenas em que Kane aparece já velho, Welles
sujeitava-se diariamente a cerca de 6 horas de maquilhagem (das 3:00 às 9:00
horas da manhã, altura em que começavam as rodagens)
- O
trecho de ópera que Susan repete por várias vezes é extraído do “Barbeiro de
Sevilha”, de Gioachino Rossini (“Una Voce Poco Fa”)
- Foi
por decisão da R.K.O. que o filme se passou a chamar “Citizen Kane”. O nome
anteriormente escolhido por Welles
era “John Q”, mudado posteriormente para “American”
- Uma
das muitas novidades técnicas introduzidas por Welles e pelo fotógrafo Gregg Toland no filme foi o chamado “deep
focus”, em que os elementos nos diversos níveis de profundidade se encontram
todos focados.
- Pouco
antes da exibição do filme em San Francisco Welles encontrou Hearst num elevador do Hotel Fairmont, tendo-o
convidado para assistir à estreia. Hearst declinou o convite, tendo Welles retorquido que «Charles Foster
Kane teria aceite»
- “Citizen
Kane” apenas ganhou o Óscar para o melhor argumento, apesar de ter sido
nomeado para mais 8 categorias: Filme, Realização, Cinematografia, Actor
Principal (Orson Welles), Direcção Artística, Montagem, Som e Música Original.
Mas a Associação de Críticos de Nova Iorque elegeu-o como o melhor filme de
1940
- Na
mais recente votação do American Film Institute para os melhores filmes de
sempre (um júri formado por 1.500 personalidades, entre as quais muitos críticos e
historiadores de cinema), “Citizen Kane” mantém o primeiro
lugar, à frente de “The Godfather”
(Francis Ford Coppola, 1972) e “Casablanca”
(Michael Curtiz, 1942). Ver listagem completa aqui.
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