O caldo entornou-se. O jovem católico virou-se para o chefe de polícia e disse-lhe
em tom de desgarrada: «Gostava que fizessem isso à sua mãe?» Ó meu amigo,
palavras não eram ditas e já o até então polidissimo agente lhe enfiava uma
gravata que, vi eu, fez o ar dos pulmões do jovem bater no tecto da sala. Tossia
ele, tossia toda a velha sala da Cinemateca. Exibia-se, 1985, "Je
Vous Salue Marie", de Godard,
então inédito em Portugal por miúfa dos distribuidores. Krus Abecassis,
lendário presidente da Câmara, prometera escaqueirar tudo se a Cinemateca se
atrevesse. Fomos perguntar ao João Bénard, que era quem mandava em nós, se nos
atrevíamos. O João foi claro: «Nessas coisas, sou uma senhora séria. Ora, como
sabem, senhora séria não tem ouvidos.» Preparámo-nos para o combate. Se de
algum lado estava, a Graça estava do nosso lado. João Bénard era de um
catolicismo doce que lhe impregnou o olhar e a escrita toda a vida, logo a ele
que, tanto mudando, em nada de essencial algum dia mudou. Sentíamo-nos, por
isso, legitimados para passar um filme que mostrava o desejo de gravidez e o
bendito ventre cujo fruto talvez fosse Jesus. Éramos democratas, mas não éramos
parvos: armou-se um dispositivo de Aljubarrota. Vigilância da PSP e dois dos
nossos projeccionistas, tipos que combinavam volume de boxeur com altura de
defesa-central, a filtrar entradas no magnífico portão da rua.
Vendiam-se dois bilhetes por pessoa, o que frustrou as encantadoras virgens
que quiseram comprar a lotação do cinema. A sala era um ovo cheio. Gente no
chão e no ar uma excitação misto de primeira comunhão e noite de núpcias.
Fez-se escuro: a volúpia das imagens aflorou a tela e os jovens católicos
pularam em ave-marias e salve-rainhas, subindo ao palco a esbracejar contra as
sombras blasfemas. As luzes reacenderam-se, iluminando um belo e poético caos. Enquanto nós gritávamos aos jovens Savonarolas que "Je
Vous Salue Marie" era a apologia da Imaculada Conceição, um filme
sobre o mistério da mulher que, entre tormento e dúvida, aceita uma violenta
graça e sobre o homem, José, que se torce de ciúmes, mas por amor confia, os
velhos cineclubistas, com algum saudoso comunismo, apontavam à polícia os
insurrectos: «É aquele..e aquele.» Era um mundo às avessas: velhos esquerdistas
ajudavam a polícia e um miúdo, com vozinha de copo de leite, gritava-lhes: «Pides!»
Num arroubo místico, um dos rapazes desmaiou. Ajoelhou-se ao lado dele uma
menina de calças de xadrez. Era bonita e parecia que, segurando-lhe a mão,
rezava. Com vontade de rezar com ela, ainda pensei: «Vês, meu anjo, como ser
virgem é estar disponível?» Saberia ela que, assim, na sua ajoelhada angústia,
rimava com a imagem de Myriem Roussel no filme apóstata de Godard e repetia, prosaica e séculos depois, o poético mistério
mariano?
(Manuel S. Fonseca, in jornal Expresso, 17/3/2012)
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