Um filme de ORSON WELLES
Com Orson Welles, Rita Hayworth, Everett Sloane, Glenn Anders
EUA / 92 min / PB / 4X3 (1.37:1)
Estreia em França a 24/12/1947
Estreia nos EUA a 9/6/1948
Estreia em Portugal a 28/5/1949
Michael O'Hara: «The only way to stay out of trouble is to grow old.
So I guess I'll concentrate on that»
Em vez de uma intriga perfeitamente elaborada, “The Lady From Shangai” revela uma acção de uma força pouco comum mas, se assim se pode dizer, subterrânea. A intriga policial não é mais do que um pretexto, à moda de um “mcguffin” dos filmes de Hitchcock. O que conta são as personagens e as suas relações, bem como, e sobretudo, o seu simbolismo moral. Digamos que é grosseiramente a história de um rapaz honesto, o irlandês Michel O’Hara (Orson Welles), contratado como marinheiro num iate de milionário e envolvido em obscuras intrigas criminais, às quais a bela Elsa Bannister (Rita Hayworth) não é completamente alheia. Usando os seus encantos de mulher fatal, Elsa funciona como a aranha que vai tecendo a teia para a sua vítima mas mantendo-se sempre afastada, na expectativa.
Com “The Lady From Shangai”, Welles subalternizava as pesquisas e as novidades técnicas de “Citizen Kane”, virando-se para o classicismo do film noir, sem contudo o levar muito a sério. Poder-se ia dizer que “The Lady From Shangai” é paradoxalmente o mais rico de sentido dos filmes de Welles à proporção da insignificância do argumento: com a intriga a não impedir a acção profunda, os temas desenvolvem-se aí quase no estado puro. Temas fundamentalmente morais e que revelam as obsessões essenciais da ética wellesiana, e antes de mais uma sensibilidade para a liberdade de escolher o bem ou o mal, se bem que a vontade de Michel O’Hara esteja em parte condicionada a uma certa forma de destino. O filme desenvolve-se entre estes dois comentários do protagonista: «Quando começo a conduzir-me como um imbecil, nada no mundo me pode impedir de ir até ao fim» e o que o acompanha no final do filme, «Morta...tenho que me esforçar agora para a esquecer. A minha inocência despedaça-se...; mas, inocente ou culpado, isso não significa nada, o essencial é saber envelhecer bem»
Moralismos à parte, o que perdura neste filme de Welles é o surrealismo da atmosfera, a audácia alucinante de certas cenas. Como esquecer a cena de amor no aquário, diante de polvos e tubarões, a ser drasticamente subvertida pela aparição súbita do grupo de estudantes? Ou toda a sequência do tribunal em que Welles, que sempre detestou autoridades e sobretudo aquele mundo de leis e justiças, se diverte a satirizar os intervenientes? Ou a cena final na galeria dos espelhos (a memória do filme confunde-se frequentemente com este epílogo) em que Elsa e Bannister disparam por estimativa, procurando atingirem-se mutuamente por entre o ruído dos vidros estilhaçados das suas imagens?
Relativamente a esta última cena será pertinente entender a ideia de génio que era a utilização dos espelhos para a multiplicação dos personagens, cuja imagem é diferente em cada espelho. Tratava-se de equilibrar o par verdadeiro com as suas diversas imagens e, por arte do enquadramento, de obrigar o olhar a seguir essa multiplicação. Cada imagem está distante dos personagens, foge para o fundo, explora uma profundidade que é fisicamente ilusória, mas que se torna real no écran. O centro é a cabeça e o busto de Rita Hayworth que iluminam o rosto de Orson Welles mas toda a área do frame é usada em profundidade e em largura, resultando a imagem um todo organicamente ligado.
Relativamente a esta última cena será pertinente entender a ideia de génio que era a utilização dos espelhos para a multiplicação dos personagens, cuja imagem é diferente em cada espelho. Tratava-se de equilibrar o par verdadeiro com as suas diversas imagens e, por arte do enquadramento, de obrigar o olhar a seguir essa multiplicação. Cada imagem está distante dos personagens, foge para o fundo, explora uma profundidade que é fisicamente ilusória, mas que se torna real no écran. O centro é a cabeça e o busto de Rita Hayworth que iluminam o rosto de Orson Welles mas toda a área do frame é usada em profundidade e em largura, resultando a imagem um todo organicamente ligado.
