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segunda-feira, dezembro 14, 2015

SOME CAME RUNNING (1958)

DEUS SABE QUANTO AMEI
Um filme de VINCENTE MINNELLI



Com Frank Sinatra, Shirley MacLaine, Dean Martin, Martha Hyer, Arthur Kennedy, Nancy Gates, Leora Dana, Betty Lou Keim, Larry Gates, etc.

EUA / 137 min / COR / 
16X9 (2.35:1)

Estreia nos EUA a 18/12/1958
  
Dave Hirsh: «You're right, teacher. You're a hundred percent right.
I've been a bad boy. I've been naughty. 
Matter of fact, I don't even belong in your class»

"Some Came Running" é um dos filmes mais característicos dos anos 50 (falo dos cenários, adereços e locais de filmagem mas também das mentalidades, dos usos e costumes da época); é também o apogeu do melodrama psicológico e da carreira de Vincente Minnelli, e um dos mais belos e pungentes filmes de toda a história do Cinema. Como eventualmente tais predicados ainda seriam poucos para enaltecer um dos meus "filmes da vida", acrescento-lhe ainda mais alguns: uma fotografia panorâmica deslumbrante (nunca a cor e o Cinemascope foram utilizados assim, com tanta precisão e inteligência, de parceria com uma utilização rigorosa dos espaços - o filme é quase todo ele rodado em planos americanos), uma partitura musical de grande qualidade (assinada por Elmer Bernstein) e um punhado de interpretações inolvidáveis, donde se destaca, naturalmente, uma sublime Shirley MacLaine, quiçá no melhor papel de toda a sua vida. Mas não sou o único que nutre um amor desmedido por "Some Came Running". Para João Bénard da Costa, também ele foi um dos "filmes da sua vida", tendo-lhe dedicado um excelente artigo, publicado no jornal O Independente em 23 de Junho de 1989. Deixo-vos com parte dessa homenagem:


A sensação que temos, quando relembramos este filme, é que houve tempo para tudo e subitamente não há tempo para nada. Houve tempo para conhecermos a família de Dave (Frank Sinatra), com o irmão pusilânime, a cunhada sinistra e a sobrinha bonita. Houve tempo para conhecermos a professora puritana, essa Miss French (Martha Hyer) que às vezes lembra Eva-Marie Saint e que usava carrapito com medo que lhe soltassem os cabelos, como Sinatra fez naquela única e incrível tarde de amor deles. Houve tempo para muitos batoteiros e muitas pegas, paisagem acidental e essencial para dela emergirem Bama (Dean Martin), o homem que nunca tirava o chapéu, e Ginny (Shirley Maclaine), a mulher que nunca largava a mala de mão em forma de coelhinho de peluche. Houve tempo, até para uma bela e efémera secretária, Miss Barclay (Nancy Gates), que rima com todo o resto. Só não houve tempo para o tempo do mais belo amor da mais bela mulher, Ginny-Shirley, essa que veio a correr e morreu no fim para salvar Sinatra, que lhe deitou a cabeça em cima da berrante almofada amarela que a pedido dela lhe dera, e que era a coisa de que ela mais gostava no mundo.


«Menina e moça me levaram de casa da minha mãe. Qual fosse a causa daquela minha levada, era pequena não na soube entào.» "Some Came Running" fez-me sempre lembrar o começo da novela de Bernardim. Quando Shirley MacLaine acorda no autocarro onde até aí não a víramos (a câmara só nos mostrara Sinatra a dormir), depois de ler o anúncio da companhia transportadora («and leave the driving to us») ou de ouvir o primeiro diálogo dela com Sinatra («You're a nice kid. I like you. Take care»), sinto essa sensação de «levada», um dia, menina e moça (Shirley MacLaine que o não era, era-o mais do que outra nenhuma), de «casa da minha mãe» (sempre gostei mais dessa variante do texto do que da usual, que diz «de casa de meus pais») por causas que os pequenos nunca sabem, que faz parte de serem pequenos nunca saberem. Há, no filme de Minnelli, uma mesma dupla acentuação da inocência, a mesma saudade por um quente mundo perdido, a mesma viagem, o mesmo lento sublinhar do tempo, do "então". E, mais importante ainda, a mesma equivalência nas cores, no décor e nos olhos de Shirley MacLaine para as labiais de Bernardim, com o corte final (a "dental") do "então", no movimento sublime, duma rapidez feita tanto de reflexo, como da ausência de reflexão, com que a moça menina se atira para cima do corpo de Sinatra, apanhando em cheio nas costas a bala que a ele era destinada.

