terça-feira, junho 05, 2012

OS "GUILTY-PLEASURES" DE JOHN CARPENTER

Não tive uma educação católica, por isso a culpa nunca teve grande papel na minha vida. Nós, Metodistas, não nos preocupamos assim tanto com a culpa. Em termos de cinema, contudo, a culpa sempre foi importante. Na escola de cinema, estudámos os clássicos, o cinema mudo, o expressionismo alemão, a montagem russa e o neo-realismo italiano. Enfim, essas ladainhas. Apercebi-me de imediato, com algumas excepções, de que não gostava muito, ou adorava, alguns desses filmes clássicos. Quero dizer, pode-se realmente gostar de “Greed”? Até a versão curta é difícil de aguentar.

Por isso, falemos de fiascos e filmes trash. O Pobre. O Terrível. O Estúpido. Filmes de que gosto muito e que gostava muito mais de ver que os clássicos. Em miúdo, sabia que muitos dos filmes que via eram horríveis, mas não queria saber. Adorava-os na mesma. Perdoava tudo. Hoje em dia, ainda amo e perdoo. É um caso de atrofia de desenvolvimento. Só agora, suponho, existe alguma culpa associada a esta paixão por filmes trash, porque de algum modo já devia saber como as coisas são. Bem, mas não sei. Como vão ver.


“THE UNCONQUERED” (Cecil B. DeMille, 1947)

A guerra Franco-Indígena num glorioso technicolor de três cores, que é como ver-se uma grande peça de teatro muito cara. Paulette Goddard é uma escrava inglesa. Gary Cooper é um caçador de índios. DeMille é um realizador com um estilo pesado e rígido. Os figurantes dão o diálogo descritivo. Boris Karloff faz de chefe índio. Cooper resgata Goddard, foge numa canoa e aguarda pendurado num ramo debaixo de uma cascata. Cooper resgata também o Fort Detroit. Todo o excesso na interpretação é muito divertido. Incrível.

“INVASION U.S.A.” (Alfred E. Green, 1952)

Dan O’Herlihy hipnotiza Gerald Mohr, Peggie Castle e outros clientes do bar com um copo de martini, conta uma história alarmista sobre comunistas invadindo os Estados Unidos. A bomba atómica é lançada sobre Nova Iorque. A barragem de Boulder explode. Está cá tudo. A Peggie Castle suicida-se em vez de ser violada pelos porcos invasores comunistas. Trash no seu melhor. Devia ser projectado nas aulas de história. Ou então, nas aulas de cinema.

“THE CONQUEROR” (Dick Powell, 1956)

John Wayne é Genghis Khan, com um bigode fino e um desejo enorme por Susan Hayward. Além disso, há Agnes Morehead e Pedro Armendariz. Além do facto de todo o elenco e equipa talvez terem sido expostos a intensas radiações no local de rodagem no deserto, perto de uma zona de testes atómicos, e além de ser um gozo imparável. Wayne é fantástico como Genghis Khan. Grandes cenas de batalha. Grandes gargalhadas.

“ATTACK OF THE CRAB MONSTERS” (Roger Corman, 1957)

Caranguejos falantes e gigantes com olhos e pálpebras aterrorizam cientistas num atol do Pacífico. Richard Garland e Pamela Duncan parecem um casal, mas ela começa a apaixonar-se pelo operário Russel Johnson. Ed Nelson morre no início. Beach Dickerson morre numa tenda. Cabeças cortadas, mãos cortadas, e os caranguejos desaparecem quando se lhes dá um choque eléctrico. Imensas descidas às profundezas. Imensos tremores de terra. Uma pinça gigante de um caranguejo teima em entrar em cena e atacar pessoas. Muito divertido. Algo cheio de suspense acontece em quase todas as cenas. Dickerson e Nelson combateram o caranguejo. Um clássico de Corman.

“MOTORCYCLE GANG” (Edward L. Cahn, 1957)

O adolescente bom Steve Terrell contra o adolescente mau, o cool John Ashley, em motorizadas. Anne Neyland tem problemas em decidir-se por um deles. Carl Switzer é o toque de humor. Russ Bender procura ajudar adolescentes atestados de testoterona a seguirem pelo bom caminho. Muito cool.

