Nunca. As coisas nunca são o que
parecem. Basta o exemplo insofismável de um filme, o indecentíssimo "The
Seven Year Itch", que Billy Wilder realizou por cima e por baixo das
curvas de Marilyn Monroe. Ela é a vizinha de um tipo casado que, por obrigações
profissionais, não vai de férias com a família. Sózinho, em Nova Iorque, o
homem começa a fantasiar a superlativa vizinha. Vai com ela ao cinema. E já
voltam. É Agosto, torra-se em Nova Iorque. Mesmo, ou sobretudo, à noite, quando
se caminhava depois do cinema.
Marilyn, ou a personagem que
Wilder lhe deu por ela ser Marilyn, precisa de uma ponta de gelo, da carícia de
uma brisa fresca. "Brisa-me", pede ela à escaldante noite de Agosto.
Passa pela grade de uma saída de ar do Metro e não resiste: dá dois passos na
direcção errada. O sopro que vem lá debaixo levanta-lhe o inocente vestido
branco e vemos o que o cinema nunca mostrara, a alumiada e nua lufada de ar
fresco.
A lufada de ar fresco ganha.
digamos, uma aristotélica densidade ontológica - vida própria, se
simplificarmos - e desenha as pernas, as coxas de Marilyn, até ao que
brasileiramente chamaria calcinha, enfunando-lhe com firme delicadeza o
vestido. Bem sei que o mundo continuou - morreu Kennedy, a União Soviética
implodiu, nasceu a senhora Merkel - mas também sei que a doçura desse sopro, a
livre nudez daquelas pernas, as pregas gregas do vestido em vela, se fixaram,
imutáveis, arquetípicas, fora do tempo e do espaço, com o gracioso
consentimento já não sei se de Deus se de Einstein.
E, todavia, as coisas não são
nunca o que parecem:
1. Não vemos, no filme, a
multidão de pessoas que se juntou na Lexington Avenue para assistir às
filmagens da cena.
2. Não vemos, na multidão, Joe
DiMaggio, o marido de Marilyn. Cada vez que, solto e cândido, o vestido dela se
levantava a fazer adeus à multidão, ele torcia a cara num esgar sofista. Tantas
vezes Wilder repetiu a cena, que DiMaggio se pôs aos gritos com Marilyn. Dois
meses depois ela pedia o divórcio, acusando-o de crueldade mental.
3. Para soprar o vestido, Wilder
montou um gigantesco ventilador por baixo. Houve uma portuguesíssima cena de
sopapos entre o pessoal da produção para se decidir quem ia lá abaixo ligar e
desligar o ventilador, dedo no interruptor, olhos apontados ao paraíso.
4. Sem querer negar a confiança
ontológica de Aristóteles, note-se que a cena é um poderoso argumento a favor
do cepticismo com que Platão apreciava o valor da informação dada pelos
sentidos: o ar que vinha do Metro e ascendia, polegada a polegada, por Marilyn
acima, era ar quente - tudo menos a fresquíssima brisa de que a personagem
precisava e deveras fingia sentir.
As coisas nunca são o que
parecem. Uma lufada de ar fresco pode muito bem incendiar o mundo.
(Manuel S. Fonseca na revista Atual do Expresso, 10 de Agosto de 2013)
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