Centro deste filme prodigioso, o mais bonito personagem que o cinema alguma vez inventou, Ginny é menina e moça perdida na vida e perdida na morte, no sentido em que também se diz "mulher perdida", "mulher da vida", tão belas expressões, E no fim, no enterro dela, percebemos que se Dean Martin nunca tirou o chapéu, foi para o tirar nesse momento, para a única mulher que a esse gesto obrigava. Metera-se, uma noite, num autocarro e atravessara centenas de quilómetros porque Sinatra, sentimental de mais quando bebia de mais, a convidou a segui-lo. Passada a bebedeira, na manhã da chegada a Parkman, ele já nem se lembrava dela. Mas lembrava-se ela e ficava, numa ida sem volta, apesar da nota de 50 dólares que Sinatra lhe metia na mão. E ficava, atrapalhada, atrapalhante, sem perceber de que terra era, sempre com coisas a mais nas mãos (a tal carteira, a tal almofada, as flores artificiais), sempre com os penduricalhos, sempre a pintar os olhos, a pôr rimel nas pestanas, «leaving the drive to others».

E há as duas sequências mais inesquecíveis. A primeira é quando decide ir até à escola, conhecer a professora por quem Sinatra se apaixonara, para "tirar a limpo" aquela história. A professora ensina literatura e explica aos alunos que as bebedeiras de Poe, as drogas de Quincey, a "neurótica promiscuidade" de Baudelaire não os tornavam menores. «Eram grandes homens, grandes na força, grandes nas fraquezas.» A campainha toca no fim desse parvo discurso. E enquanto os estudantes saem, aparece na frente daquela mulher que sabe tudo e não percebe nada, a mulher que não sabe nada e percebe tudo. Vem nervosíssima, timidíssima, amedrontadíssima. Se a professora gostar tanto de Sinatra quanto Sinatra gosta dela, todos os seus sonhos morrerão ali. Como ela própria diz, na profundidade de campo da aula vazia, contra um quadro onde está escrito um texto de Zola: «You don't know how scared I was. I want him to have whatever he wants. Even if it means you instead of me.» Durante toda a sequência, não disse nem fez uma coisa feia. Só ganhou o campo-contra campo porque a professora era incapaz de olhar para além do campo dela e ver para além das aparências a "rival" que não tinha nada, «not even a reputation».

A segunda sequência é pouco depois, quando Sinatra chega a casa, possesso de dor de corno, porque Miss French lhe dera com os pés («I don't like your life. I don't !ike what you think. I don't like the people you like») na ressaca desse face a face com a "pega". Sinatra insulta-a a despropósito. Há uma panorâmica sobre ela e ela a dizer «You gotta remember I'm human. I've feelíngs». Depois, Sinatra arrepende-se. Mas tudo quanto tem para dar àquela mulher que antes tinha dito que era capaz de fazer tudo, tudo quanto ele lhe pedisse (e veio a fazer mais) é perguntar-lhe: «Do you clean that place for me?» E o que a frase podia ter de horrível ou frustrante é salvo pelo sorriso de Shirley e aquele «Oh! Could I?», como se acabasse de receber o mais belo dos presentes. Corte e Sinatra lê-lhe o romance com que acabara de ganhar um prémio. Sentada no chão, os braços à volta dos joelhos, de calças cor-de-rosa, Shirley está toda nele e nada no que ele diz.

