quinta-feira, dezembro 23, 2021

DET SJUNDE INSEGLET (THE 7TH SEAL) (1957)

O SÉTIMO SÊLO
Um Filme de INGMAR BERGMAN



Com Max Von Sydow, Gunnar Björnstrand, Bibi Andersson, Bengt Ekerot, etc.

SUÉCIA / 96 min / PB / 4X3 (1.37:1)

Estreia na SUÉCIA a 16/2/1957
Estreia em PORTUGAL a 23/10/1963





Foi com 18 anos que o cinema de Ingmar Bergman começou a fazer parte da minha vida. O filme, já datado de quinze anos, foi "O Sétimo Sêlo". Nomeado para a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1957, viria a ganhar o Prémio Especial do Júri em parceria com o filme "Kanal", de Andrzej Wajda. Era o segundo filme de Bergman a ser conhecido para além das fronteiras do seu país natal, a Suécia. O primeiro tinha sido o "Sorrisos duma Noite de Verão" no ano anterior, que inaugurou também o cinema de Bergman em solo português: estreou-se no cinema Império, em Lisboa, no dia 17 de Fevereiro de 1960. Mas voltando ao "Sétimo Sêlo": vi-o em Lourenço Marques, no Estúdio 222 (anexo ao cinema Dicca), a 18 de Junho de 1971, uma sexta-feira à noite. O impacto que o filme teve nessa altura nos neurónios da minha geração, foi avassalador! Os jovens cinéfilos que grande parte de nós nos considerávamos, ávidos de coisas diferentes do habitual, sentiram de repente que estavam diante de algo muito especial e transcendental. Afinal o cinema não era só entretenimento, as grandes questões podiam ser também equacionadas face ao que nos era mostrado no grande écran: Deus e o Diabo, a Morte ou o Sentido da Vida. Foi um filme que, no meu caso pessoal, serviu de rastilho para começar a ver outros tipos de filmes e, sobretudo, a começar a ler tudo o que me aparecia pela frente sobre o cinema e o modo como os filmes eram feitos. Nunca mais parei...

Antonius Block: «Who are you?»
Death: «I am Death»
Antonius Block: «Have you come for me?»
Death: «I have long walked by your side»
Antonius Block: «I know»
Death: «Are you prepared?»
Antonius Block: «My body is frightened, but I am not»

“Det Sjunde Inseglet” (o título original em sueco) é, ainda hoje, um dos filmes mais conhecidos de Ingmar Bergman. Aclamado como uma obra-prima cinematográfica, o filme é uma alegoria magistral do homem à procura do significado da vida. Um cavaleiro, Antonius Block (Max Von Sydow), retorna das Cruzadas para casa e encontra o seu mundo destruído pela peste negra. A Morte aparece para levá-lo, mas Block recusa-se a morrer sem ter entendido o sentido da vida. Propõe então um jogo de xadrez, numa derradeira tentativa de enganar o grande ceifador. Apercebendo-se de que está em desvantagem Block tenta enganar a Morte virando o tabuleiro. Mas a Morte reconstitui o jogo, e o cavaleiro é obrigado a continuar a jogar. 




Ao longo dos anos os críticos têm procurado respostas de todo o tipo, tentando explicar a profusão de alusões e alegorias que o filme encerra. O próprio Bergman referiu que o filme o ajudou a ultrapassar a angústia perante a morte, falando dele como uma superação: «Tinha medo daquele enorme vazio, mas a minha opinião pessoal é que quando morremos, morremos, e passamos de um estado de qualquer coisa para o estado do nada absoluto; e não acredito nem por um segundo que haja alguma coisa acima ou para além, ou como se queira dizer; e isso enche-me de segurança».


Obcecado pela representação da Morte nos frescos da Idade Média, Bergman insere aqui esse tema tantas vezes tratado nos seus filmes, inscrevendo-o num contexto religioso, que está na própria origem da sua obsessão. Mas a questão é posta por um homem moderno, retomando assim a atitude dos artistas e pensadores da Renascença, isto é, de uma época em que o espírito começou a derrubar as barreiras dogmáticas e místicas na procura do conhecimento. Essa procura do conhecimento levou o cavaleiro Block até à Terra Santa como era natural que acontecesse com um espírito inquieto daquela época. Voltou sem ter encontrado a resposta desejada. E a partida de xadrez é a última tentativa feita por Block para tentar descobrir os segredos da Vida e da Morte.




"O Sétimo Sêlo", meditação sobre a morte, é, paradoxalmente, a vitória da vida sancionada pelo amor. E o amor torna-se, assim, uma resposta a todas as interrogações. Os puros, os inocentes, são aqueles que amam. Basta tomarmos consciência deste facto para que essa Vida, ainda que absurda, visto conduzir ao nada, possa ser vivida plenamente. Bergman mostra-nos como o homem moderno se priva a si próprio da felicidade, teimando em procurar o irracional, e como também ele se torna masoquista por receio da morte e do que virá após ela. À humanidade do século XX, minada pela angústia de uma guerra atómica, tal como a humanidade da Idade Média o era pela peste apocalíptica, Bergman dá uma lição de vida, sem no entanto afirmar ou negar seja o que for. Como escreveu Eric Rohmer, «"O Sétimo Sêlo" é antes de tudo um filme onde o que vale não é tanto a originalidade da filosofia de Bergman... como a maneira precisa como ele conseguiu exprimir na tela todos os seus cambiantes.»




