Um filme de STANLEY KUBRICK
Com Ryan O'Neal, Marisa Berenson, Patrick Magee, Hardy Kruger, Gay Hamilton, Marie Kean, Leonard Rossiter, Philip Stone, Leon Vitali
GB-EUA / 184 min / COR /
4x3 (1.85:1)
4x3 (1.85:1)
Estreia na GB e nos EUA a 18/12/1975
Estreia em PORTUGAL a 25/2/1977 (Lisboa, estúdio Apolo 70)
«Penso que tem de se visualizar completamente o problema de pôr a história que se quer contar no rectângulo luminoso. Começa com a selecção do livro; continua através da criação do tipo correcto de financiamento e das circunstâncias legais e contratuais sob as quais vamos fazer o filme. Prossegue com o casting, a criação do argumento, dos cenários, dos adereços, da fotografia e da representação. E quando o filme já foi todo filmado, ele só está parcialmente terminado. Penso que a montagem é a continuação da realização. Os efeitos musicais, visuais e finalmente as legendas fazem parte do processo de contar uma história. E o repartir destes trabalhos por diferentes pessoas é uma coisa péssima.» (Stanley Kubrick)
“It was in the reign of George III that the aforesaid personages lived and quarreled; good or bad, handsome or ugly, rich or poor they are all equal now”
“Barry Lyndon” foi dos filmes mais ansiosamente aguardados de Kubrick, que vinha de nos ofertar duas genuínas obras-primas do Cinema: “A Clockwork Orange”, em 1971 e sobretudo “2001: A Space Odyssey” em 1968. Oito anos e cinco meses, foi o tempo que decorreu entre a estreia em Lisboa (no Monumental, a 1 de Outubro de 1968) deste último filme e o aparecimento do “Barry Lyndon” no estúdio Apolo 70 a 25 de Fevereiro de 1977. Tempo demasiado, quando se pensa que pelo meio até houve uma revolução e que só por causa dela tivemos direito em território nacional a mais um filme do genial realizador, essa “Laranja Mecânica” de contornos maquiavélicos, que se estreou nos cinemas Castil e Império a 29 de Novembro de 1974.
“Barry Lyndon” é um longo fresco de três horas, uma viagem obrigatória e fascinante por dezenas de quadros vivos do século das luzes que nenhuma pintura conseguiu representar tão bem como o fizeram as objectivas de John Alcott (algumas delas especialmente encomendadas à NASA, devido à pouca luz existente na maioria dos interiores – filmados, como se sabe, num processo até aí original, em que apenas velas de cera foram usadas como focos de luz). O filme, rodado nas paisagens naturais da Irlanda e Inglaterra (não se construíram quaisquer cenários) é baseado numa obra de pouca implantação de William D. Thackeray, da qual Kubrick conseguiu extrair o que lá não se vislumbrava sequer (uma das suas capacidades mais comuns, essa de conseguir converter romances medianos em absolutas obras de arte – veja-se o caso idêntico da já citada “Laranja Mecânica”, de Anthony Burgess).
A perplexidade dos críticos face à escolha deste escritor por parte de Kubrick foi exactamente a mesma com que esses críticos reagiram à decoração Luis XVI que envolvia a parte final de “2001: Odisseia no Espaço”. Ora acontece que essa decoração e este romance têm exactamente o mesmo século XVIII por enquadramento, o qual era um período histórico muito querido do cineasta. Relembrem-se, por exemplo, o quadro atrás do qual o Quilty da “Lolita” é morto; o castelo dos “Horizontes de Glória” (cujo luxo contrasta com a atmosfera das trincheiras); ou o casino abandonado da “Laranja Mecânica” (onde o bando rival de Alex tenta violar uma “miudoska” junto a uma pintura pastoral).
Uma das características deste século XVIII, na perspectiva de Kubrick, é a justaposição da violência e da morte à arte nele representada. Em “Barry Lyndon” o cineasta restitui a essa época o seu peso histórico, ressalvando para plano decorativo toda a ligeireza de uma felicidade frívola e vaporosa. O mundo moderno nasceu efectivamente no século das luzes e Kubrick procura aqui as suas origens. Para ele a obra de arte é um diálogo entre o passado e o futuro e onde o presente se encontra excluído; e este princípio kubrickiano tem qualquer coisa de inquietante e destrutivo, uma vez que privilegia a morte face à vida. Para ele o século XVIII é uma época profundamente minada, esperando por uma destruição próxima e onde por detrás do luxo e dos prazeres reina a morte e a desintegração.
