domingo, outubro 09, 2022

MORTE A VENEZIA (1971)

MORTE EM VENEZA
Um Filme de LUCHINO VISCONTI


Com Dirk Bogarde, Romolo Valli, Mark Burns, Nora Ricci, Marisa Berenson, Carole André, Björn Andresen, Silvana Mangano, etc.

ITÁLIA-FRANÇA / 130 min / 
COR / 16X9 (2.35:1)

Estreia em Itália a 5/3/1971
Estreia em Portugal a 14/9/1971 
(Lisboa, Cinema Monumental)


AS IMAGENS DA MEMÓRIA

Antes de me debruçar sobre a obra-prima de Visconti, gostava de tecer algumas considerações sobre aquilo a que chamo "As imagens da memória", uma vez que relaciono directamente este filme com esse conceito. A memória é uma coisa estranha. Não recordamos exactamente o que ocorreu em cada momento do nosso passado, mas, uma vez por outra, capturamos uma impressão, uma ideia geral. E na hora de recordar é o nosso cérebro que preenche as lacunas, mas de um modo que não é em geral o mais correcto. Ou seja, tendemos a embelezar esses buracos da memória em detrimento dos factos menos agradáveis. 

A memória cinéfila, pelo contrário, é muito mais verdadeira. Recordamos cenas ou sequências de determinado filme, tal qual ficaram no nosso cérebro. E se essa recordação se encontra porventura um tanto ou quanto embaciada, basta voltarmos ao filme e rever tudo de novo. A única diferença é que, naturalmente, revemos as mesmas imagens mas com outros olhos, porque à medida que crescemos nos vamos transformando em pessoas completamente diferentes. Ou seja, envelhecemos. E esta hipótese é mesmo a única maneira de um filme se poder alterar, adquirindo um novo significado, e não ser sempre igual a si mesmo. Porque no processo de envelhecimento, sempre que revemos um filme que amamos, vamos-lhe dando também um pouco de nós mesmos, numa natural relação amorosa. É que o amor não é um fenómeno quotidiano, necessita de um tempo de assimilação e reconhecimento. E esse tempo traduz-se em cada contacto com o filme amado, em cada olhar, em cada lembrança que ele nos impõe. Estes dois exercícios da nossa mente, o olhar primeiro, a lembrança depois, são imortais e, se esquecidos, sobrevivem no nosso inconsciente.

É por isso que o tempo é o juiz supremo da qualidade de um filme. O entendimento que temos dele é diferente consoante a idade com que o vemos. Daí o não ter já muita paciência com a maioria dos críticos actuais que, por um qualquer filme parecer destacar-se da maioria, o adjectivam logo de "obra-prima", não entendendo sequer o mundo actual, onde a arte cinematográfica se tornou numa indústria mais do que qualquer outra coisa. Como não entendem que o cinema, o verdadeiro cinema, tem por veículo ideal a imagem e não a palavra. Penso mesmo que se poderia dividir os filmes em duas categorias: aqueles em que predomina o argumento e aqueles em que predominam as imagens; o que corresponde quase a dizer: os que são medíocres e os que são belos. No dia em que o grande público consiga ver imediatamente essa diferença entre um filme que se desenvolve pelas imagens e um filme que se desenvolve pelo argumento, nesse dia conseguirá compreender o significado do cinema. Mas temo, sinceramente, que esse dia nunca irá chegar, uma vez que a tendência geral continua cada vez mais ser a utilização da palavra em detrimento da imagem.