É particularmente significativo que Bergman tenha situado “O Sétimo Sêlo” num mundo tão marcado pela presença (“opressiva”, de várias maneiras) da religião, como era o mundo medieval. Voltando a citar o realizador, «a ideia de um Deus cristão tem algo de destrutivo e terrivelmente perigoso. Ele faz emergir um sentimento de risco iminente, e por consequência traz à luz forças obscuras e destrutivas». Enquanto vai descobrindo os aspectos mais hediondos do fervor religioso, Block toma quatro pessoas sob a sua proteção: o ateu Squire Jons, um casal de jovens saltimbancos, Mia e Jof, mais o seu bebé. Alguns críticos associam os nomes e a presença quase imune à morte do casal à Sagrada Família. No fim, como seria inevitável, Antonius Block perde a partida de xadrez. A Morte toma-o, a ele e aos seus, para os lançar numa dança macabra à qual o casal de actores consegue escapar. Através da representação do actor Bengt Ekerot, Bergman criou a mais célebre “encarnação” da morte de toda a história do Cinema. “O Sétimo Sêlo” é mesmo indissociável dessa figuração, que se fixou no imaginário colectivo do século XX. Este é o “filme da morte”, este é o “filme do jogo de xadrez”!

domingo, dezembro 12, 2021

LE NOTTI BIANCHE (1957)

 AS NOITES BRANCAS

Um filme de LUCHINO VISCONTI



Com Marcello Mastroianni, Maria Schell, Jean Marais, Marcella Rovena, Maria Zanoli, etc.


ITÁLIA-FRANÇA/102 m / P&B / 16X9 (1.66:1)



Estreia em ITÁLIA, no Festival de Veneza: 6/9/1957

Estreia em PORTUGAL: 13/5/1959



Mario: «God bless you for the moment of happiness you gave me. 
Even a moment's worth can last a lifetime»



Falecido com 69 anos (nasceu em Milão a 2/11/1906, morreu em Roma a 17/3/1976), Luchino Visconti filmou apenas 14 longas-metragens, desde "Obsessão" (1943), até "O Intruso" (1976). A grande maioria são obras fundamentais do Cinema. Mas existe uma espécie de tradição quando se fala da sua filmografia, em separar os "grandes filmes" dos "filmes menores". Entre estes, "Noites Brancas", baseado num conto de Fiódor Dostoiévski, encontra-se quase sempre presente. Verdade seja dita que há alguma razão neste juízo de valor: basta lembrarmo-nos de monumentos como "Sentimento", "Rocco e Seus Irmãos", "O Leopardo", "Os Malditos" ou "Morte em Veneza", quer na dimensão bruta do empreendimento quer pela maior repercussão crítica que alcançaram. Mas, como diria Einstein, tudo é relativo. E as "Noites Brancas" ainda hoje é um filme belissimo, um enorme prazer para os olhos dos espectadores.

Sem dúvida, pode censurar-se a "Noites Brancas" uma certa incompreensão de Dostoiévski, do seu clima especial - mas a fidelidade ao original nunca é critério. O próprio Visconti sabia a dificuldade na adaptação de uma obra de Dostoiévski, como referiu numa entrevista da altura em que realizou o filme: «Procurámos muito, entre escritores de todo o mundo. Foi Emilio Cecchi a sugerir-nos as "Noites Brancas". Por mim, devo dizer, agarrei-me a esta pequena história (muito grande em Dostoiévski, pequena no meu filme), agarrei-me a ela precisamente por oferecer essa possibilidade de evasão da realidade, pelo contraste entre o despertar, em que todas as coisas são desagradáveis, e essas quatro horas da noite passadas com uma rapariga que se torna uma espécie de sonho, algo de irreal, de quase impossível. Foi isso, foi esse jogo que me atraiu.»


"As noites de San Petersburgo" era realmente um pequeno mas belo conto de Dostoiévski, que já tinha servido de base a uma interessante adaptação soviética em 1934 (mais tarde haveriam de ser feitas muitas outras versões, quer para cinema quer para televisão. Aliás, toda a obra do genial escritor russo foi sempre um grande manancial de adaptações). Visconti extrai dele um filme todo em matizes românticas e nostálgicas, mantendo incólume toda a solidão dos personagens. Uma elegia amaneirada, um romantismo de neve, neblina e encontros ao luar nas pontes dum canal tomaram uma posição dominante. Foi esse afastar do "neo-realismo" (de que Visconti nem era sequer um dos expoentes máximo, exceptuando-se talvez o filme "La Terra Treme") que os seus detractores mais expressaram as suas críticas. Mas no contexto cultural italiano de então, sabia-se muito bem que Visconti de modo algum estava amarrado a uma concepção estreita do realismo: as suas encenações teatrais tinham-no demonstrado.


