Andámos lá perto e não vimos Orson Welles. Foi em Marraquexe, anos 80, e pela minha mulher ofereceram-me 60 tentadores camelos. Viajávamos com amigos, um casal gay, avant la lettre diga-se, e um deles, desvio de um minuto no meio da feira onde regateávamos, volta a rir-se: um marroquino, em soletrado francês, acabara de se oferecer para lhe mostrar a verdadeira cobra de Marraquexe. Cristã e humildemente recusou a soberba do gesto islâmico. A Orson Welles quem lhe mostrou Mogador foi o decorador francês Alexandre Trauner. No meio da renda árabe da cidade, seduziu-o um seiscentista e soberbo forte português. Era o cenário perfeito para filmar o verdadeiro “Othello”, o “Othello” mouro que Shakespeare lhe pusera na cabeça. Welles garantira o financiamento e trouxe, em 1949, a sua trupe de actores e técnicos. Mas, ao olhar para a conta bancária, viu que o dinheiro prometido não estava lá. Como nem para o guarda-roupa havia guita, filmou duas cenas no banho turco. Nuas, as personagens podiam estar em qualquer século, até nesses anos gloriosos da Veneza de Desdémona e do seu general mouro.
Mas
ninguém, nem mesmo Lars Von Trier, consegue filmar um “Othello” completamente
nu. Welles veio a Veneza falar com um russo maluco que tinha o que era preciso:
notas gordas, moedas douradas. Estiveram a negociar no Excelsior, que estas
coisas requerem grandeza. O russo estava difícil. Digamos que não se abria.
Vinham a sair e a uma mesa sentava-se, então em sabática governativa, Winston
Churchill. Welles dá-lhe na veneta e saúda-o com uma silenciosa vénia. O
inglês, num daqueles rasgos teatrais que Veneza suscita, tira o pesado rabo da
cadeira e, meio em pé, responde-lhe com uma vénia que era o dobro da do
americano. À porta, o russo, que podia ser maluco, mas não era parvo, disse a
Welles: «És íntimo de Churchill…» e deu-lhe um aperto de mão, negócio feito.
Depois, Welles foi ter com Churchill e, com um «o senhor nem sabe o que fez por
mim», contou-lhe tudo. Ao jantar, quando Welles e o russo passaram pela mesa de
Churchill, o heróico inglês puxou a cadeira toda para trás e pôs-se de pé para
a vénia, como quem diz «ora aqui tens, saca-lhe ainda mais massa.» A bem dizer,
Churchill foi o produtor de “Othello”.
(Manuel
S. Fonseca in revista Atual do semanário Expresso, 15/2/2014)
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