Bogart
inventou uma personagem para si mesmo. A personagem com que se vestia era um
tipo arrogante, municiado de respostas insolentes. Mesmo nos dias civis, em que
não tinha de arrastar os pés para o estúdio, Bogart saía à rua dentro dessa
pele. Era a forma que tinha de resistir a um mundo que lhe causava desgosto.
Era uma barreira, a barreira com que podia andar na rua sem ser ele. Bogart,
esqueçam agora a personagem, era um tipo que chorava. Um dia, casou-se pela
terceira vez. Casou-se, como todos sabemos, com Lauren Bacall. Era ele que se
casava, mas para aguentar a cerimónia, levantar o véu à linda Lauren,
beijar-lhe a boca à frente dos convidados e do oficiante, Bogart levou a
personagem. Quem sabe se não foi até a personagem que se casou com Bacall, na
longínqua Malabar Farm, no Ohio!
E estou
a mentir para me fazer interessante. Bogart, ele mesmo, também foi ao
casamento. Lauren Bacall apanhou-o, numa sala onde se fechou sozinho, deixando
a personagem no olho da rua. Apanhou-o a chorar. Bogart estava lavado em
lágrimas. E porque é que choras e ai meu amor e coisa e tal e ele explicou-lhe.
Estava ali, fechado na sala, a pensar nas palavras que ouvira o oficiante
dizer. Acabara de prometer acompanhar uma miúda de 20 anos na alegria e na
tristeza, na saúde e na doença. Sabia, como actor, o valor dessas palavras e
chorava, comovido, com cada uma delas.
Terão
tido alegrias e tristezas, tiveram saúde e doença. Mas tiveram filhos também,
um rapaz e uma rapariga. Um dia, Bogart foi buscar o miúdo ao infantário.
Viu-o, na sala de aula, sentado na cadeirinha da escola. Era o pequenino filho
dele, sentado na carteira, a olhar para a professora. Bogart desatou em pranto.
E não digo mais nada, senão, choro eu. Tinha esse segredo vergonhoso: era boa
pessoa. E, nem aquele mundo de Hollywood nem o nosso mundo, estão para boas
pessoas. Um tipo tem de se defender. Ele arranjou uma personagem áspera, dura,
e convenceu o cinema e a vida de que a personagem era ele. Mas, tal como
Lincoln avisava que não se podia enganar toda a gente o tempo todo, também a
vida lembrou a Humphrey Bogart que tem dias em que não se deixa aldrabar. Em
dias desses, chegávamo-nos a Bogart e esbarrávamos num coração mole, num par de
olhos húmidos.
(Manuel S. Fonseca in
revista Atual do semanário Expresso, 22/2/2014)
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