domingo, julho 31, 2011
THERE'S A GIRL IN MY SOUP (1970)
CAÍU UMA GAROTA NA MINHA SOPA
Um filme de ROY BOULTING
Com Peter Sellers, Goldie Hawn, Tony Britton, Nicky Henson, Diana Dors, Judy Campbell, John Comer
GB / 95 min / COR / 16X9 (1.85:1)
Estreia nos EUA a 15/12/1970
Estreia em MOÇAMBIQUE a 30/7/1972
(LM, Teatro Manuel Rodrigues)
«My God, but you're lovely!»
Um filme de ROY BOULTING
Com Peter Sellers, Goldie Hawn, Tony Britton, Nicky Henson, Diana Dors, Judy Campbell, John Comer
GB / 95 min / COR / 16X9 (1.85:1)
Estreia nos EUA a 15/12/1970
Estreia em MOÇAMBIQUE a 30/7/1972
(LM, Teatro Manuel Rodrigues)
«My God, but you're lovely!»
A “sopa” aqui é o dia-a-dia de um playboy quarentão, Robert Danvers (Peter Sellers), vedeta televisiva de um programa de comida gourmet, cujo passatempo predilecto é levar para a cama todas as mulheres com quem vai travando conhecimento. Iniciativa aliás bem sucedida e para a qual deita mão a todos os recursos, desde os artefactos do seu apartamento (convenientemente equipado para servir os desígnios do seu proprietário) até ao uso de uma linguagem cheia de frases convencionais mas de grande eficácia. A garota é Marion (uma Goldie Hawn na frescura e beleza dos seus 24 anos), uma hippie americana de visita à Swinging London e a viver numa república comunitária de King’s Road.
Com argumento de Terence Frisby, baseado na sua própria peça teatral (estreou-se na Broadway a 18 de Outubro de 1967, com Gig Young e Barbara Ferris nos principais protagonistas, e onde esteve em cena durante cinco anos), “There’s A Girl In My Soup” é uma comédia sexista, típica dos anos 60, cujo interesse actual se prende unicamente com uma certa nostalgia de uma época de transição de costumes, onde o amor livre e despreocupado era o pão nosso de cada dia. O melhor do filme continua a ser a excelência dos intérpretes (para além de Sellers e Hawn é de realçar também a prestação fleumática e muito british de Tony Britton e a participação especial de uma Diana Dors já quase quarentona) e também a delícia de alguns diálogos, sobretudo na primeira parte do filme, onde a guerra dos sexos atinge a sua plenitude.
Depois a história avança para lá do verosímel, tornando-se bastante inconsequente e arrastando-se numa sucessão de bilhetes postais da Riviera Francesa para encher o écran. Ainda assim algumas das cenas mais conseguidas conservam toda a sua comicidade: a tentativa, exasperante, de Sellers em despir uma Goldie Hawn tagarela ou aquela prova de vinhos em França, onde para evitar desperdícios, Goldie vai emborcando copo atrás de copo até ficar completamente embriagada, e Sellers ter de a levar ao ombro para o hotel.
Britt Ekland e Brigitte Bardot chegaram a ser equacionadas para o papel de Marion, assim como Yves Montand para o de Robert. Mas penso que Sellers e Hawn estão magníficos, e sob esse aspecto o filme está muito bem servido. De referir ainda a adequada banda sonora, onde pontuam algumas canções pop, escritas e interpretadas por Mike D’Abo, o vocalista dos Manfred Mann: “Miss Me In The Morning”, “The Lady’s In Love”, “”It’s Gotta Be Now” e sobretudo o hit “Arabella Cinderella”. Goldie Hawn foi nomeada para o BAFTA inglês.
sábado, julho 30, 2011
BIO-FILMO: BRUCE LEE
«Empty your mind. Become formless and shapeless like water.
