terça-feira, abril 05, 2011

ENTREVISTA COM CHRISTIANE KUBRICK

Na rodagem de "Paths of Glory" (1957)
Entrevista realizada pouco tempo depois do falecimento de Stanley Kubrick (ocorrido a 7 de Março de 1999, aos 70 anos, na sequência de um ataque de coração ocorrido durante o sono). Christiane Susanne Harlan, nascida a 10 de Maio de 1932, em Brunswick, na Alemanha, conheceu Kubrick durante a rodagem de "Paths of Glory" (1957), onde desempenhou o papel de uma cantora alemã. Casaram-se a 14 de Abril de 1958, tendo tido duas filhas, Anya e Vivian. Viveram 41 anos juntos, até à morte do realizador.

Foto publicitária (1957)

Serge Kaganski: O seu marido, Stanley Kubrick, tinha a reputação de ser um perfeccionista, um trabalhador obsessivo. Ele tinha tempo para uma vida privada?
Christiane Kubrick: Ele não era obsessivo, esse não é o termo correcto. Como todas as pessoas que amam aquilo que fazem, ele pensava simplesmente que o seu trabalho era o melhor brinquedo do mundo. Os pintores, os escritores ou os músicos não se levantam de manhã a pensar que têm de ir para o trabalho. Ele adorava a profissão de cineasta, era apenas isso. “Obsessão” é uma palavra demasiado conotada com a loucura. Não era o caso de Stanley. Aliás, ele fez poucos filmes, o que mostra bem que não era obsecado pela ideia de estar sempre a trabalhar. Ele não queria fazer muitos filmes, mas apenas bons filmes.
"Stanley" - Óleo de Christiane Kubrick, inverno de 1972

S.K.: Mas ele não passava a maioria do seu tempo a trabalhar nos filmes?
C.K.: Não. Ele lia muito, e dedicava-se também aos negócios, visto produzir também os seus próprios filmes. Estava sempre muito ocupado com a família, tinha montes de gatos e de cães. E passava bastante tempo à volta de projectos que nunca se chegaram a concretizar: “Aryan Papers”, um filme sobre a Segunda Guerra Mundial, “A.I.” (que depois foi realizado por Steven Spielberg), ideias sobre as novas tecnologias..., há cerca de trinta anos que tinha um projecto sobre Napoleão.

S.K.: Como é que ele reagia quando um projecto não se concretizava?
C.K.: Muitas vezes isso entristecia-o. Quanto a “Aryan Papers”, foi ele próprio que decidiu pará-lo, por causa da “Lista de Schindler”. Mas quanto a “Napoleão” queria mesmo fazê-lo. O estúdio não o apoiou devido ao falhanço comercial de “Waterloo” (filme realizado por Serguei Bondartchouk).
Na rodagem de "Paths of Glory" (1957)


S.K.: De um modo geral em que é que ele se ocupava quando não se encontrava a trabalhar num filme?
C.K.: Distraía-se em casa. Passava o tempo com as filhas, discutia os seus problemas, ocupava-se dos netos. Gostava de cozinhar de vez em quando. Passava também bastante tempo ao telefone com os amigos, com os colaboradores. As únicas pessoas com quem ele não falava eram os jornalistas. Era uma espécie de timidez da sua parte; acreditava não ser tão interessante como os seus filmes. Dizia: «trabalho os meus filmes de um modo muito meticuloso, mas depois, nas entrevistas, sinto-me nervoso, stressado, e digo algo sem jeito». Como a sua mulher neste momento.

S.K.: Contudo as raras entrevistas que ele concedeu são apaixonantes.
C.K.: Talvez, mas cada uma delas tirou-lhe um dia da sua vida. E ele não tinha interesse em gastar tempo a falar à Time, à Newsweek, etc. Mas gostava dos jornais franceses porque o público francês era importante para ele. Os seus filmes tinham sucesso em França. Por vezes, o número de entradas só em Paris ultrapassavam todas as do Reino Unido. Paris é uma cidade cinéfila e Stanley era um artista – ou, em todo o caso, aspirava a sê-lo. Muitas vezes era conotado como uma espécie de monstro, um eremita solitário e misterioso, mas foi a imprensa que inventou essa imagem. Os jornalistas ingleses tinham o costume de lhe fazer perguntas impertinentes ou idiotas. Quando as coisas se passam assim, é lógico haver uma retracção, e Stanley tornou-se desconfiado.
Beverly Hills, Agosto de 1960: Stanley, Anya, Katharina (filha do 1º casamento de Christiane), Christiane e Vivian


