segunda-feira, fevereiro 03, 2014

MONSIEUR HULOT NO PAP’AÇÔRDA


Não há maior distracção do que a de Deus a criar o mundo. Deus é uma espécie de Peter Sellers, e o mundo, como bem sabemos, não é diferente do “The Party”, de Blake Edwards. Mas João Bénard, mítico director da Cinemateca e quem primeiro levou a vetusta Gulbenkian a ver um filme, era tudo menos um Peter Sellers. As hiperbólicas distracções dele estavam entre o Cary Grant de “Bringing Up Baby” e o Jacques Tati de “Les Vacances de M. Hulot”.


O Pap’Açôrda já entrara no século XXI e conservava a mesma gloriosa mousse de chocolate do século XX. A uma mesa, sentavam-se o João Bénard e o marginalíssimo realizador alemão Werner Schroeter. Os dois de costas para a entrada, e via-se que esperavam alguém. A vigiar a porta, um colaborador a quem o João pediu para o avisar mal entrasse Isabelle Hupert. Era por ela, a filmar em Lisboa, que esperavam. Quando a ansiedade é muita, antecipa-se o que se deseja ver e o colaborador disse ao João: «É ela.» O João deu um salto à João, perdão, à Monsieur Hulot, e correu, como Cary Grant, para a porta. Já não ouviu o colaborador aos gritos: «Ah, não é, desculpe, não é ela.»


«Isabelle», dizia o João à senhora a quem beijava as mãos, «mais quelle honneur…» Surpreendida, tão honrada como embaraçada, a senhora, num límpido português pré-acordo ortográfico, só respondia: «Ó João, mas o que é que lhe deu?» Inabalável, sem saber que estava a protagonizar uma das suas mais lendárias gaffes, o João Bénard continuou a elogiar a imaginária Huppert: «Et en plus vous parlez portugais!» Era, aliás, a única coisa que a senhora falava: «Que disparate, João, porque é que não havia de falar português?!»


O João Bénard percebeu, então, que a senhora era uma velha amiga, apesar de, por tanto ter a Huppert na cabeça, nem do nome dela se conseguir lembrar. Embrulhou-se em desculpas e voltou para a mesa com um homérico ataque de riso. Era o João a estranhar, entre gargalhadas convulsas, não conseguir lembrar-se do nome da amiga, e era o Schroeter a avisá-lo: «Não diga à Isabelle Huppert que a confundiu com uma mulher que deve ter mais vinte anos do que ela. Acabaríamos em tragédia o que agora começou em comédia.» E a Huppert nunca soube o quanto Monsieur Hulot se riu antes de ela chegar.

(Manuel S. Fonseca in revista Atual do semanário Expresso, 1/2/2014)


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