Hoje em dia, para se encontrar um bom filme (já não falo no superlativo "excelente") é como encontrar uma agulha em palheiro. O mercado, de há uns bons anos para cá, encontra-se saturado de obras medíocres, onde se destacam de um modo geral os chamados blockbusters, os filmes de animação e um conjunto sem fim de "super-heróis", fabricados em fábricas Marvel, cada um mais estupidificante que o outro, mas que, pelos vistos, se tornou moda e uma ameaça real de continuidade. Salvo raras excepções, o cinema de autor há muito que se esgotou e agora a concorrência é feita ferozmente entre as principais produtoras de filmes, usando técnicas cada vez mais agressivas e sofisticadas da publicidade, como dando razão ao que um dia o cineasta Jean-Luc Godard declarou numa entrevista: «La pub? Ohhhh... Mais ça c'est le fascisme de demain!» É por isso que considero tão importante a memória cinéfila, que nos permite recordar e voltar a ver e a rever obras intemporais, fazendo-nos regressar a uma época onde podíamos escolher entre, por exemplo, um Kubrick, um Truffaut, um Fellini, um Hitchcock, um Bergman ou, neste caso, um Visconti.



Gustav von Aschenbach: «You must never smile like that. 
You must never smile like that at anyone»

Este filme representa na perfeição o que atrás referi. Vi-o pela primeira vez no dia 17 de Setembro de 1971, na sessão da noite do cinema Monumental, após ter jantado na cervejaria Portugália da Almirante Reis (nessa altura era a única que existia), com a minha namorada de então. Ela tinha 16 anos e eu 18 e ambos detestámos o filme. Hoje consigo entender na perfeição a razão base dessa rejeição: um par de jovens daquelas idades não pode entender o significado deste filme, onde se fala de tudo quanto é oposto ao universo particular que caracteriza quem ainda tem uma vida inteira pela frente, quem por isso mesmo se sente imortal. Mas tratando-se do grande Luchino Visconti, fui dando ao filme outras oportunidades ao longo da vida. E em cada uma dessas oportunidades fui cimentando o fascínio que "Morte em Veneza" começou depois a exercer em mim, ao ponto de hoje o considerar um dos mais belos filmes de sempre sobre o envelhecimento e a morte. Mas lá está... Tive de envelhecer para olhar o filme com uma mentalidade completamente diferente.

"Morte em Veneza" baseia-se no encontro entre dois seres, entre dois mundos, a partir do olhar que lançam um sobre o outro. Visconti, no apogeu da sua carreira artística, inventa uma escrita indissociável da intenção a que serve de expressão. Nenhum diálogo: a comunicação estabelece-se para lá das palavras. Aschenbach (Dirk Bogarde), compositor já contestado pelo seu habitual público e pelos seus discípulos, tão certo das suas verdades, de uma vida onde os conceitos se encontram meticulosamente arrumados, onde se propagandeia uma visão idealista da beleza, encontra o seu anjo da morte, Tadzio (Björn Andresen), num hotel luxuoso do Lido de Veneza, habitado por uma despreocupada grande burguesia.

Confrontado com uma beleza que o perturba, com uma juventude que tenta desesperadamente agarrar e reconquistar, Aschenbach entrará em guerra consigo próprio, iniciando assim a sua lenta mas inexorável agonia. Com Tadzio surge a certeza de que nenhuma verdade é eterna, de que nenhum momento é tranquilo, de que nenhum passado, ainda que feliz, é intocável. Conforme o próprio Visconti refere, «Tadzio resume o que constitui um pólo da vida de Aschenbach, um pólo que, representando a vida – como alternativa e antítese do universo rigidamente intelectual, dessa vida “sublimada” em que Aschenbach se encerrou – desemboca na morte. Tadzio, à semelhança da prostituta Esmeralda, não representa apenas a vida, mas a sua dimensão específica, perturbante, contaminadora, que é a beleza. Mann costumava citar Platão, dizendo “quem com os próprios olhos contemplou a beleza está condenado à morte”. Gostaria, de resto, que esta frase fosse a frase de lançamento do filme, pois contém o seu sentido mais profundo.»

A decadência física já se apoderou de Aschenbach e é essa debilidade progressiva do corpo e dos sentidos que o impede de contrabalançar o esforço intelectual que ainda o habita. O peso inexorável do tempo consome-o cada vez mais, criando uma espécie de barreira invisível entre ele e os outros. A câmara de Visconti, esgueirando-se por detrás das colunas da cidade ou contornando os objectos que povoam as salas do hotel, busca uma cumplicidade com esta sensação de progressivo afastamento do mundo, até à inevitável separação final. A última visão a que Aschenbach desesperadamente se tenta agarrar é a da silhueta de Tadzio que se recorta, ao longe, no esplendor duma tarde que desaparece no mar. Visconti, encenador de génio e um aristocrata do cinema, soube, talvez melhor do que ninguém, pintar o crepúsculo duma classe e o fim de uma época. É com Visconti que compreendemos que o romantismo também não escapa à morte.