Hoje, longe das querelas, podemos ver as "Noites Brancas" como um desses contos fantásticos e românticos que nunca envelhecem. E os actores que incarnam as personagens principais, Mastroianni (nunca o vimos tão vulnerável num filme) e a bela Maria Schell, conseguiram ser um dos pares mais sentimentais do cinema, ao exporem ao público o que ia na alma dos personagens. A título de curiosidade refira-se que a actriz austríaca aprendeu a língua italiana para poder entrar no filme sem ser dobrada por outra, como então era costume nas co-produções. Rodado em 1957, ano do apogeu do rock 'n' roll, o filme não se escusa em mostrar uma longa sequência passada num bar frequentado por jovens, que dançam freneticamente os novos ritmos da moda. Espectacular!


Para terminar, não resisto a transcrever um excerpto da introdução de Margarida Rebelo Pinto à edição de 2013 do livro em Portugal, que practicamente define o filme: «O romantismo exacerbado é ridículo apenas para aqueles que nunca viveram a vertigem de um amor total e ao mesmo tempo impossível, no qual o arrebatamento nos eleva a um estado de graça que nunca mais esquecemos. A busca do amor pelo amor pode sobrepor-se por vezes à própria existência, por nos levar mais longe e mais alto do que alguma vez imaginámos chegar. Tal como as noites que imitam o dia, o sonho também imita a vida e a ficção não é mais do que um pálido reflexo da realidade. É verdade que todos precisamos de sonhar, mas também todos precisamos de acordar. E embora nos pareça impossível acordar sem dor nem perda, afinal nem sempre é mau, porque a vida é sempre outra coisa, diferente do que imaginámos. Os sonhos servem para isso mesmo: perdermo-nos através deles para nos voltarmos a encontrar.»

sábado, dezembro 04, 2021

AI NO KORIDA (IN THE REALM OF THE SENSES) (1976)

O IMPÉRIO DOS SENTIDOS
Um filme de NAGISA OSHIMA



Com Tatsuya Fuji e Eiko Matsuda

JAPÃO - FRANÇA / 109 min / 
COR / 4X3 (1.50:1)

Estreia em CANNES a 15/5/1976
Estreia em PORTUGAL: Outubro 1976




Kichizo: «You want to make love all the time, huh?»
Sada: «You don't think it's wrong, do you?»
Kichizo: «I think it's wonderful. You're beautiful»
Sada: «I was afraid of not being like others. I was so worried about it, 
I even went to see a doctor. 
He said I was sensitive where sex was concerned»
Kichizo: «Sensitive? I hope it's incurable. Because I adore your oversensitivity»

A década de 70 assistiu, nos países mais desenvolvidos, a uma libertação dos costumes, que originou uma forte atenuação da censura. O cinema erótico pôde então expandir-se desde a forma mais soft até ao chamado "hard-core", ou seja, pornográfico. Nagisa Oshima nada tem de pornógrafo: os seus filmes atestam pelo contrário uma personalidade exigente, inimiga, é certo, de qualquer forma de conformismo, mas que não transige nem os seus ideais estéticos, nem políticos. Em "O Império dos Sentidos", Oshima aborda o erotismo numa perspectiva quase mística, à maneira de Georges Bataille ou de Sade (a quem o nome da heroína - SADA - faz curiosamente referência). Causará surpresa saber que o argumento (da autoria do próprio Oshima) segue de muito perto um episódio autêntico, que abalou os anais judiciários nipónicos antes da guerra (e fez da jovem castradora uma pioneira dos movimentos feministas!). É este caso que Oshima recupera da história e da memória popular para o transportar para o cinema, fazendo dele uma das mais belas histórias de "amor louco".


O filme é uma co-produção França-Japão, tendo sido exibido na chamada Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes de Maio de 1976. Não ganhou qualquer prémio, mas começou aí a sua polémica em torno do que era ou não considerado "pornográfico". Depois da família, do Estado e de um certo número de problemas do Japão daqueles tempos, Oshima decidiu atacar um dos últimos tabus da sociedade japonesa, o sexo: «Não é a primeira vez que abordo o problema do sexo, mas foi neste filme que tive ocasião de ir até ao fim, e como sou mais velho, parece-me também que conheço um pouco melhor o mundo do sexo! Se o filme fosse uma produção inteiramente japonesa não teria sem dúvida podido projectá-la como o fiz», afirmou Oshima numa entrevista da época. Em Portugal o filme estreou-se pouco depois, em Outubro de 1976. Ultrapassado que foi o choque inicial da palavra "castração", "O Império dos Sentidos" fez acorrer muita gente às salas de Lisboa onde estava a ser exibido (Estúdio, Quarteto e Apolo 70), muito provavelmente pelas piores razões, onde certamente predominava um certo voyeurismo por tudo quanto era proibido no nosso país apenas dois anos antes. Mas a crítica teve na altura um papel muito importante ao desmistificar o conteúdo do filme, para além de lhe atribuirem em geral o maior nº de estrelas possíveis. Recordemos alguns excertos dos comentários surgidos na imprensa e em revistas da especialidade:


«A castração, essa posse definitiva por parte da mulher, corresponde no filme a um absoluto, a um momento de libertação. Daí, o carácter subversivo da obra, numa sociedade de sujeição milenária da mulher ao homem. "O Império dos Sentidos" é um filme decididamente anti-machista, nele é a mulher que desempenha o papel mais activo e toma a iniciativa do amor.» ... «O prazer é uma coisa séria. Tão séria como a morte. Se a carne existe, e é susceptível de fornecer prazer, nada impede que se procure atingir um limite que só pode ser a morte.» (André de Oliveira e Sousa)

