segunda-feira, maio 07, 2012

AS VOZES DE GRANT E TURNER


Cary Grant em 1963

Entra pelos ouvidos. Mas quando não entra por um e sai pelo outro, para onde é que vai a voz de quem fala connosco?

A voz de Cary Grant, quero é falar da voz de Cary Grant. Um dia, a secretária virou-se para ele, telefone na mão, e murmurou: «Está aqui o Presidente Kennedy a querer falar consigo…» O actor, que por acaso era inglês e se chamava Archie, foi ao telefone: «Sr. Presidente, em que posso ser útil?» (Toda a gente queria ser útil ao Presidente Kennedy). John estava na Sala Oval, com o irmão Bobby ao lado, e contou-lhe que ambos queriam falar com ele. «Pois não, e como posso ajudá-los?», insistiu o actor de Hitchcock. Encabulado, o Presidente balbuciou: «Bom, na verdade nós ligámos-lhe por uma razão simples. Queríamos ouvir a sua voz!». Eram dois miúdos, sentados ao colo duma nação, a quererem realizar um sonho: ouvir a voz de Cary Grant. Como o melhor café, a voz dele era uma mistura excepcional de arábica e robusta. Um sotaque mais elegante do que petulante, uma pronúncia muito acentuada da primeira sílaba de cada palavra, a nonchalance de uma hesitação, o timbre de tenor, um pó de ligeira ironia a aromatizar, picante, o fim de frase.
Kathleen Turner
 A voz de Cary Grant levava os Kennedy ao céu. A de Kathleen Turner levou William Hurt para a cama. Vamos admitir que a voz de Grant se instala nas limpas assoalhadas do cérebro a que chamamos lobos temporais. Entra e delicia, primeiro o córtex auditivo primário dos Kennedy, depois a área auditiva secundária, a deles ou a da princesa Grace Kelly, em “To Catch a Thief”. As frequências baixas da voz de Kathleen Turner não param aí. Décadas antes, já Lauren Bacall ensaiara rouquidão semelhante. Para resistir, Bogart, essa antítese de Ulisses, fugia-lhe de iate para o alto mar. Em “Body Heat”, Hurt não tem fuga: a voz de Turner atravessa-lhe o córtex e vem por ali abaixo, com tal fragor muscular que o jovem Hurt rebentaria portas e janelas – e rebenta! – para colher a ressonância profunda que emana da boca dela.
Kathleen Turner e William Hurt em "Body Heat" (1981)
A voz de Grant pára na sala civilizada do cérebro, a de Turner já vimos onde. Outras vozes infectam a alma, como o verme de Blake adoece o botão de rosa. As vozes de certos padres ou mestres são melífluas, carregadas de persuasão e algemas. Dão o ouvinte como certo e enfraquecem-no, cortando-lhe o cabelo como Dalila a Sansão. Chatos como a potassa. Quando ouvirem vozes dessas, lembrem-se do grito do catolicissimo Hitchcock. Descendo uma sinuosa colina suíça, ao ver um rapazinho a caminhar ao lado de um padre – a protectora mão deste por cima do jovem ombro, uma neblina de conselhos a esvoaçar já sobre a fresca cabeça –, Hitchcock abriu a janela do carro e gritou: «Run for your life, boy!» Com quem diz: Salvem esse coiro, rapazes. Há vozes piores do que grilhetas.
(Manuel S. Fonseca in Jornal Expresso)

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