No livro de Thomas Mann, onde o filme é baseado, Aschenbach era um escritor e não um músico. Interrogado sobre o porquê de tal mudança, Visconti retorquiu que «no cinema um músico é um ser mais “representável” do que um homem de letras, pois sempre é possível fazer ouvir a música de um compositor, ao passo que para um escritor se é obrigado a recorrer a expedientes fastidiosos e pouco expressivos como a voz-off. Além disso, Mann inspirou-se de facto na figura concreta de um músico, Gustav Mahler. Aliás, o encontro de Mann com Mahler, embora fugaz e sem continuidade, levou-o a definir o compositor, num bilhete que lhe dirigiu pouco depois, como o homem “em que se incarna a vontade artística mais sagrada e mais rigorosa do nosso tempo”. E foi ainda Mann a afirmar que, enquanto se agarrava à redacção de “Morte em Veneza”, ia tomando conhecimento dos relatórios médicos sobre a agonia do compositor, e que em seguida a notícia da sua morte o tocou profundamente. Decerto não é por acaso que o nome próprio de Aschenbach é Gustav, tal como o de Mahler»



Filme muito belo onde a sensualidade se encontra no olhar, “Morte em Veneza”, com um admirável acompanhamento do Adagietto da Quinta Sinfonia de Mahler, vai-nos revelando o Amor na sua forma mais pura, mais filosófica, resultando numa das mais profundas interrogações de um artista sobre a sua vida e o significado do seu universo: «Pois que a beleza, e só ela, é digna de ser amada e visível ao mesmo tempo. Ela é a única forma do espiritual que recebemos através dos sentidos e que podemos suportar pelos sentidos», como escreve Mann no seu pequeno livro. Ou ainda a constatação de que a nossa “ordem” não passa, tantas vezes, de um refúgio, vulnerável e inseguro, contra o caos libertador e criativo.

CURIOSIDADES:

- “Morte em Veneza” é normalmente citada como a segunda parte da “trilogia alemã” de Visconti. “Os Malditos”, de 1969 e “Luís da Baviera”, de 1972, são os outros dois filmes.

- Um dia, durante uma pausa das filmagens, Björn Andresen perguntou a Dirk Bogarde qual a canção dos Beatles que ele preferia. O actor inglês não foi capaz de responder.

- O filme ganhou o Oscar do melhor gurda-roupa (Piero Tosi) e 4 BAFTAS ingleses: Cinematografia, Direcção Artística, Guarda-Roupa e Banda Sonora.


5 comentários:

JC disse...

"Os Malditos" foi um filme mal amado pela crítica, se bem me lembro. Não sei porquê: considero-o o melhor filme que já se fez s/ a ascensão do nazismo.

Rato disse...

Curiosamente, JC, foi o filme que me introduziu à obra do Visconti, que me fez querer ver tudo aquilo que estava para trás. Quando esta morte chegou, dois anos depois, já eu era um apaixonado do cinema dele: "Rocco", "Senso", "Osessione", "O Leopardo" por aí...

JC disse...

Pois, e eu só ao 3º visionamento me apaixonei pelo "Senso"...

Rato disse...

É, os filmes do Visconti têm esse fascínio. Primeiro estranha-se, depois entranha-se. E surgem-nos sempre cada vez mais belos com o passar dos anos

Anónimo disse...

Nunca o vi ( de Visconti só O Leopardo e Rocco). Há algum tempo atrás li sobre a vida Björn Andresen após ter feito este filme e fiquei com uma certa aversão a esta obra que todos afirmam ser genial. Talvez um dia... mas gostei de ler o texto.