«Muitas das cenas consideradas "chocantes" mostram relações sexuais directas, evidentes em pormenor, com uma franqueza que não assusta embora possa impressionar a quem está habituado a uma pornografia barata e a um cinema erótico de pacotilha, Oshima não recua diante de nada mas, subjacente a essa visão crua da intimidade sexual, insinua-se a violência progressiva que explodirá na castração final, a violência simbólica que vem dizer-nos isto muito simplesmente: viver dos sentidos até à volúpia total leva à morte, como a fêmea do insecto que devora o macho depois do acto. Lágrimas e sangue enchem pouco a pouco o leito dos amantes, retirando-lhe progressivamente aquilo que a sua razão muito bem sabe constituir o cerne da verdadeira condição humana: o amor.» (Luís de Pina)



«É sempre a morte que reina. Um velho mendigo, uma velha geisha "consumida" em violência edipiana; uma faca; um nastro por fim, instrumento de orgasmo total e último. É então que, gasto o percurso numa viagem em busca do absoluto, parece nada mais restar do que a satisfação última de um amor sublime: a morte num suicídio-entrega-a-dois. Justamente o que os dois amantes recusam. A mulher sobreviverá ao acto final, após castração e apropriação dos órgãos genitais do seu amante.» ... «"O Império dos Sentidos" não é um filme de demissão como pode parecer. É antes um filme-acto-de-amor em busca dos valores absolutos que se esgotam no homem. É uma viagem ao âmago dos corpos, percorrendo com prazer o prazer do sexo, num sublime exercício de amar. Feito em grandes planos, quase todos fixos e longos, pintado a uma côr onde o vermelho de pungente erotismo abunda, evita o voyeur vulgar, porque o provoca, porque o persegue, porque o cansa, porque o destrói. Demonstração definitiva de como o olhar da câmara (não sendo neutro) insinua muito mais do que mostra, jogando com a sensualidade do décor envolvente captando o prazer em acção, evitando a pornografia em que outro artesão de segunda inevitavelmente caíria. Aposta última na sensibilidade de cada um. No delírio de um orgasmo que se busca no infinito. Num hino memorável à mulher e à sua força libertadora.» (Mário Damas Nunes)



«De uma sumptuosidade majestática no rigor dos enquadramentos, de um colorido sensual que rasga o écran, "O Império dos Sentidos" demonstra ainda a inteligência de Oshima na escolha dos enquadramentos, na utilização do guarda-roupa e dos cenários. Não só para definir espaços e figuras, como na própria progressão dramática. Quando Sada e Kichi um ao outro se assimilam, ambos trocam de quimónos. Sada leva consigo o quimóno de Kichi, que funcionará como fétiche durante uma viagem de comboio. Outras vezes é ainda o quimóno que revela as personagens, quando o branco do exterior é trocado pelo vermelho do interior dos forros. Cores e formas, subjugando o espectador, arrastam-no então para uma viagem de amor e loucura, cujo trajecto se encontra, desde início, ponteado por sinais irreversíveis, cuja meta se descobre fatal. De amor se morre...» (Lauro António)


«"O Império dos Sentidos" é anti-real, como será também anti-erótico, anti-pornográfico, anti-todas as classificações que lhe têm querido atribuir. Diríamos mesmo que se trata de um filme mítico, como se Oshima procurasse contar-nos uma fábula. Que não exclui a habitual moralidade: quem escolhe viver apenas pelos sentidos terá forçosamente de aceitar a morte como regra do jogo. Num mundo que caminha para a total materialização ("solidificação") só resta ir até ao limite dos sentidos, como em "La Grande Bouffe".» ... «Oshima revela-se, portanto, como um fabuloso recriador de mitos (e nisso é um bom japonês), um artista moderno do seu país, onde a velha arte da gravura foi substituída pela sofisticada arte do cinema.» (António Carlos Carvalho)



ALGUMAS CURIOSIDADES:

- Após a estreia na Alemanha, o filme foi confiscado e acusado de pornografia. Contudo, 18 meses mais tarde um tribunal federal permitiu a sua exibição sem quaisquer cortes.

- A versão original, de 109 minutos, foi encurtada pelo produtor Anatole Dauman (com a anuência de Oshima) para 102 minutos. Foi esta a versão que foi distribuida na maioria dos países onde o filme não foi proibido. Actualmente, na edição francesa em DVD, podem ver-se as duas versões, enquanto que na edição da Criterion (americana) os minutos cortados são apresentados como "extra". Ler mais aqui.

- A cena onde Sada puxa o pénis de uma criança como punição a um mau comportamento foi opticamente re-enquadrada em Inglaterra, de modo a não se ver os órgãos genitais. Este procedimento manteve-se na edição em DVD do filme (Região 2). Nos EUA a mesma cena (cerca de 56 segundos) foi totalmente cortada.

