Não há maior distracção do que a de Deus a criar o mundo. Deus é uma espécie de Peter Sellers, e o mundo, como bem sabemos, não é diferente do “The Party”, de Blake Edwards. Mas João Bénard, mítico director da Cinemateca e quem primeiro levou a vetusta Gulbenkian a ver um filme, era tudo menos um Peter Sellers. As hiperbólicas distracções dele estavam entre o Cary Grant de “Bringing Up Baby” e o Jacques Tati de “Les Vacances de M. Hulot”.
O
Pap’Açôrda já entrara no século XXI e conservava a mesma gloriosa mousse de chocolate do século XX. A uma
mesa, sentavam-se o João Bénard e o marginalíssimo realizador alemão Werner
Schroeter. Os dois de costas para a entrada, e via-se que esperavam alguém. A
vigiar a porta, um colaborador a quem o João pediu para o avisar mal entrasse
Isabelle Hupert. Era por ela, a filmar em Lisboa, que esperavam. Quando a
ansiedade é muita, antecipa-se o que se deseja ver e o colaborador disse ao
João: «É ela.» O João deu um salto à João, perdão, à Monsieur Hulot, e correu,
como Cary Grant, para a porta. Já não ouviu o colaborador aos gritos: «Ah, não
é, desculpe, não é ela.»
«Isabelle»,
dizia o João à senhora a quem beijava as mãos, «mais quelle honneur…»
Surpreendida, tão honrada como embaraçada, a senhora, num límpido português
pré-acordo ortográfico, só respondia: «Ó João, mas o que é que lhe deu?»
Inabalável, sem saber que estava a protagonizar uma das suas mais lendárias gaffes, o João Bénard continuou a
elogiar a imaginária Huppert: «Et en plus vous parlez portugais!» Era, aliás, a
única coisa que a senhora falava: «Que disparate, João, porque é que não havia
de falar português?!»
O
João Bénard percebeu, então, que a senhora era uma velha amiga, apesar de, por
tanto ter a Huppert na cabeça, nem do nome dela se conseguir lembrar.
Embrulhou-se em desculpas e voltou para a mesa com um homérico ataque de riso.
Era o João a estranhar, entre gargalhadas convulsas, não conseguir lembrar-se
do nome da amiga, e era o Schroeter a avisá-lo: «Não diga à Isabelle Huppert
que a confundiu com uma mulher que deve ter mais vinte anos do que ela.
Acabaríamos em tragédia o que agora começou em comédia.» E a Huppert nunca
soube o quanto Monsieur Hulot se riu antes de ela chegar.
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