E, quando ele a acusa de não ter percebido uma palavra do que ouvira, ela responde com esta tirada prodigiosa: «No, I don't. But that don't means I don't like the story. I don't understand you, neither, but that don't means I don't like you. I love you, but I don't understand you. What's the matter?» Vira a cara para o lado, amuada. Há uma "pausa côncava de assombro" preenchida apenas pela espantosa partitura de Elmer Bernstein. A câmara fica fixa no rosto de Sinatra, e tudo quanto o filme e a vida até aí acumulara nele (tempo, décor, cidade, néons, família, a loura e frígida professora) sai cá para fora no inesperado pedido de casamento. Segue-se a incredibilidade de Shirley («Não deves brincar com essas coisas») e depois o abraço, abraço incrível de entrega e doação. Há o degrau e a coda volta ao início: «You gotta remember, I'm human.»

Nestas duas sequências - como na sequência final do crime, como em todo o filme - Minnelli atinge o apogeu da sua arte. Há cineastas, como há pessoas, que procedem por silogismos e assim destroem tudo e se destroem a si próprias. Há cineastas, como há pessoas, que estão para além de qualquer lógica e transfiguram tudo o que tocam em oração e oblação. Nessa delirante irracionalidade do amor, apanágio de tão raros. Como diria Shirley MacLaine: «Thanks, awfully, so awfully much.»

CURIOSIDADES:

- Joanne Woodward não aceitou desempenhar o papel de Ginny Moorehead por não querer trabalhar com Frank Sinatra

- A revista alemã Der Spiegel classificou "Some Came Running" como o melhor filme de todos os tempos

- Na cena da morte de Ginny, Shirley MacLaine não era suposta colocar-se à frente da bala. Foi Frank Sinatra o autor da ideia: «Let the kid take the bullet; maybe she'll get an Oscar.» O argumento foi alterado e Shirley recebeu a sua primeira nomeação.

- "Some Came Running" obteve 5 nomeações para os Óscares, nas categorias de Actriz Principal (Shirley MacLaine), Actor Secundário (Arthur Kennedy), Actriz Secundária (Martha Hyer), Guarda-Roupa (Walter Plunkett) e Canção Original ("To Love and be Loved", música de Jimmy Van Heusen e letra de Sammy Cahn). Shirley MacLaine foi ainda nomeada para o Globo de Ouro. Mas foi Susan Hayward, no filme "I Want To Live!" quem arrebatou os dois troféus nesse ano.



domingo, maio 06, 2012

THIS LAND IS MINE (1943)

ESTA TERRA É MINHA
Um Filme de JEAN RENOIR


Com Charles Laughton, Maureen O'Hara, George Sanders, Walter Slezak, Kent Smith, Una O'Connor, Philip Merivale, Nancy Gates, etc.


EUA / 103 min / P&B / 4X3 (1.37:1)


Estreia nos EUA a 7/5/1943
Estreia em FRANÇA a 10/7/1946
Estreia em PORTUGAL a 24/6/1954


O mais desprezado dos filmes americanos de Jean Renoir. A acção desenrola-se (como a do "Journal d'une Femme de Chambre") numa pequena  cidade de França, reconstituída no estúdio, em Hollywood. Este canto de França em estuque é, na realidade, um país imaginário, como o de "Monsieur Verdoux" ou de certos Fritz Lang, como em "Os Carrascos Também Morrem". «Com "Vivre Libre", quis mostrar aos americanos um aspecto um pouco menos convencional da França ocupada... Talvez tenha sido inábil, talvez não haja compreendido o estado de espírito que reinava em França após a libertação. O certo é que fui brindado com inúmeras cartas injuriosas provenientes de França e vilipendiado pela imprensa parisiense. Senti-me sinceramente magoado por não ter sido compreendido.» (Jean Renoir: A minha experiência americana, Cinémonde, 1946).
"This Land is Mine", apesar da realização clássica, de uma prudência nada habitual em Renoir - tratava-se de convencer, custasse o que custasse, o público americano - é um belo filme, em que se reconhece imediatamente o nosso autor, pelo menos no personagem e na representação de Charles Laughton, o qual se assemelha tanto com o realizador como Pierre Renoir em "La Marseillaise". Ê, além do mais, e quer queiramos quer não, um filme tipicamente francês, e não é por acaso que pensamos constantemente em Daudet de "La Derniêre Classe". Bardêche, que fez recuar os limites da desenvoltura crítica ao dar conta, numa das edições da sua História do Cinema, de um filme americano de Renoir que nunca foi filmado ("Terre des Hommes", extraído de Saint-Exupéry!), resgata-se com uma análise muito honesta de "Vivre Libre":
 «Embora cometa o mesmo tipo de erro, o filme de Jean Renoir, "Vivre Libre", é menos chocante para as cobaias convidadas a contemplar as suas proezas. Laughton desempenha um admirável mestre-escola que tem muito medo dos bombardeamentos, que gosta do bem-estar, da malga de leite, da sua velha mãe, que sente um grande respeito pelo inspector da Academia e pelas autoridades de ocupação e que, por fim, se transforma num carneiro enraivecido: as sessões do tribunal militar são públicas como as audiências do civel; o patriotismo é em estilo flamejante; os professores, lágrimas nos olhos, arrancam as páginas dos manuais de história consagrados a Joana d' Arc, à escola laica e a Jules Ferry; e o filme termina com coros de alunos que cantam como salmos os artigos da Declaração dos Direitos do Homem.
Estas evocações altamente republicanas levam-nos a sorrir e o filme foi severamente criticado em França. Foi um acolhimento bastante injusto, pois, com defeitos inevitáveis, tipicamente defeitos de "ausência", Renoir tentava compreender a situação de um país ocupado; o seu filme é o de um homem inteligente que utiliza dados que não se podem imaginar à distância, mas, no fim de contas, há certamente menos disparates e indignidades no seu filme do que noutros posteriormente realizados em França, com temas semelhantes.» Estamos de acordo com as considerações de Maurice Bardêche.
François Truffaut