“SORORITY GIRL” (Roger Corman, 1957)

A perturbada Susan Cabot faz da vida um inferno numa república feminina. Barboura O'Neill nãi fica agradada. Cabot tenta chantagear June Kenny, mas Dick Miller não apadrinha o filho de Kenny e grava a confissão. Cabot é tão áspera e má, que é impossível não se gostar dela. Espancamentos com remos. Miúdas na praia. Kenny tenta o suicídio. Cabot caminha pelo mar adentro em fadeout. Exploração adolescente superlativa.

“FROM HELL IT CAME” (Dan Milner, 1957)

O Tabonga, o monstro árvore andante. Sensacional. No trailer, chamam-lhe Baranga. Caminha a 5 km/h em direcção às vítimas indefesas. Todd Andrews comanda os cientistas. Os indígenas das ilhas do Mar do Sul, estúpidos que nem uma porta. Incrível.

“THE VIKING WOMEN AND THE SEA SERPENT” (Roger Corman, 1957)

Um grupo de miúdas vikings em Bronson Caves. Abby Dalton, Susan Cabot, e um exército de louras de peles combatem um monstro de borracha marinho. Richard Devon conduz os maus da fita num enorme casaco de peles e chapéu. Muitas cenas de luta. Muitas lanças atiradas. Algumas das sobreposições não encaixam. Por razões óbvias, as mulheres vikings querem de volta os seus homens capturados. Corman bateu o seu recorde de posições de câmara neste filme: 61 posições de câmara diferentes num só dia. Irresistível.

“THE GIANT CLAW” (Fred F. Sears, 1957)

O mau filme preferido de qualquer apreciador de filmes de monstros. Absolutamente brilhante e idiota. O filme de monstros mais idiota de sempre. Um pássaro gigante “made in” México. Jeff Morrow, Mara Corday, Morris Ankrum e todo o planeta se aterroriza com o cacarejar da galinha anti-matéria. Tem tudo. Película de arquivo. Narativa inane. Uma grande cena romântica dos anos 50 a bordo de um avião. Aviões de brincar despenhando-se. Helicópteros de brincar a aterrar. Comboios de brincar destruídos. Cidades de brincar destruídas. O máximo.

“GOLIATH AND THE BARBARIANS” (Carlo Campogalliani, 1959)

Steve Reeves como Golias (na verdade como Hércules, na versão original italiana) luta contra tribos bárbaras que invadem a Itália. A bela Chelo Alonso é a mulher do seu desejo. Bruce Cabot é o vilão. Reeves no seu melhor, corteja Alonso, finge ser um monstro predador, com uma máscara e um bastão. Grande espectáculo piroso.

“THE INVISIBLE INVADERS” (Edward L. Cahn, 1959)

Invisíveis monstros lunares habitam corpos mortos para controlarem a terra. “Night of the Living Dead” nove anos antes. John Agar, Philip Tonge, Jean Byron e Robert Hutton lutam contra o cadáver possuído de John Carradine e o seu exército. É tão convincente à sua maneira, que não consigo ver quatro segundos do filme sem me sentar e acabar de o ver. Película de arquivo. Narrativa desastrada. Efeitos especiais maus. Mortos vivos. Um clássico.

“BLUE HAWAII” (Norman Taurog, 1961)

O primeiro grande filme de Elvis no Hawaii, e também o melhor de todos. Angela Lansbury é a mãe de Elvis, que quer que ele tome parte no negócio da família. Elvis quer seguir o seu próprio caminho como guia turístico. Ainda me comovo quando canta “I can’t help falling in love”. Por fim, Elvis casa-se com Joan Blackman num casamento havaiano sem sentido, mas muito enfeitado. O Rei no seu melhor.

