Raoul
Walsh e Errol Flynn foram comprar um cavalo. No regresso a casa, um amigo, que
acompanhara a agonia de John Barrymore, deu-lhes a notícia da morte do actor. Os
Barrymores foram a primeira família real do cinema americano. John era um
shakespeariano no teatro, Don Juan e Jekyl e Hyde em filmes, de épicas
bebedeiras na vida. Estava agora a ser embalsamado pelos Malloys Brothers, para
dar tempo a que a família viajasse e viesse ao funeral. Flynn e Walsh
lamentaram não se terem despedido do amigo em vida, um último glorioso copo
antes da cova. Foi cada um para seu lado.
Mas
a cabeça irlandesa de Walsh não lhe dava descanso e um raio fulgurante pô-lo à
porta da funerária. Era amigo dos Malloys e pediu-lhes que o deixassem levar o
corpo para um último passeio. Meteu o cadáver no carro e foi até casa de Flynn.
Chamou o mordomo para o ajudar, dizendo-lhe que Barrymore estava com uma
bebedeira das antigas. Pondo-lhe um copo de gin à frente, o mordomo comentou:
«Senhor Walsh, nunca tinha visto o senhor Barrymore tão bêbedo, dir-se-ia que
está morto.» E foi preparar um café quente para reanimar o realíssimo actor.
Ouve-se,
então, o carro de Flynn a chegar. Walsh sentou-se num sofá, como se estivesse
em amena cavaqueira com o amigo John. Flynn entra, pousa uns papéis numa mesa,
volta-se e vê Barrymore sentado num cadeirão. Dá um berro do outro mundo e foge
dali a sete pés. Walsh vai atrás dele, já o actor está escondido, flor de
estufa, atrás de oleandros e buganvílias. «Irlandês cabrão, sai da minha casa,
antes que eu tenha um ataque cardíaco.» Walsh volta à sala, onde está o mordomo a
tentar convencer Barrymore a ingerir o cafezinho retemperador. Pega no amigo e
vai-se embora. Pelo retrovisor, ainda vê o pálido Errol Flynn a sair do meio
dos oleandros.
Walsh
redimiu-se, ajudando a preparar o cadáver. Penteou-o tal qual como John gostava
de usar o cabelo. Vestiu-lhe o fato mais bonito. Com Flynn, Clark Gable,
Spencer Tracy, carregou a urna durante o funeral. A primeira geração de
Hollywood ia a enterrar. Nunca mais houve melhor. Não é só terem sido pioneiros:
havia amor entre eles. Era rijo, mas era amor.
(Manuel
S. Fonseca in revista Atual do semanário Expresso, 18/2/2014)
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