When water is poured into a cup, it becomes the cup. When water is poured
into a teapot, it becomes the teapot. Be water, my friend»
When water is poured into a cup, it becomes the cup. When water is poured
into a teapot, it becomes the teapot. Be water, my friend»
Foi em Julho de 1973 que chegou a notícia da morte prematura de Bruce Lee, aos 32 anos. Figura cimeira dos filmes de Kung-Fu, o célebre mestre de artes marciais encontrava-se no auge da glória e as cerimónias fúnebres foram dignas de um imperador. Nessa mesma altura, filmes de karaté como “A Mão de Ferro”, “A Raiva do Tigre” ou “A Fúria de Vencer” (este protagonizado pelo próprio Lee), batiam recordes de receitas na Grã-Bretanha. No entanto, o primeiro filme da malograda vedeta, “The Big Boss”, não conhecia o sucesso em França senão entre os imigrantes e os jovens. Mas um acontecimento viria a mudar tudo. Em Paris, o novo complexo de cinema “Le Hollywood Boulevard”, ao reservar uma das suas três salas ao filme de karaté, iria conduzir só a esta sala cerca de 30 mil espectadores em pleno mês de Agosto. Seguidamente, depois de um lançamento publicitário judicioso, o gerente do “Le Hollywood Boulevard”, René Château, arriscou mudar de filme todas as semanas. Foi um êxito! A voga do karaté estava lançada, tal como na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos e na Ásia, donde veio o ribombar do trovão.
“The Big Boss”, produzido pela companhia Golden Harvest, de Raymond Chow, tinha criado o efeito de uma bomba na Ásia, graças à formidável ciência das artes marciais do herói da história, Bruce Lee, e graças também a uma técnica cinematográfica de relevo. Em Hong-Kong o filme bate os recordes de “The Sound of Music" e de “The Ten Commandments”: 1 milhão e 250 mil pessoas deixaram mais de 700 mil dólares nas bilheteiras dos cinemas que o programavam. Em Singapura os espectadores aplaudiram-no como se quisessem deitar a casa abaixo. Mas deitemos um olhar sobre o caminho percorrido por este lendário actor para assim podermos entender melhor o fenómeno.
Nascido em 1940, a 27 de Novembro, em San Francisco, quando da digressão aos EUA duma companhia operática de Cantão, da qual o seu pai, Hoi Shuen Lee, era a vedeta, Bruce Lee, cujo nome verdadeiro era Jun Fan Lee, regressa a Hong-Kong apenas com 1 ano de idade. Em criança e durante a adolescência, desempenha já papéis de “duro” numa vintena de filmes do circuito local. Mas passa o melhor do seu tempo lutando nas ruas como chefe de grupo, e dando-se também ares de sedutor (é sagrado campeão do cha-cha-cha em 1958). A descoberta das artes marciais, do Kung-Fu em particular, muda por completo a sua vida: põe nisso toda a sua energia e vitalidade transbordantes (melhor aluno do mestre chinês Yip-Man), a pontos de chegar a preocupar o progenitor, que receia que o jovem se torne rapidamente num delinquente juvenil.
No ano seguinte, em 1959, e por iniciativa paterna, Bruce Lee regressa aos Estados Unidos, à cidade onde tinha nascido. Trabalha como empregado no restaurante de um familiar, ao mesmo tempo que estuda filosofia. Chega a dar aulas de dança e por fim abre uma escola de Kung-Fu (outras se seguiriam) baseada no seu próprio método. Casa-se em 17 de Agosto de 1964 com a americana Linda Cadwell, da qual viria a ter um filho (Brandon Lee) e uma filha (Shannon Lee). Os seus excepcionais desempenhos no torneio internacional de karaté de Long Beach, em 1964, valeram-lhe ser contratado dois anos depois, por produtores de séries televisivas, para o papel de Kato, o justiceiro mascarado, em “Green Hornet”, folhetim em 30 episódios, onde encarna um jogador de dia e um motorista de noite, veiculando um incorruptível cavaleiro andante que persegue o crime sob todas as suas formas. A série foi um sucesso enorme e Bruce Lee recebeu os elogios unânimes da crítica. Simultaneamente participou, sempre como actor secundário, em outras séries da época: “Batman”, “Ironside”, “Blondie” ou “Longstreet”, bem como no filme “Marlowe”, com James Garner no protagonista.
Enquanto nas suas escolas ensinava às vedetas de Hollywood (James Coburn, Steve McQueen, James Garner, Lee Marvin, entre outros) o seu estilo pessoal de Kung-Fu – o Jet-Kune-Do – não cessava de repetir para si que um dia seria uma estrela internacional mais célebre que os seus prestigiosos alunos. Entretanto, alguns oportunistas quiseram tirar partido do seu sucesso na televisão, abrindo por toda a América centros com o nome de “Kato self-defense”. Lee recusou prostituir a sua arte. Mas os homens de Hollywood não lhe deram nenhuma oportunidade, sustentando que ele não passava de um actor “de cor”. Presas ao seu mundo mesquinho, chauvinista e racista, as pessoas do cinema pensavam - e diziam-no bem alto - que os fans ocidentais não o aceitariam: era jovem, demasiado baixo e demasiado chinês num mundo de brancos; e esse facto não poderia manter a vedeta na televisão ou no cinema.