- O grande sucesso do filme (crítica e público) levou Oshima a dar-lhe uma continuação livre, em que o fantástico tomou o lugar do erotismo: "O Império da Paixão" (1978).





sexta-feira, dezembro 03, 2021

SLEEPLESS IN SEATTLE (1993)

SINTONIA DE AMOR
Um filme de NORA EPHRON

Com Tom Hanks, Meg Ryan, Bill Pullman, Ross Malinger, Rita Wilson, Rob Reiner, Rosie O’Donnell, Victor Garber, Barbara Garrick, etc.

EUA / 105 min / COR / 
16X9 (1.85:1)

Estreia nos EUA: 25/6/1993
Estreia em PORTUGAL: Lisboa (cinema São Jorge), 19/11/1993


Tu vieste

E acordas todas as horas
Preenches todos os minutos
Acendes todas as fogueiras
Escreves todas as palavras
(Joaquim Pessoa)

Estamos a 3 de Dezembro de 1993, uma sexta-feira. Conforme o combinado, vou ter contigo ao Hotel Jerónimos, ali para os lados de Belém, frente ao alçado nascente do mosteiro homónimo, pelas 19:00 horas. Sou pontual, como sempre, mas tenho de ficar à tua espera no hall da recepção. Nos altifalantes soa uma canção que conheço muito bem: é "I Will Always Love You", cantada pela Whitney Houston. Chegas finalmente e ficamos um pouco à conversa. Não temos muita fome mas temos de ir comer qualquer coisa. Saímos, atravessamos a rua dos eléctricos e vamos jantar a um restaurante ali perto chamado "Caseiro". Quando acabamos, reparamos nas horas, e damo-nos conta de que ainda podemos ir ao cinema. Chamamos um táxi, que nos conduz rapidamente ao cinema São Jorge, na Av. da Liberdade. O filme em cartaz é o "Sleepless in Seattle", que eu já tinha visto (estreara-se a 19 de Novembro), mas apetecia-me imenso vê-lo outra vez, e desta vez contigo. 


Na cumplicidade do escuro da sala trocamos de mãos. Sabe bem estar ali de novo, bem junto a ti, pois a última vez que tal tinha acontecido fora já há 22 anos. Nessa altura fomos a uma matiné de domingo (era o 26 de Setembro de 1971), eu tinha 18 e tu 16 anos, e o cinema era outro: o antigo Vox, ali para os lados da Av. de Roma. Dessa sessão ainda conservo os bilhetes (ficámos na fila G, nºs 11 e 13) e o filme era o "Love Story". Acabada a sessão apanhamos novo táxi para nos levar de regresso ao Hotel. Subimos ao teu quarto e ficamos ainda um bocado a tagarelar. Estás cansada e com sono, sem disposição para prolongar as emoções do dia. Depeço-me de ti e vou para casa. No futuro ainda faríamos muitas coisas juntos, mas em relação ao cinema, nunca mais vimos um filme lado a lado. "Sleepless in Seattle" foi a nossa última sessão de cinema.


Dr Marcia Fieldstone: «What are you going to do?»

Sam Baldwin: «Well, I’m gonna get out of bed every morning… breathe in and out all day long. Then, after a while, I won’t have to remind myself to get out of bed every morning and breathe in and out… and, then after a while, I won’t have to think about how I had it great and perfect for a while.»

Dr. Marcia Fieldstone: «Tell me what was so special about your wife?»

Sam Baldwin: «Well, how long is your program? Well, it was a million tiny things that, when you added them all up, they meant we were supposed to be together… and I knew it. I knew it the very first time I touched her. It was like coming home… only to no home I’d ever known… I was just taking her hand to help her out of a car and I knew. It was like… magic!»

Foi uma noite muito especial, aquela de sexta-feira, a que “Sleepless In Seattle” adicionou um pequeno toque de magia, como se por umas horas tivéssemos regredido no tempo. Sim, porque é disso que o filme trata, dos "acordes perfeitos" que por vezes se estabelecem entre duas pessoas, tornando esses momentos inesquecíveis. 



O filme inicia-se por um funeral: o de Maggie, a jovem esposa de Sam Baldwin (Tom Hanks), que deixa este naturalmente abatido e revoltado com a vida. Sam é arquitecto, vive em Chicago, e tem um filho de 8 anos, Jonah (Ross Malinger), que dali em diante passará a ser a sua única companhia. Mudam-se para Seattle, uma cidade portuária no noroeste dos Estados Unidos, junto à fronteira com o Canadá. Ano e meio depois, Sam continua com dificuldades em dormir, apesar de ter voltado a trabalhar. Na véspera de Natal, Jonah liga para um desses programas da rádio que têm o hábito de se meterem na vida das pessoas, resgatando histórias pessoais para deleite dos seus ouvintes. Como presente de Natal, pede uma nova mulher para o pai, e consegue que este, muito contrariado, aceda a falar com a responsável do programa, uma tal Drª Marcia Fieldstone (ver diálogo acima transcrito). Entre as muitas mulheres que ouvem a história de Sam e por isso anseiam conhecê-lo, encontra-se Annie Reed (Meg Ryan), uma jornalista de Baltimore, que está prestes a casar-se com Walter (Bill Pullman), um homem adorável (apesar das alergias), que tem tudo para a fazer feliz. Mas a história ouvida na rádio torna-se uma obsessão para ela, a ponto de viajar para Seattle (Baltimore, lembre-se, fica na costa oposta do continente americano) no intuito de conhecer pessoalmente quem inexplicavelmente lhe tomou conta de todos os pensamentos. Alguém que nunca viu na vida, que nem sabia que existia, mas que, quem sabe, seja a "tal alma gémea" .