“WAR OF THE GARGANTUAS” (Inoshiro Honda, 1966)

O supremo filme de monstros japonês. Na verdade, é uma sequela de “Frankenstein Conquers the World”. Russ Tamblyn e Kumi Mizuno combatem monstros peludos irmãos, um bom e um mau. Primeiro, destroem o campo, depois, a cidade. Uma cantora de um bar de um clube no aeroporto trauteia “The words get stuck on my throat” quando é morta por Gargântua. Grandes cenas de luta. Imensas imitações em miniatura destruídas. A tensão cresce quando o público aguarda para ver se Tamblyn e Mizuno acabam juntos. Não acabam.

“ICE STATION ZEBRA” (John Sturges, 1968)

O filme preferido de Howard Hughes. Um submarino nuclear atravessa o pólo norte sob o gelo, para um confronto com os russos. Rock Hudson é o comandante. Patrick McGoohan é um agente britânico. Ernest Borgnine é um espião russo. Jim Brown é cool. Cenário de neve falsa. Aviões de brincar fotografados sobre um painel granuloso. (Isto é Cinerama?). Um argumento absolutamente incompreensível da Alistair MacLean. O que procuram todos? Porque é que o público se ri? Porque é que eu gosto tanto deste filme?

“THE GREEN BERETS” (John Wayne e Ray Kellog, 1968)

O filme épico de John Wayne sobre a guerra do Vietname. Uma fantástica fantasia de extrema-direita. Um grande cerco a uma base de artilharia. Vietcongs assados em arame farpado, como marshmellows. Wayne e os seus Green Berets entram às escondidas numa mansão, capturam o cabecilha vietcong e a sua concubina. Banda-sonora ricky-tick, versão chop-suey. John Wayne, David Janssen, Aldo Ray, Bruce Cabot, Jim Hutton e a pior criança actriz que alguma vez entrou num filme. A melhor deixa final de qualquer filme: Wayne, para um miúdo órfão vietnamita: “Filho, esta guerra é por ti”. Obrigatório ver.

“BEYOND THE VALLEY OF THE DOLLS” (Russ Meyer, 1970)

Uma autêntica obra-prima. Rock and Roll. Belas miúdas nuas. Sexo e violência gratuitos. Dolly Read leva as Carrie Nations, um trio musical feminino, à Hollywood Babylon. O divertimento nunca acaba. As canções são óptimas. As mulheres são lindas. A violência é exorbitante. Uma sátira total de Russ Meyer, que aparentemente foi directa à cabeça do público e da crítica. Edy Williams num Bentley é algo a contemplar. Com 22 anos, estava profundamente apaixonado pela Cynthia Meyers. Ainda estou.
 

Claro que me é impossível acabar esta lista. Há tantos filmes maravilhosos que me proporcionaram prazeres tão culpados ao longo dos anos. Tanta afeição, tanta vergonha. Mas tenho que parar. Tenho que me obrigar a pôr um fim neste prazer. E assim, faço-o.

(in Film Comment nº 5, Setembro-Outubro, 1996)

4 comentários:

gin-tonic disse...

Aprendi a gostar de cinema, aprendi a ver cinema, com muitos destes filmes que Carpenter enumera. E há muitos e muitos mais. Qulauer deles, ou quaisquer outros, têm sempre um momento em que vale o tempo que se perdeu (?) a vê-lo!

Elisabete disse...

Sou só eu ou a vida é mesmo repetitiva? Guilty-pleasures? Porquê? Cinema é cinema e fazia falta a muita gente ver mais cinema. Uns não podem, outros são demasiado intelectuais/decentes/whatever para se preocuparem com certas coisas. É uma maçada, sei lá! Eu gosto de filmes série B porque muitas das grandes ideias do cinema vieram de lá. Quem nunca fez um filme não sabe nada do esforço e do investimento das equipas que fizeram filmes como estes!Desculpe a divagação tão longa mas há coisas que me tiram do sério.

Rato disse...

O termo aqui não foi usado por minha iniciativa, Elisabete. Limitei-me a transcrever um apêndice que vem num livro sobre o Carpenter, exactamente com esse título. De qualquer modo não o considero pejorativo. Quem dos amantes de cinema que não tem os seus muito queridos "guilty-pleasures" que acenda a luz.

Elisabete disse...

Olhe que se é assim, muita gente finge muito bem. Parabéns pelo novo look do rato cinéfilo.