É assim que a Warner Brothers renunciou à série “The Warrior”, na qual Lee devia ser a vedeta principal, altera-lhe o título para “Kung-Fu” e confia o papel a um actor branco praticamente desconhecido, David Carradine. Quando se sabe que é graças a esta série que o filho de John Carradine conheceu a celebridade e que não só conhecia mal os rudimentos do karaté como clamava o seu ódio pelas artes marciais e por Bruce Lee em particular, é-se indignado pela ingratidão desenvergonhada de Carradine, pelo racismo estúpido dos produtores, e compreende-se facilmente a cruel desilusão de Bruce Lee.
Recusado pelo mundo dos brancos, por Hollywood, meca do cinema, com o qual apesar de tudo não pára de sonhar, Lee irá encontrar em Hong-Kong a consagração e a glória que lhe tinham sido interditas na América. Raymond Chow, antigo director de estúdio nos “Hair Brothers”, aproveita a presença do actor e propõe-lhe o papel da vedeta num filme. Lee aceitou. Deste encontro capital iria surgir o filme “The Big Boss”, a primeira longa metragem como actor principal. O filme extravasou os limites da Ásia, atraindo multidões no mundo ocidental. Devido ao sucesso fantástico e nada previsível deste primeiro filme, Raymond Chow confia-lhe novamente um papel de justiceiro vingador em “Fist of Fury”, no qual Lee parece ter descarregado toda a sua desilusão, todo o seu ressentimento face à incompreensão e à injustiça de que tinha sido alvo nos Estados Unidos.
Apesar de cinematicamente inferior ao seu precedente, o sucesso foi igualmente fabuloso. No Extremo-Oriente, “Fist of Fury” pulverizou todos os recordes, mesmo os de “The Big Boss”; em 23 dias alcançou em Hong-Kong uma receita de um milhão de dólares; em Singapura os bilhetes de um dólar foram revendidos por 45 dólares no mercado negro. O filme permaneceu 6 meses em cartaz nas Filipinas, e o sucesso alastrou-se rapidamente à Europa e ao resto do mundo ocidental. Nos EUA foi uma autêntica revolução: mais de 3 milhões de receitas! Desta vez a rede estava lançada e os caçadores de minas de ouro esfregaram as mãos de contentes. Numerosos representantes das grandes companhias chegavam de todos os lados com propostas milionárias de contratos. Percebendo que estava a tornar-se numa grande vedeta internacional, Lee fez esperar toda essa gente, ávida de dinheiro fácil, e fundou com o seu amigo Raymond Chow a sua própria companhia, a “Concord Film”. Logo de seguida rodou como actor, realizador, encenador e produtor “The Way of the Dragon”, que, em todo o lado, atingiu o maior score dos filmes de artes marciais de todos os tempos. Bruce Lee tinha realizado o seu sonho – era uma das maiores estrelas do mundo!
Face a todos estes triunfos a Warner Brothers não teve outro remédio senão encarar a lógica dos cifrões e contratou Bruce Lee para encabeçar uma grande produção de Hollywood. O filme viria a ser o último da carreira do popular actor, “Enter the Dragon”. Em sete semanas o filme rendeu 3 milhões de dólares, só nos EUA, e permaneceu 5 semanas em exclusividade na Inglaterra, antes de ser apresentado no resto da Europa. Pouco antes de concluídas as filmagens, a 10 de Maio de 1973, Bruce sofreu um desmaio no estúdio, tendo sido levado de urgência para o hospital, onde nada lhe foi diagnosticado. Depois de concluir o filme voltou-se de novo para um projecto interrompido, com o título profético de “The Game of Death”, onde contracenava com a actriz chinesa Betty Ting Pei, a sua mais que provável amante da época.
Seria em casa dessa actriz, em Hong-Kong, que foi encontrado morto, no dia 20 de Julho de 1973. Tratou-se de uma morte misteriosa, embora diagnosticada na altura como um edema cerebral. Mas nenhuma das pessoas que assistiram à autópsia quis prestar declarações, o que deu azo a várias especulações na altura. Depois de uma cerimónia fúnebre simbólica em Hong-Kong, a mulher viria a resgatar o corpo e Bruce Lee seria enterrado em Seattle (onde ele e Linda se tinham conhecido e chegado a viver), no cemitério de Lake View (Steve McQueen e James Coburn, entre outros, transportaram o caixão até ao seu local derradeiro).