Mas por mais insólitas, por mais estravagantes que sejam todas estas cenas, o essencial de “The Lady From Shangai” para o público americano é a violência com que Welles desmitifica a mulher de que Rita Hayworth era justamente o símbolo. Sob a imagem ideal que o cinema fizera dela, Welles denuncia um monstro, uma devoradora de homens. Pela primeira vez, já não é apenas o homem que é denunciado como criminoso. É também a mulher, que até então se pretendia apresentar como anjo salvador. O espectador médio americano, que já se sentira frustrado com a nova fisionomia que Welles inventara para a diva (cabelo curto e oxigenado), não lhe podia perdoar o tê-la agora assassinado. Pior ainda, deixá-la morrer como uma cadela sobre o soalho, de onde ele sai indiferente, apressado em terminar com aquilo e sem o mínimo vestígio de compaixão. Da mesma forma que jamais perdoou a Chaplin os seus escândalos femininos e o seu “Monsieur Verdoux” (curiosamente uma ideia que partiu do próprio Welles).
A misogenia do cinema americano sempre constituiu um lugar-comum da crítica intelectual e Rita Hayworth foi sem dúvida uma das suas primeiras vítimas. E continua a ser, pelo génio de Welles, a mais gloriosa das mártires. A crítica não acolheu mal “The Lady From Shangai”, mas o público apenas o seguiu de longe. Dessa vez, a causa de Orson Welles foi julgada. Hollywood estava farta do seu wonder boy, que lhe tinha custado em sete anos alguns milhões de dólares.
Apesar dos numerosos meios colocados à sua disposição, Orson Welles nunca conseguiu finalizar o filme que imaginara. A metragem inicial de cerca de duas horas e meia foi amputada em 60 mintuos e, pior, as notas que o realizador escreveu para a montagem do filme foram pura e simplesmente ignoradas, não lhe sendo permitido interferir sequer no cut final. Hoje em dia só podemos imaginar o que é que “The Lady From Shangai” poderia ter sido se, mais uma vez, os produtores não se tivessem imiscuido no lado artístico da obra. Mas, mesmo assim, o filme apresenta todo o virtuosismo de Welles: os enquadramentos caprichosos, os movimentos de câmara geniais, elipses fulgurantes, a dialética de plongées/contreplongées, todo um arsenal expressionista: os sonhos, o combate entre a luz e as sombras, a complexidade da estrutura narrativa, o uso do plano-sequência, a voz-off do comentador que tudo acompanha e que tudo comanda. Mesmo gravemente ferido o génio de Welles conseguia ainda assim sobreviver.
CURIOSIDADES:
- O iate onde parte da acção do filme decorre pertencia a Errol Flynn, que assistiu a muitas das filmagens (o seu cão chega a aparcer numa cena)
- O produtor Harry Cohn retardou a estreia do filme durante um ano, com receio da imagem de Rita Hayworth ser afectada junto do grande público. Chegou inclusivé a ordenar a Welles que filmasse close-ups da estrela para os mesmos serem inseridos ao longo do filme. O mesmo se passou com a cena em que Rita canta “Please Don’t Kiss Me”, que foi posteriormente filmada.
- Chegaram a ser equacionados outros títulos para o filme: “Black Irish” e “If I Die Before I Wake”, este último o nome da novela de Sherwood King onde o argumento foi baseado.
2 comentários:
O grande mérito destes posts, qualidade de escrita à parte, é dar-nos a imensa vontade de ver (ou rever) os filmes.
Neste caso e pessoalmente, o de rever, uma vez que a única vez que o vi foi nos inícios dos anos 70, salvo erro numa sessão do cine-clube de LM, que costumavam ocorrer no Cinema Dicca (lembras-te?).
Tenho boas recordações da Lady de Xangai, sobretudo da tal cena final dos espelhos, hoje um ícone absoluto do cinema. Vou portanto pôr-me à procura do respectivo DVD, que julgojá ter sido editado entre nós.
Uma referência ao belissimo video que colocaste a ilustrar o filme. Julgo que a música, "Don't Fool Me", nada tem a ver, mas que foi bem escolhida, foi. E a montagem está excepcional, 5 estrelas!
É claro que me lembro das sessões do Cine-Clube no Dicca, caro nowhereman. Esses anos foram a nossa Escola de Cinema, onde vimos pela primeira vez todas as maravilhas de que até então só conhecíamos de nome. Outros tempos, sem as vantagens que as novas gerações têm actualmente de verem tudo, ou quase tudo. Ainda tenho o cartão de sócio e se calhar vou colocá-lo aí no sidebar só por piada.
O DVD já foi editado por cá, mas se tiveres dificuladade em encontrá-lo envia-me um email que eu te faço uma cópia.
Também achei fabuloso o trabalho posto no video do YouTube. É claro que a música nada tem a ver com o filme, mas é como dizes, extremamente bem escolhida. Um bom incentivo para quem não conhece se predispor a ver este filme lendário.
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