Todo este preâmbulo tem como objectivo presentear o espectador com a pungente sequência final, passada em Nova Iorque, nomeadamente no topo do Empire State Building. Estou até convencido que a filmagem desse epílogo, um dos mais emocionantes da história do cinema (assim, de repente, lembro-me de apenas mais dois com igual índice de intensidade: o do "Cinema Paradiso" e o do "City Lights"), foi a razão primeira pela qual "Sleepless In Seattle" foi escrito. Tendo como reminiscências o clássico de Cary Grant e Deborah Kerr (“An Affair To Remember”, 1957), filme várias vezes citado (e visualizado), Nora Ephron (1941-2012), responsável também pelo argumento (melhor do que directora, ela foi uma argumentista notável), reinventa o filme de Leo McCarey, adaptando-o para a modernidade. Sem ponta de ironia, e utilizando a ingenuidade e a sinceridade dos melodramas da década de 50, Nora Ephron mostra-nos que o amor, afinal, não muda muito ao longo dos tempos, sendo reconhecido, quase sempre, por aquele pequeno frisson entre duas pessoas, que por causa disso se tornam especiais: «Existem amores, vagos e fugidios, que duram apenas três dias. Mas há outros, raros e preciosos, que o tempo e a saudade alimentam e que duram toda a vida». A tal "magia" de que o filme fala.


ALGUMAS CURIOSIDADES:

- A hilariante cena entre Tom Hanks e Victor Garber, evocando cenas do filme "The Dirty Dozen", foi completamente improvisada.

- O papel de Annie foi recusado por actrizes muito conhecidas, nomeadamente Julia Roberts, Kim Basinger, Michelle Pfeiffer, Jennifer Jason Leigh e Jodie Foster. Nicole Kidman e Demi Moore foram também equacionadas para o papel.

- Foi o segundo de três filme em que Meg Ryan e Tom Hanks trabalharam juntos. O primeiro foi "Joe Versus The Volcano" (1990) e o terceiro, "You've Got Mail" (1998).

- Nora Ephron escreveu o argumento de "When Harry Met Sally" (1989), também com Meg Ryan, filme dirigido por Rob Reiner, o qual participa como actor neste "Sleepless In Seattle".

- Em Junho de 2008, o American Film Institute colocou "Sleepless In Seattle" na lista das 10 melhores comédias românticas de sempre. Ver lista completa aqui.

- O filme teve duas nomeações para os Óscars de Hollywood, nas categorias de argumento original (Nora Ephron, David S. Ward e Jeff Arch) e melhor canção: "A wink and a smile" (música de Marc Shaiman e letra de Ramsey McLean), interpretada por Harry Connick Jr. Mais três nomeações para os Globos de Ouro: melhor comédia ou musical; actriz principal (Meg Ryan) e actor principal (Tom Hanks). Ver aqui outros prémios.

A BANDA-SONORA:
PORTFOLIO:

quinta-feira, dezembro 02, 2021

SPLENDOR IN THE GRASS (1961)

ESPLENDOR NA RELVA
Um Filme de ELIA KAZAN

Com Natalie Wood, Warren Beatty, Pat Hingle, Audrey Christie, Barbara Loden, Zohra Lampert, Fred Stewart, Joanna Roos, John McGovern, Sandy Dennis, Gary Lockwood, Jan Norris, etc.

EUA / 124 min / COR / 
16X9 (1.85:1)

Estreia nos EUA a 10/10/1961
Estreia em PORTUGAL a 9/2/1962
(Lisboa, cinema Éden)

«What though the radiance which was once so bright
be now for ever taken from my sight.
Though nothing can bring back the hour
of splendor in the grass, of glory in the flower,
we will grieve not, rathher find
strenght in what remains behind»
(William Wordsworth)

Para além de ter sido uma mulher lindissima, Natalie Wood (Natasha  Nikolaevna Zakharenko), filha de emigrantes russos, foi também uma menina-prodígio de Hollywood, que aos 5 anos de idade já entrava em filmes e séries televisivas. Aos 17 anos contracenou com James Dean em "Rebel Without a Cause", e cinco anos depois, em 1961, interpretou as duas personagens que lhe valeram o acesso directo à eternidade cinéfila: a Maria de "West Side Story" e a Wilma Dean Loomis deste "Esplendor na Relva". Deixemos o musical para mais tarde e vamo-nos focar agora neste último.

Ruy Belo (1933-1978), poeta português, era cinco anos mais velho que Natalie. Como muitos outros, deve ter ficado apaixonado pela actuação da actriz quando o filme se estreou no cinema Éden, em Lisboa, no dia 9 de Fevereiro de 1962. E escreveu este belissimo poema, dedicado a Dean Loomis:

Eu sei que Deanie Loomis não existe
mas entre as mais essa mulher caminha
e a sua evolução segue uma linha
que à imaginação pura resiste.