Bruce Lee desapareceu no momento em que ocupava o primeiro plano da cena internacional. A Metro Goldwyn Mayer queria juntá-lo a Elvis Presley (outro grande aficcionado das artes marciais) num próximo filme. O produtor italiano Carlo Ponti desejava vê-lo a contracenar com a própria mulher, Sophia Loren. A Warner Brothers dispunha-se a dar-lhe cinco dos seus próximos doze filmes e a pagar-lhe 100 mil dólares até à sua realização. Mas a morte de Lee também se revelaria um êxito para os homens de negócios ligados ao cinema, uma vez que o mercado dos filmes de karaté disparou em flecha e as suas influências depressa se fizeram sentir noutros géneros de filmes.
Com a sua luta contra o preconceito, Bruce Lee tornou-se o primeiro actor não americano a fazer sucesso nos EUA e abriu caminho para muitos sucessores, como Jackie Chan, Jet Li, Chuck Norris, Steven Seagal ou Jean-Claude Van Demme. Todos procuraram beneficiar da herança legada, mas nenhum deles conseguiu atingir o carisma do grande mestre. Bruce Lee tornou-se rapidamente um mito, uma lenda, e os seus poucos filmes permanecem ainda hoje como referências básicas do filme de acção. Mesmo para os que, como eu, não são grandes seguidores do género, mas que apreciam sobremaneira todas aquelas sequências baléticas de pura graça animal. Brandon Lee, que procurava seguir as pisadas familiares, morreu de igual modo muito cedo, aos 28 anos, num acidente com uma arma de fogo, durante as filmagens do filme “O Corvo”. Foi sepultado ao lado do pai.
FILMOGRAFIA:
1973 – Enter the Dragon / O Dragão Ataca (+ produção)
1972 – The Way of the Dragon / A Fúria do Dragão (+ produção, realização e argumento)
1972 – Fist of Fury / O Invencível
1971 – The Big Boss / O Implacável
quinta-feira, julho 28, 2011
NATTVARDSGÄSTERNA (1963)
LUZ DE INVERNO
Um Filme de INGMAR BERGMAN
Com Ingrid Thulin, Gunnar Björnstrand, Gunnel Lindblom, Max Von Sydow, Allan Edwall, etc.
SUÉCIA / 81 min / P&B / 4X3 (1.37:1)
Estreia na SUÉCIA a 11/2/1963
Estreia nos EUA a 13/5/1963 (New York)
Estreia em PORTUGAL a 13/3/1964
(Lisboa, cinema Império)
Nesse filme, a certeza era "cumprida" porque a protagonista via - de facto - a porta a abrir-se e Deus que a vinha buscar e elevar aos céus, enquanto o irmão dela ouvia a Voz do Pai. Mas Karin já estava louca, o "deus" era um helicóptero-ambulância e a palavra do Pai talvez se resumisse àquele momento. Aqui não há milagres desses. Tomas Eriksson - o padre - não consegue palavras para ninguém: nem para Persson - que se suicida apesar da "confissão" do padre ou por causa dela -, nem para o sacristão (fabulosa personagem) nem para Marta, Ingrid Thulin na sua mais absoluta criação no universo de Bergman. E termina o filme numa igreja vazia, apenas com os seus acólitos e com a mulher que, apesar de escorraçada, teimou em segui-lo. Tudo é desastre nesse final sombrio. Mas o Pastor insiste na celebração do rito (apesar de ninguém ter comparecido) e a essa assistência (ou a essa não-assistência, deles e de nós formada) fala da Glória do Senhor, na presença e na ausência Dela, na verdade e na mentira Disso. Esse final tanto pode ser a irrisão suprema da crença do padre (e de todos nós, afinal) como a absoluta afirmação de Fé. «Clamei no deserto: preparai os Caminhos do Senhor» ou, como pretende outra tradução do texto bíblico: «Clamei: no deserto, preparai os Caminhos do Senhor».