Efectivamente, não é difícil admitir que "This Land Is Mine" não é a mais requintada das obras de Renoir em matéria de nuances psicológicas, antes utiliza o cliché sobre diversos temas da época: a França ocupada, os nazis, o colaboracionismo ou a resistência. Mas uma vez aceite a veia propangadista do filme - não esqueçamos que foi esse o seu objectivo principal - resta-nos, ainda assim, um belo objecto cinematográfico, mesmo sem conseguir atingir o esplendor das grandes obras de Renoir. "This Land Is Mine" é, sobretudo hoje, visto à distância de várias décadas, um filme bastante emotivo e agradável de se (re)ver. A cena final, então, ainda que de todo inverosímel (um resistente a defender liricamente as suas ideias diante de um tribunal colaboracionista, sem que ninguém o impeça, mesmo os nazis que se limitam a abandonar a sala), é um grande momento desse enorme actor que foi Charles Laughton, permitindo-se figurar entre as melhores sequências jamais rodadas sobre os estigmas da segunda guerra mundial.
Apesar (ou por causa) de uma grande economia de meios, Renoir consegue evidenciar algumas sequências memoráveis deste filme, para além da já citada cena final do tribunal: a introdução da personagem de Lory (submisso a uma mãe castradora que não hesita em obter ilicitamente o leite matinal para o seu menino), o jantar de conveniência em casa de Louise e Paul (atente-se nesse momento único e hilariante que é a iniciação de Laughton no tabagismo), a censura dos livros em plenas salas de aula (em que os alunos vão seguindo o exemplo dos professores e arrancando uma a uma as páginas proibidas) ou ainda a visita do Major Von Keller a Lory na prisão (e o testemunho deste dos fuzilamentos que ocorrem no pátio). Tudo cenas que nos fazem recordar o grande cineasta que Renoir sempre foi, mesmo filmando, em solo americano, um filme de encomenda como este. "This Land Is Mine" viria  a receber o Óscar do Melhor Som, único na filmografia de Renoir. Um filme que se aconselha (re)descobrir, sobretudo por parte daqueles que sempre o votaram ao ostracismo.


CURIOSIDADES:

- George Sanders, o actor que no filme interpreta o papel de Georges Lambert e que acaba suicidando-se, fez idêntica opção na vida real. Aos 65 anos, no dia 25 de Abril de 1972, isolou-se num hotel de Castelldefels, perto de Barcelona, e ingeriu 5 garrafas de nembutal. Deixou a seguinte nota escrita: «Querido mundo, deixo-te porque estou aborrecido. Sinto que já vivi o suficiente. Deixo-te com as tuas preocupações idiotas. Boa sorte!»