S.K.: Kubrick também tinha a reputação de viver como um recluso.
C.K.: De modo algum. Simplesmente não gostava de viajar. Acho que não é o único, existe tanta gente que não gosta de viajar. Mas dizer que não saía de casa não corresponde à verdade. Na verdade fazia-o muitas vezes, só que não frequentava locais públicos onde normalmente se encontravam figuras conhecidas, como por exemplo grandes restaurantes. Frequentava locais mais discretos. Quanto aos amigos célebres, como Spielberg, esses vinham-no visitar a casa. Mais uma vez não vejo nada de extraordinário nisso: há tanta gente que prefere comer tranquilamente em casa, com os amigos, em vez de o fazer em restaurantes barulhentos.
Watercolour de Christiane Kubrick

S.K.: Mas ele nunca falava de férias consigo? Não tinha curiosidade de conhecer outros países, outras culturas?
C.K.: Fizemos algumas viagens no passado. Mas Stanley não tirava férias, isso aborrecia-o. Passar tempo numa praia era para ele uma ideia atroz! Os outros países, as outras culturas, ele descobria-os pela televisão. Eu dizia-lhe muitas vezes que isso nada tinha a ver com a realidade, com o verdadeiro contacto. Mas só a ideia de ter que fazer as malas desencorajava-o logo à partida. E ele não tinha vontade de deixar o seu espaço habitual. Mas é claro que Stanley conhecia um pouco do mundo, não se esqueça que foi fotógrafo durante um certo número de anos. Mas quando se gosta muito de ler ou falar ao telefone , como era o seu caso, quer-se ter tudo ao alcance das mãos, num perímetro reduzido. Nós residíamos no campo, por isso ele aproveitava essa vantagem. Mas resumindo, Stanley não viajava porque simplesmente não via qualquer necessidade nisso. Tinha uma vida social normal mas estava muito dependente das máquinas: telefone, fax, etc.
Beverly Hills, 1960, com Carlo Fiore, amigo pessoal de Marlon Brando


S.K.: E sendo um americano a viver em Londres, qual era a sua relação com a América? Não sentia saudades do país natal?
C.K.: Sim, a América fazia-lhe falta, mas de uma maneira comum a todos nós: era sobretudo da sua juventude que ele tinha saudades. Ora, ele sabia que a América da sua juventude já não existia. Dizia que se voltasse à Bronx acabaria a chorar por não reconhecer os locais. Além do mais, para voltar aos EUA teria de fazer as malas e apanhar um avião. E para ele não valia o esforço.