E é quando diz que pediu a Deus: «Dá-me um sentido para a minha vida e eu serei a tua obediente escrava» é quando refere que no "Outono passado" a sua prece foi ouvida, através do amor dela por Tomas, que Bergman corta o plano pela única vez, para nos dar a ver velhas fotografias doutra mulher (supostamente, as da única mulher que teve, a única que amou, "realmente", - sabe-se - as fotografias da sua própria mãe). Aí, como nos futuros confrontos - cada vez mais ácidos e humilhantes - com Tomas, Marta (outro nome para Maria) é uma figura crística (a mulher das dores) e Bergman não negou esse "simbolismo", embora o tenha referido como "racionalização post-facto". E acrescentou que Marta «é feita da matéria de que os santos são feitos, isto é histerismo, insaciabilidade e vida interior». Sintomaticamente, é Marta quem acusa o Padre de "indiferença para com Jesus Cristo" (fixação ao Pai, Esquecimento do Filho) e quem lhe diz que nunca acreditou na fé dele.
Quando essa "aparição" (não vejo outra palavra para caracterizar essa portentosa sequência) termina, Max Von Sydow está na frente do padre para lhe escutar a confissão e sair para a morte. «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» é a exclamação de Gunnar Björnstrand antes de Ingrid Thulin voltar de novo "em carne e osso". Depois é a morte no gelo e a espantosa cena dos dois na escola. Mas não há outra escolha para Ingrid Thulin senão segui-lo, como não há outra escolha para Gunnar Björnstrand senão oficiar para ela. De certo modo, e neste "diário de um pároco de aldeia" que “Luz de Inverno” também é, o filme termina, como o de Bresson, com a frase: «Tudo é Graça». No sentido de «Tudo é Mistério». Tão inexplicável como a dúvida de Tomas ou a fé de Marta. Antes, os protagonistas, num dos planos mais misteriosos da obra de Bergman, cruzam-se com um cavalo negro. É no momento em que partem juntos, na sua forçada reconciliação, antes de irem a casa dos Perssons anunciar a morte de Jonas. O único comentário de Karin a essa notícia é: «Agora, sei que estou sozinha». Desde que se cruzaram com o cavalo, todos o estão. Como figurado nos altares, “Luz de Inverno” é uma Via crucis. E a única relação trágica é a relação com Deus, como dizia O'Neill na frase que tantas vezes Bergman associou e citou a propósito deste filme silenciosíssimo e vazio.
Um Filme de INGMAR BERGMAN
Com Ingrid Thulin, Gunnar Björnstrand, Gunnel Lindblom, Max Von Sydow, Allan Edwall, etc.
SUÉCIA / 81 min / P&B / 4X3 (1.37:1)
Estreia na SUÉCIA a 11/2/1963
Estreia nos EUA a 13/5/1963 (New York)
Estreia em PORTUGAL a 13/3/1964
(Lisboa, cinema Império)
"Drama that doesn’t deal with man’s relation to God is worthless"
Eugene O’Neill
“Luz de Inverno” é o segundo painel da trilogia realizada por Bergman entre 1961 e 1963 e a que o realizador deu por título "O Silêncio de Deus". Sucedeu a “Em Busca da Verdade” de 1961 e antecedeu “O Silêncio” de 1963. Mas, em “Luz de Inverno”, Bergman levou a depuração ao ponto mais extremo e raras vezes - senão nunca - nos vimos confrontados com uma nudez assim na sua obra. Nudez das duas igrejas - uma diurna, outra nocturna - que praticamente constituem o único décor do filme (só saímos delas, aliás, em viagem entre uma e outra, para o rio gelado junto ao qual Persson se suicidou e para as nuas casas de Marta e de Karin), nudez dos rostos dos protagonistas, caracterizados por forma a reforçar -lhe os traços e jamais a adoçá-los. Nudez da mise-en-scène (é o filme de Bergman em que o seu reinado é mais absoluto), nudez da banda sonora, onde o Bach de “Em Busca da Verdade” e de “O Silêncio”, dá lugar à total ausência da música, apenas interrompida pelos hinos religiosos tocados pelo organista durante os Serviços. Esse efeito de nudez é logo abissal no primeiro plano, quando, diante de nós, emerge em plano americano (rara figura na gramática bergmaniana) Gunnar Björnstrand paramentado, olhando-nos frontalmente e pronunciando as palavras «Nosso Senhor Jesus Cristo, na noite em que foi traído». Só depois (plano da Igreja e plano dos sete "comungantes") percebemos que estamos numa cerimónia religiosa e que Björnstrand conclui a sua prática. Esse longo e vertical plano dele é a primeira surpresa do filme, e primeira interpelação que do filme nos vem. A génese desta obra densíssima, como a de “Em Busca da Verdade”, é musical.