Barry Lyndon, personagem cujo trajecto de vida Kubrick acompanha a par e passo e durante um longo período de tempo, vai envelhecendo lentamente de uma ponta à outra do filme, como se a vida pressagiasse, em cada instante, a morte que virá. Barry não chega a morrer mas fica mutilado e imobilizado numa imagem fixa quando sobe para a carruagem que o irá transportar para fora da história e para fora do filme. E fica-nos apenas a voz-off que nos informa do regresso de Barry à Irlanda para de novo se entregar ao jogo, mas sem o proveito de outrora. E que depois o seu rasto se irá perder...
A ascenção e queda de Edmond Barry (sempre o fascínio do poder e do seu controle como tema constante na obra de Kubrick) sugere-nos uma versão prosaica da aventura napoleónica. O percurso de um jovem rural, com uma ambição desmedida que atravessa o mar para ir combater no continente, sobe rapidamente na vida mundana e depois inicia o processo inverso, acabando isolado na sua ilha natal, lembra-nos inequivocamente a própria vida de Bonaparte. Tal como refere a voz-off no filme, «Barry faz parte dos que nasceram suficientemente inteligentes para alcançarem a fortuna mas que são incapazes de a manter. Porque as qualidades e a energia que levam um homem a cumprir a primeira missão são muitas vezes as mesmas que o levam depois à sua perdição»
“Barry Lyndon” é um filme muito belo, talvez o esteticamente mais perfeito de Kubrick e mesmo da história do Cinema. E mais uma vez a música teve honras de prima-dona. Tal como “Assim Falava Zarathrusta” ou o “Danúbio Azul” dos Strauss identificava “2001” e a “Nona” do Beethoven ou a “Pega Ladra” do Rossini se colavam para sempre à “Laranja” (não esquecendo o “Singin’ in the Rain”) em “Barry Lyndon” é sobretudo a exaltante “Sarabande” de Handel, que faz deste novo concerto kubrickiano uma soirée inesquecível, que vai do ritmo das marchas e da graça das danças de O’Riada até ao Trio de Schubert. Logo desde o momento da première que a associação entre as imagens e a música ficará para sempre convertida num espelho de dupla face, no qual nos iremos revendo ao longo das nossas vidas.
Mas não é apenas a música a narrar a história ambígua de Edmond Barry. Para além dela temos também a excelência do guarda-roupa, a arquitectura dos salões, dos jardins e dos seus lagos, a conferirem à narrativa a distinção suprema da arte kubrickiana. A câmara de filmar regista toda esta beleza transbordante nos mais pequenos pormenores dos gestos, dos olhares e dos espaços envolventes da ociosidade absoluta de uma classe social com comportamentos de autómato e caras de manequim, que por um espaço de tempo relativamente breve vai tolerar a presença do objecto estranho que Edmond Barry representa, antes de o expulsar e remeter definitivamente às suas origens.
Depois daquele dramático duelo final (que levou qualquer coisa como 42 dias a ficar pronto na mesa de montagem), um dos momentos magistrais de todo o filme (e que curiosamente não constava do livro, foi totalmente inventada por Kubrick) onde uma mis-en-scène de enquadramentos xadrezísticos confere uma dimensão quase épica ao confronto entre padrasto e enteado, depois do já citado “desaparecimento” de Edmond, vem o epílogo quase fantasmagórico no salão de Lady Lyndon. A ordem aristocrática foi enfim restabelecida e de Barry não restará mais nada que uma pequena nota de pagamento para ser assinada. Uma pausa, uma breve recordação e é tudo.
CURIOSIDADES:
- A rodagem do filme estendeu-se por cerca de 300 dias, durante um período de dois anos, tendo-se iniciado na Irlanda por volta de Junho de 1973. Posteriormente a equipa teve de mudar para Inglaterra por se ter tido conhecimento que o nome de Stanley Kubrick constava numa lista do IRA de alvos a abater.
