Um filme de FRANCIS FORD COPPOLA
Com Frederic Forrest, Teri Garr, Raul Julia, Nastassja Kinski, Harry Dean Stanton, Lainie Kazan
EUA / 107 min / COR / 4X3 (1.37:1)
Estreia nos EUA a 15/1/1982
(Radio City Music Hall, New York)
Estreia em PORTUGAL a 23/3/1983
(Cinemas Apolo 70 e Satélite, Lisboa)
“One From the Heart” é uma fábula romântica, um filme de Disney
num mundo de adultos” (Francis Ford Coppola)
num mundo de adultos” (Francis Ford Coppola)
Hank: «If I could sing, I'd sing. I can't sing, Frannie!»
Foi em Tóquio que Coppola leu, pela primeira vez, o argumento de Armyan Bernstein que daria origem a “One From the Heart”. A acção desenrolava-se em Chicago e contava de uma forma muito simples e bela, segundo o cineasta, a história de dois casais. Profundamente influenciado pelos espectáculos kabuki, Coppola quer introduzir no filme o máximo de artifício possível e decide transferir a acção para Las Vegas.
Tudo parecia simples, até que Coppola se explicou melhor. Na sua visão a história simples e bela teria de adquirir foros de fantasia e Las Vegas teria de se transformar na ideia de Las Vegas e numa metáfora da América. Las Vegas tinha que ter a realidade de um sonho, a que só o estúdio e o cinema electrónico podiam dar asas. E deram. Coppola teve, nos seus estúdios de Hollywood, a Las Vegas que só há no mundo das ideias.
«Tenho de dizer que, em muitos aspectos, “One From the Heart” foi o antidoto para “Apocalypse Now”. Aquele filme tinha sido tão dificil de fazer; tão estranho e assustador, que eu quis fazer um filme que fosse o seu oposto. Algo mais como uma fábula; mais como as comédias musicais que eu costumava dirigir na universidade. E também, nos últimos dias de “Apocalypse Now”, eu tinha chegado à conclusão que o cinema estava prestes a passar por uma extraordinária mudança, na medida em que estava pronto para se tornar electrónico. Eu tinha a certeza que os filmes iam ser rodados e montados digitalmente. e que iriam ser capazes de utilizar muitas das vantagens do meio electrónico. Fiquei muito entusiasmado com a criação de um "estúdio do futuro", que permitisse combinar elementos do teatro, da música e da dança e, ao mesmo tempo, que fosse capaz de usar elementos cinematográficos de montagem e realização.»
Em “One From the Heart” a tecnologia (o cinema electrónico) é a agulha que muda a direcção do cinema de Coppola. Dito de outro modo, a direcção visível em “Apocalypse Now” encontra finalmente o seu terreno exacto: o palco, a teatralização, o espectáculo total. O que se exige aos actores é que eles ensaiem e representem como no teatro, reaprendendo o valor da duração de cada cena, em vez de se apoiarem na fragmentação e na montagem convencional do cinema americano. O que vale também para a equipa técnica do filme, sobretudo na valorização extrema da luz.
Lembremos Coppola, uma vez mais: «A luz é, a meu ver, a base do meu trabalho. Quando era criança, gostava de regular a iluminação. Antes de começar “One From the Heart” sentia-me como um pintor que fosse tratar um assunto comum e não desejasse acrescentar uma dimensão suplementar a tudo o que sobre esse assunto já se vira antes, mas que quisesse concentrar todos os seus esforços no estilo do quadro. E a luz fazia parte da minha pesquisa estética.»
A referência ao escritor Goethe é uma constante no discurso de Coppola: «Para as cores nós estudámos o seu impacto e os laços com as noções de masculino e feminino, que existem, segundo Goethe, em todos os domínios da natureza e da física. O vermelho, por exemplo, está sempre associado com o que estimula o nosso sistema hormonal para nos despertar, para fazer bater mais depressa o nosso coração. O azul ou o verde, pelo contrário, encorajam esse mesmo sistema ao repouso e à calma. É por isso que em Las Vegas utilizam cores intensas durante a noite para que continuemos a jogar até de madrugada. Nessa base, escolhemos o vermelho para Franny e o verde para Hank.»
Começando de uma forma majestosa com aquele plano muito elevado do deserto, onde as dunas parecem corpos de amantes e onde as luzes das ruas de Las Vegas podem ser a nossa última cartada em cima da mesa, numa desesperada aposta na felicidade, “One From the Heart” é no fundo uma evocação, tocante e bela, de uma forma de fazer cinema numa Hollywood há muito desaparecida. Hoje em dia, em que a maioria dos décors são criados por computador, em que se usam (e abusam) dos efeitos digitais, recordar “One From The Heart” é constatar, uma vez mais, que os grandes criadores estão sempre um passo à frente da sua época. “One From the Heart” é um filme que adora a magia e a teatralidade dos cenários, dos mundos do faz-de-conta, onde uma simples alteração da iluminação pode tornar as paredes transparentes. Como se fossem não apenas um espaço real mas também estados de espírito.
Melodrama com evidentes reflexos do universo operático, “One From the Heart” é uma obra de pura ilusão e, por isso, de pura verdade. Tudo é ilusão, parece dizer-nos o foco de luz sobre a cortina que se abre para deixar ver não se sabe se o palco se o mundo. As coisas são ilusórias? Que importa se não são as coisas o seu suporte, mas sim o desejo das coisas e do que está para além das coisas? Tudo é ilusão e há mundos que, à semelhança da mais bela das raparigas, se desvanecem como spit on the grill.
Ainda uma final e justa referência à fabulosa banda sonora (disponibilizada neste blog, numa edição especial), onde a música de Tom Waits é de capital importância na integração perfeita das canções com o enredo do filme. Coppola disse na altura a Tom Waits que as pegadas que se viam na areia, logo no genérico inicial, eram as pegadas de Zeus e Hera. E que o filme era essencialmente sobre a influência dos deuses nos sentimentos dos seres humanos. Seguindo esse conceito, todas as canções foram gravadas antes do início da rodagem e usadas depois à medida que as cenas iam sendo filmadas.
“One From the Heart” não foi só um desastre. Foi, isso sim, o dilúvio: um cataclismo financeiro. Sem exagero, pode dizer-se que não ficou pedra sobre pedra na utopia de Francis Ford Coppola. Os números da box-office são, de resto, o mais cruel testemunho: dos vinte e seis milhões investidos, apenas uns irrisórios trezentos mil dólares foram recuperados. Em Hollywood coisas como esta, pagam-se. Os nomes associados a fiascos semelhantes vão tradicionalmente para a “lista negra” dos produtores.
Mas Coppola conseguiu resistir. Mesmo à beira da falência total a lendária energia do cineasta veio uma vez mais em seu auxílio: «Em vez de ser 'chagado' durante seis meses por ter cometido o pecado de fazer um filme que eu queria fazer, escapei-me para Tulsa com uma data de malta nova, para não ter que ouvir os “sofisticados”. Em vez de me estar a preocupar, pus-me a trabalhar, a pensar que um aumento na produção me poderia salvar. Tínhamos feito muita experimentação electrónica, que iria dar frutos; e poderíamos, nessa altura, fazer filmes com orçamentos modestos e controlados. Foi o que sucedeu. “The Outsiders” fez dinheiro suficiente, numa altura em que eu precisava de bastante.»
- A única versão que existe em DVD foi editada em 2004. Não é a versão original que passou nos cinemas, mas sim uma remontagem feita na altura por Coppola, em que foram retiradas algumas cenas e acrescentadas outras. As sequências originais alteradas aparecem integralmente num DVD de extras.