Bergman explicou: «O filme está estreitamente ligado com a peça musical a Sinfonia dos Salmos de Stravinsky. Ouvi-a na rádio, uma manhã, na Páscoa, e acordou-me para a ideia que gostaria de fazer um filme sobre uma igreja solitária nas planicies de Upsala. Alguém que entrasse na igreja, se fechasse nela, subisse ao altar e dissesse: «Deus, vou ficar aqui até que, de uma maneira ou de outra, Tu me proves que existes. E vai ser o fim. Ou o Teu fim, ou o meu». Originalmente, o filme era para ser sobre os dias e noites vividos por essa solitária pessoa na igreja fechada, cada vez com mais fome, cada vez com mais sede, cada vez mais expectante, cada vez mais entregue às suas próprias experiências, visões, sonhos, misturando sonho e realidade, enquanto travava esse estranho, sombrio e arrasante duelo com Deus (. . .) Depois, tudo se modificou, à medida que ia escrevendo. Modificou-se em algo de tangivel, algo de perfeitamente real, elementar e auto-evidente»
Esta passagem é muito importante. Se, formalmente, a grande modificação de “Luz de Inverno” em relação a “Em Busca da Verdade” é o abandono de um universo onírico (não há visões, não há sonhos, não há "filme dentro do filme", não há alucinações) essa unidimensionalidade (esse "realismo") tem a mesma base e a mesma vertigem. Bergman deu como subtítulo a “Luz de Inverno” a expressão "Certeza Desmascarada". Mas essa "desmascaração" (que tem que ver com a aludida nudez das faces) suspende mais a "certeza" do que o "cumprimento" dela em “Em Busca da Verdade” ?
Nesse filme, a certeza era "cumprida" porque a protagonista via - de facto - a porta a abrir-se e Deus que a vinha buscar e elevar aos céus, enquanto o irmão dela ouvia a Voz do Pai. Mas Karin já estava louca, o "deus" era um helicóptero-ambulância e a palavra do Pai talvez se resumisse àquele momento. Aqui não há milagres desses. Tomas Eriksson - o padre - não consegue palavras para ninguém: nem para Persson - que se suicida apesar da "confissão" do padre ou por causa dela -, nem para o sacristão (fabulosa personagem) nem para Marta, Ingrid Thulin na sua mais absoluta criação no universo de Bergman. E termina o filme numa igreja vazia, apenas com os seus acólitos e com a mulher que, apesar de escorraçada, teimou em segui-lo. Tudo é desastre nesse final sombrio. Mas o Pastor insiste na celebração do rito (apesar de ninguém ter comparecido) e a essa assistência (ou a essa não-assistência, deles e de nós formada) fala da Glória do Senhor, na presença e na ausência Dela, na verdade e na mentira Disso. Esse final tanto pode ser a irrisão suprema da crença do padre (e de todos nós, afinal) como a absoluta afirmação de Fé. «Clamei no deserto: preparai os Caminhos do Senhor» ou, como pretende outra tradução do texto bíblico: «Clamei: no deserto, preparai os Caminhos do Senhor».
Sabe-se - pelo próprio Bergman se sabe - que esse episódio foi sugerido durante a preparação do filme, quando pediu ao pai (como é conhecido, um pastor luterano) que o ajudasse a procurar igrejas. Estavam numa delas, quando o sacerdote foi ter com eles a pedir desculpa de não celebrar missa, devido ao reduzido número de presentes. O pai de Bergman - já muito velho e doente - ficou furioso e não aceitou a explicação. Paramentou-se e ele próprio oficiou, do início ao fim. Os comentadores têm querido ver nesse episódio (como na frase «o Pai falou» de “Em Busca da Verdade”) uma reconciliação com a imagem paterna nesta trilogia. Não aprecio particularmente esse jeito de "psicanálise" (de resto desmentida pela crueza com que os "Pais" de ambos os filmes, quer David no primeiro filme, quer o Padre neste, nos são dados) e prefiro ver, em qualquer deles, a irracional resposta a um chamamento que não se sabe explicar, mas tudo determina. Como Tomas, Bergman não tem respostas mas não recusa a pergunta que todos lhe dirigem à luz de inverno. De início, Gunnar Björnstrand dá a comunhão (nas duas espécies) a sete paroquianos. Desse grupo, três (a mãe, com a criança cheia de sono e o velho) são irrelevantes em termos de acção. Uma (a velha) só voltará a ter papel de relevo, quando lhe cabe anunciar o suicídio de Persson. Só os outros três são fundamentais: Marta e o casal Persson.