- Robert Redford foi a primeira escolha de Kubrick para o papel de Barry Lyndon mas o actor recusou. Nessa altura, e devido ao estrondoso êxito de “Love Story” alguns anos antes, Ryan O’Neal era o segundo da lista dos actores mais rentáveis de Hollywood, logo a seguir a Clint Eastwood; e a Warner Bros exigiu ao realizador que o nome do actor escolhido fizesse parte dessa lista, caso contrário não financiaria o filme. Como os restantes nomes do Top 10 eram actores já de certa idade ou inapropriados para o papel, Kubrick não teve outro remédio senão entregar o papel principal a Ryan O’Neal.
- Influenciado certamente por Sergio Leone, Kubrick costumava tocar trechos da banda sonora durante a rodagem das cenas para assim influenciar a representação dos actores.
- Marisa Berenson era apenas um ano mais velha do que Leon Vitali, o actor que faz de seu filho mais velho (Lord Bullingdon). Nos meses que antecederam as filmagens a actriz deixou de se expôr ao sol, seguindo as ordens de Kubrick para desse modo adquirir a palidez necessária ao desempenho de Lady Lyndon.
- Vencedor de 4 Oscars: Direcção Artística e Cenários, Cinematografia, Guarda-Roupa e Música. Teve ainda mais 3 nomeações: Filme, Realização e Argumento-Adaptado. O grande vencedor da Academia seria nesse ano "One Flew Over the Cuckoo's Nest", com um total de 5 Oscars. Stanley Kubrick ganharia o BAFTA inglês.
- Vencedor de 4 Oscars: Direcção Artística e Cenários, Cinematografia, Guarda-Roupa e Música. Teve ainda mais 3 nomeações: Filme, Realização e Argumento-Adaptado. O grande vencedor da Academia seria nesse ano "One Flew Over the Cuckoo's Nest", com um total de 5 Oscars. Stanley Kubrick ganharia o BAFTA inglês.
5 comentários:
Para já agradecer-te este "presente" da banda sonora que por incrível que pareça não figurava na minha colecção de ost's. Agora já lá faz uma excelente figura, thanks!
Sou um kubrickianomaníaco e por isso um fervoroso defensor de todo o seu cinema. Neste caso particular é realmente o esteticismo que contamina tudo e todos. O poder da beleza que emana de "Barry Lyndon" é tão sufocante que me consegue até atingir fisicamente. No final de cada visão deste filme sinto-me completamente derreado e sem forças, tal o "peso" de todas aqueles sons e imagens - e fico para ali aparvalhado, a olhar apaticamente para o genérico final que vai correndo, ao som uma vez mais da "Sarabande" de Handel.
Todo o filme é fabuloso, mas quero aqui destacar 3 sequências ainda mais fabulosas. Uma delas já a destacaste, a do duelo final, que são dez minutos capazes de suster a respiração a qualquer um. Depois há aquela cena logo no início em que a sensualidade impera nos olhares, nos gestos e nas palavras dos dois primos. Mas o meu momento de profundo êxtase chega sempre naquele longo travelling que conduz Barry desde a mesa de jogo até ao varandim onde Lady Lyndon anseia pela sua chegada. Julgo que o trecho musical que se ouve em fundo é o Trio para Piano de Schubert, o qual vai pontuando lentamente todos os passos de Barry. Sempre que revejo o filme tenho de voltar atrás para saborear de novo essa sequência.
Parabéns pelo texto e pelas imagens, que como sempre estão 5 estrelas!
Abraço
Este filme é pura magia...
Cumps cinéfilos.
Gostei imenso do texto. Quanto ao filme, como sabes, partilho do mesmo fascínio e não é para menos. É belíssimo em cada frame, um primor de técnica. Magistral.
Cumps.
Roberto Simões
» CINEROAD - A Estrada do Cinema «
"Barry Lyndon" à parte, o que eu mais gostei de ver aqui foi o anúncio original da exibição do filme no Apolo 70. Quem me dera poder de novo comprar um bilhetinho para uma das sessões (não importava qual) e ir sentar-me de novo naquela linda plateia oval.
Há uns anos atrás passei por lá e quase que me vieram as lágrimas aos olhos...
Também tive a felicidade de o ver no velho Apolo 70, este e mais uns quantos, ( o Apocalypse Now, Fernão Capelo Gaivota, O Vale do Fugitivo, o Duel. etc) Este em particular foi uma experiência inesquecível, embora já tivesse lido as críticas elogiosas nos vespertinos, o Diário de Lisboa e o Popular, não estava preparado para tanta beleza. Não será o melhor mas é sem dúvida o mais belo filme de SK. Excelente texto, obrigado, parabéns.
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