A vida passa e em passar consiste
e embora eu não tenha a que tinha
ao começar há pouco esta minha
evocação de Deanie quem desiste
na flor que dentro em breve há-de murchar?
(e aquele que no auge a não olhar
que saiba que passou e que jamais
lhe será dado ver o que ela era)
Mas em Deanie prossegue a primavera
e vejo que caminha entre as mais.

Apesar de toda a poesia a ele ligado, "Esplendor na Relva" não é um filme para se contar, não é sequer um filme para se ler. "Esplendor na Relva" é, isso sim, um filme para se ver, para se sentir, é cinema no seu estado puro. E essa pureza evidencia-se em cada olhar, em cada gesto, muito por culpa de Elia Kazan que atinge aqui a arte suprema de bem dirigir, evitando os habituais clichés do melodrama; e a maravilhosa Natalie Wood, que é a luz que emana de todo o filme e que me fez perder de amores (a mim e a muito mais gente) com a sua Deanie Loomis, uma das criações mais espantosas de toda a história do cinema. Por isso, abençoados todos quantos não se limitaram a olhar para o écran e conseguiram ver e sentir toda a genialidade do esplendor de que fala o filme.


Produzido numa época de grandes mudanças (quer da sociedade – a norte-americana em particular – quer do próprio cinema), “Splendor in the Grass” é um olhar desapiedado sobre a juventude do final dos anos 20 do século passado: as suas aspirações, ansiedades, e desejos; e a repressão (sexual e não só) exercida sobre eles pela sociedade da época. Uma repressão que está em toda a parte, que se vai insinuando através de vários comportamentos, desde o mais grosseiro (a pressão asfixiante do pai de Bud) até ao mais sofisticado (a complacência do pai de Deanie, parcialmente redimida naquela pungente cena final, em que ele lhe indica o paradeiro de Bud e recebe em troca uma carícia e um beijo na testa); e que estabelece regras muito próprias, consoante o sexo das personagens sobre as quais se abate. Era a altura em que as jovens eram catalogadas em duas únicas categorias: as "decentes", com quem se podia casar; e as "vulgares", com quem era apenas permitido passar um bom bocado. (Wilma Dean: «Is it so terrible to have those feelings about a boy?» Mrs. Loomis: «No nice girl does.»



Deanie percorre um caminho demasiado estreito entre essas duas categorias: começa por se furtar às intenções mais atrevidas de Bud (Warren Beatty) e mais tarde, quando os escrúpulos desaparecem de vez, já é tarde demais. Talvez por isso seja um filme que, tematicamente, diga muito pouco às novas gerações de agora, as quais, consumada que foi a revolução sexual iniciada nos anos 60 do século passado, vivem abertamente uma liberdade que nada tem a ver com os tempos que emolduram este filme. Mas os amantes do cinema têm razões mais do que suficientes para poderem rejubilar com a visão de “Splendor in the Grass”, uma das obras mais emotivas de sempre (e da carreira de Kazan em particular), que continua actualmente tão bela e poética, profunda e poderosa, como o foi há 60 anos atrás.



O escritor e argumentista William Inge (o autor de “Picnic” e “Bus Stop”), baseou-se num poema extraído do livro “Ode: Intimations of Immortality From Recollections of Early Childwood”, de  Wiliam Wordsworth (1770 – 1850) - um poeta inglês que lançou juntamente com Samuel Coleridge, a chamada Era Romântica na literatura inglesa – para escrever o romance, primeiro, e mais tarde o argumento em que “Splendor in the Grass” se baseia. Segundo o próprio Inge, outra inspiração para a sua história, teriam sido algumas pessoas que ele próprio conheceu durante a adolescência na cidade do Kansas. Falou com Elia Kazan, que na altura trabalhava com ele na sua peça “The Dark at the Top of the Stairs” e o realizador mostrou-se desde logo interessado em passar a história para o grande ecrã, aproveitando o clima de mudança que se vivia na América para dar um maior ênfase à história de Deanie e Bud.

Quando se iniciou o casting do filme, Inge lembrou-se de um jovem actor de diversas séries televisivas, que seria perfeito para interpretar o personagem principal: Warren Beatty. Os dois conheceram-se na fracassada peça “A Loss of Roses”, mas a relação perdurou e tornaram-se amigos. De início, a sugestão de Inge não foi bem recebida por Kazan, que não gostou da arrogância de Beatty, mas posteriormente viu nele presença e talento suficientes para lhe entregar o papel principal. “Splendor in the Grass” marcou, assim, a estreia de Beatty no grande ecrã (tinha 24 anos) e fez dele uma das grandes estrelas de Hollywood. A escolha de Natalie Wood foi uma imposição da Warner que tinha a actriz sob contrato e cujos últimos filmes não tinham tido o êxito esperado. Embora tivesse apenas 22 anos quando participou na rodagem de “Splendor in the Grass”, Natalie era já uma veterana de Hollywood, tendo começado a sua carreira com apenas 5 anos e conseguido fazer a transição para papéis mais adultos com sucesso.