É este último quem emerge, após o quarto de hora inicial que se limitou a reunir em comunhão aquele estranho grupo, pontuado pelos planos do padre, da igreja e do altar gótico. E é Karin quem conduz o marido (silenciosissimo Max Von Sydow) até junto do padre, cuja radical dúvida (Tomas = Tomé = o Apóstolo da Dúvida) já tinha ficado exposta no episódio com o sacristão. É Karin quem narra a dúvida do marido (a história dos chineses). Perante o insistente silêncio deste (apenas o seu «Porquê ?») pontuado pelo "tic-tac" do relógio, Tomas, em vez de ouvir, fala e em vez de escutar a confissão, confessa-se. Mas destes dois momentos - conversa com o casal e o regresso de Jonas (outro nome com profundas ressonâncias bíblicas) para a conversa que só o conduz ao suicídio - emerge Marta, da profundidade de campo para o esconjurar e responder ao "silêncio de Deus" com o Amor ("aprender a amar").
É nesse momento do filme que Bergman introduz a mais inaudita e a mais ousada das suas sequências. Esse imenso grande plano (com a duração do "magasin") em que Ingrid Thulin se expõe e nos expõe. Corresponde à leitura da carta (a carta que Tomas nunca lera). Mas não há nenhum "flash-back" ou nenhum "encadeado". Logo que Tomas segura no texto, esse encarna na voz e na imagem de Ingrid Thulin. Nem sequer é um "grande, grande plano" como Bergman tantas vezes nos deu. A câmara mantém certa distância, enquanto Thulin fala da sua doença (dos seus" estigmas") do seu medo, da sua amargura, da sua força e da sua fraqueza.
E é quando diz que pediu a Deus: «Dá-me um sentido para a minha vida e eu serei a tua obediente escrava» é quando refere que no "Outono passado" a sua prece foi ouvida, através do amor dela por Tomas, que Bergman corta o plano pela única vez, para nos dar a ver velhas fotografias doutra mulher (supostamente, as da única mulher que teve, a única que amou, "realmente", - sabe-se - as fotografias da sua própria mãe). Aí, como nos futuros confrontos - cada vez mais ácidos e humilhantes - com Tomas, Marta (outro nome para Maria) é uma figura crística (a mulher das dores) e Bergman não negou esse "simbolismo", embora o tenha referido como "racionalização post-facto". E acrescentou que Marta «é feita da matéria de que os santos são feitos, isto é histerismo, insaciabilidade e vida interior». Sintomaticamente, é Marta quem acusa o Padre de "indiferença para com Jesus Cristo" (fixação ao Pai, Esquecimento do Filho) e quem lhe diz que nunca acreditou na fé dele.
Quando essa "aparição" (não vejo outra palavra para caracterizar essa portentosa sequência) termina, Max Von Sydow está na frente do padre para lhe escutar a confissão e sair para a morte. «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» é a exclamação de Gunnar Björnstrand antes de Ingrid Thulin voltar de novo "em carne e osso". Depois é a morte no gelo e a espantosa cena dos dois na escola. Mas não há outra escolha para Ingrid Thulin senão segui-lo, como não há outra escolha para Gunnar Björnstrand senão oficiar para ela. De certo modo, e neste "diário de um pároco de aldeia" que “Luz de Inverno” também é, o filme termina, como o de Bresson, com a frase: «Tudo é Graça». No sentido de «Tudo é Mistério». Tão inexplicável como a dúvida de Tomas ou a fé de Marta. Antes, os protagonistas, num dos planos mais misteriosos da obra de Bergman, cruzam-se com um cavalo negro. É no momento em que partem juntos, na sua forçada reconciliação, antes de irem a casa dos Perssons anunciar a morte de Jonas. O único comentário de Karin a essa notícia é: «Agora, sei que estou sozinha». Desde que se cruzaram com o cavalo, todos o estão. Como figurado nos altares, “Luz de Inverno” é uma Via crucis. E a única relação trágica é a relação com Deus, como dizia O'Neill na frase que tantas vezes Bergman associou e citou a propósito deste filme silenciosíssimo e vazio.
(João Bénard da Costa)
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