S.K.: Não o afligia ver-se assim afastado das suas origens?
C.K.: Mas ele não estava afastado das suas origens! Todas as pessoas de quem  gostava e que gostavam dele estavam ao seu lado ou então falava-lhes por telefone. O seu estado de espírito era mais internacional do que americano. Mas encontrava-se sempre a par da actualidade, nomeadamente da americana. Por exemplo, seguiu com paixão o processo O.J. Simpson ou o caso Lewinsky.
Com Vivian e Anya - fotografia de Stanley Kubrick, 1965?
S.K.: A senhora é pintora. Como é que coabitavam os dois como artistas?
C.K.: Eu mostrava-lhe regularmente o meu trabalho; e ele utilizou-o muitas vezes nos seus filmes. Aliás, é algo de que sinto muito a falta, o não poder dizer-lhe: «Olha o que eu fiz hoje.» Nós tínhamos cada um o nosso trabalho, não havia interferências. Ele adorava discutir pintura, tínhamos longas conversas a esse respeito. Agora é como um diálogo que foi interrompido.
1970
S.K.: Vocês falavam os dois do trabalho dele, dos seus projectos em curso?
C.K.: Sim, ele falava todo o tempo, era muito comunicativo. Escutava sempre as minhas observações. Torna-se bastante difícil descrever como ele era intenso a propósito de tudo. Era um homem apaixonado, que nunca se aborrecia. Quando terminava um argumento não o discutia mais, porque sabia exactamente o que ia filmar e por isso nunca tinha necessidade de fazer alterações. Mas se o projecto ainda se encontrava no começo, no estado das primeiras ideias, aí passava o tempo a debatê-lo.
"Remembering Stanley" - Óleo de Christiane Kubrick pintado após a morte de Kubrick
S.K.: Falaram muito sobre o argumento de “Eyes Wide Shut”, um filme que fala do casal?
C.K.: Sim, mas o nosso casal não foi a única referência. À medida que se envelhece vemos também como evoluem os outros casais, os amigos, e percebem-se melhor os seus problemas. E todos esses problemas dos casais são evocados através de toda a espécie de mudanças, desde as conversas mais sérias e profundas até às maiores frivolidades. No mundo inteiro toda a gente fala desses temas, todos estão ao corrente das diversas questões ligadas ao casal. E penso que “Eyes Wide Shut” aborda francamente todas essas questões que muitas vezes deixam as pessoas perturbadas. O casal, o desejo, a infedelidade, são temas por vezes difíceis de abordar, e acho que Stanley adorava essa dificuldade. Ele sentia muita curiosidade nessas relações, era fascinado por essas histórias. E sobretudo gostava muito da novela de Schnitzler.
2010
S.K.: Para o espectador, “Eyes Wide Shut” parecia ser o seu filme mais pessoal, mais íntimo.
C.K.: Sim, sem dúvida. É também por essa razão que o argumento foi tão difícil de escrever, que lhe levou tanto tempo a preparar. E depois, quanto mais se envelhece mais se aprende, mais se pensa sobre o assunto. E como é um assunto que diz respeito a todos, ele sentia um certo orgulho em poder dirigir-se a toda a gente. Stanley considerava “Eyes Wide Shut” o seu melhor filme.
Fotografia de Christiane Kubrick, tirada na cozinha, Dezembro de 1998
S.K.: “Eyes Wide Shut” é um filme muito europeu, por causas de diversos aspectos. O que pensava o seu marido da evolução do cinema americano, da nova estética dominante baseada, nomeadamente, numa montagem ultra-rápida?
C.K.: A sua opinião passava o tempo a mudar, variava de filme para filme. Se por acaso se desse ao trabalho de gravar a sua opinião sobre o cinema contemporâneo, acredito que obteria uma curva a cobrir todo o espectro. De qualquer modo Stanley sentia orgulho e era muito consciente da sua independência, sabia que tinha a habilidade suficiente de manobra para poder fazer o que realmente queria. Desde a juventude que ele sabia já o que queria, que ambicionava fortemente a sua independência artística. Desse ponto de vista era uma pessoa bastante organizada, que conseguia sempre conciliar essa independência com as ideias dos grandes estúdios. É talvez uma das razões porque fez tão poucos filmes: sentia a necessidade desse estatuto único e persistia em honrar e preservar a sua liberdade. Para ele nunca se colocou a questão de fazer o que quer que fosse, de se lançar imediatamente em qualquer projecto. Planificava tudo, até ao último pormenor. Era como se de uma gigantecas partida de xadrez se tratasse. E ele fazia sempre os melhores movimentos.
Fotografia tirada na exposição da Cinemateca Francesa, Paris 2011
(entrevista traduzida do francês)

7 comentários:

Bruno Cunha disse...

Penso que a sua esposa tem razão. Ser perfeccionista não significa ser obsessivo. Passavam a imagem de eremita mas, na verdade, Kubrick era um apaixonado. Quem me dera que tivesse feito o Napoleão...

Abraço
Frank and Hall's Stuff

Unknown disse...

Muito interessante.
Eu não conhecia esta entrevista, mas não deixa de ser curioso que algumas perguntas e respostas são similares àquelas que eu inventei na "entrevista póstuma a Kubrick" :)

DiogoF. disse...

Magnífico. Apenas fiquei a admira-lo ainda mais.

Billy Rider disse...

Interessantissima entrevista, a lembrar-nos que também os génios têm o seu lado humano e familiar.
Embora já tivesse ouvido falar, desconhecia os dotes artísticos de madame Kubrick. E adoro a fotografia conjunta de 1970: ali respira-se felicidade...

José Morais disse...

Cada vez sinto mais vontade de me endividar e dar um salto a Paris. Kubrick merece-o!

Margarida Abreu disse...

A senhora Kubrick continua a ser uma mulher linda, na tranquilidade dos seus 78 anos.
Belo post, Rato!

Anónimo disse...

É este tipo de entrevistas, simples e despretensiosas, que nos ajudam a vislumbrar o homem para além do mito.