Mas a actriz estava também interessada em participar no filme, a ponto de ter concordado filmar uma cena de nu, a primeira feita por uma estrela em Hollywood. No entanto Jack Warner (o patrão do estúdio) acedeu ao pedido da Catholic Legion of Decency e a cena foi excluída do filme. Refira-se que a sequência em questão surgia logo após Deanie Loomis discutir histericamente com a mãe enquanto toma banho. A câmara acompanhava o trajecto de Deanie a correr nua pelo corredor, entre a casa-de-banho e o seu quarto. Dada a exclusão da cena, o que se vê no filme é uma transição brusca entre a discussão na banheira e Loomis a soluçar, já deitada na cama, transição essa muito bem resolvida por Kazan ao introduzir entre as duas cenas um curto diálogo dos pais de Deanie.

Os dois actores entregaram-se tão intensamente aos seus personagens que a relação pessoal extravasou a vertente profissional e os dois viveram um tórrido romance durante as filmagens. Embora Natalie Wood fosse casada com o também actor Robert Wagner e Warren Beaty vivesse com outra actriz, a relação foi encorajada pelo próprio Kazan que viu no romance uma boa oportunidade para obter a tão desejada química entre os dois actores. Quando "Slpendor in the Grass" estreou, em Outubro de 1961, Natalie e Warren tinham abandonado os seus anteriores relacionamentos e viviam já juntos. “Splendor in the Grass”  foi nomeado para dois Óscares (melhor actriz e melhor argumento), com o trabalho de Inge a ser o único a ter direito à famosa estatueta. Muito injustamente, Natalie Wood perdeu para Sophia Loren no filme "La Ciociara", de Vittorio De Sica.




"Splendor in the Grass" está repleto de cenas inesquecíveis: a passagem de ano novo com a tentativa de violação de Ginny (Barbara Loden), a irmã de Bud Stamper; a tentativa de suicídio de Dean Loomis nas cataratas, a já referida cena da banheira entre uma mãe inquisidora (Audrey Christie) e uma Dean histérica, à beira da exaustão psicológica («No, mom! I'm not spoiled! I'm not spoiled mom! I'm just as fresh and virginal like the day I was born, mom!») ou o reencontro final entre os dois antigos apaixonados («Are you happy, Bud?» «Well... I think I am, but I don't think much about it these days»): um último olhar de despedida de Dean já dentro do carro com as palavras de Wordsworth em voz-off: 
«A luz que brilhava tão intensamente
foi agora arrancada dos meus olhos.
E embora nada possa devolver os momentos
do esplendor na relva e da glória na flor,
não sofreremos, melhor
encontraremos força no que ficou para trás»

Mas a cena-chave, por ser a súmula de todo o filme, é a aula de literatura, na qual Dean Loomis é forçada pela professora a ler e a interpretar o poema de Wordsworth de pé, perante toda a classe. Numa folha da Cinemateca, João Bénard da Costa descreveu tal cena com a mestria que o caracterizava. Aqui fica a transcrição:



«Sirvo-me do exemplo mais conhecido, também ele poético, e que dá o título ao filme. No liceu de Natalie Wood (onde ela entrava sempre com três livros apertados ao peito, um deles de capa azul), a aula de literatura, nesse dia, não era sobre “Os Cavaleiros da Távola Redonda” mas sobre Wordsworth e a “Ode of Intimation to Immortality”. Deanie / Natalie chegava de vestido grenat muito escuro, gola de rendas. Todas as colegas sabiam - e ela também, embora ninguém lho tivesse dito - que Bud / Warren, incapaz de separar por mais tempo o desejo e o amor, tinha enganado, na véspera à noite, a fome do corpo dela, no corpo de Juanita (Jan Norris), única da turma que não se ficava pelos beijos. Nada seria mais, para eles, como antes fora. Como também se diz no filme (noutro contexto), Deanie trazia, debaixo do vestido, o primeiro golpe na sua própria carne.

E é quando todo o mundo vacila à roda dela que a professora a interpela para lhe perguntar o que é que o poeta quis dizer com os versos famosos: «No, nothing can bring back the hour / the splendor in the grass, the glory in the flower.» Para a estúpida e pedagógica pergunta não há resposta ou - a esse nível - só há a que Natalie Wood comoventemente tenta articular. Mas não é nada disso que o poeta quis dizer. O que conta, o que o poeta quis dizer, é o que Natalie só naquela altura sente e sabe, ou pressente e entrevê. Por isso, o que conta e o que o poeta quis dizer é o espantoso traveling que arranca Deanie ao lugar e a põe diante da professora atónita, depois aquele outro em que sai a correr da aula e nos atira com a porta na cara e, por fim, esse plano em que a vemos sózinha, na profundidade de campo do corredor do liceu, até ir parar à enfermaria. Nesse minuto de cinema, sabemos, para além das palavras que «that radiance that was once so bright / Is now forever taken from my síght.»

ALGUMAS CURIOSIDADES:

- Apesar de Kazan ter preferido rodar o filme no Kansas (onde decorre a história no romance de Inge), razões económicas forçaram-no a filmar unicamente no estado de Nova Iorque. As cataratas são as de High Falls de Catskills e o edifício de Yale é na verdade o City College de New York.

- Jane Fonda (24 anos) e Lee Remick (26 anos), chegaram a fazer testes para o papel de Deanie Loomis, mas foram consideradas demasiado maduras. Também Dennis Hoper chegou a ser equacionado para o papel de Bud Stamper. Pat Hingle, o actor que faz de pai de Bud, era apenas 13 anos mais velho do que Warren Beatty.