terça-feira, dezembro 28, 2010

LA GRANDE BOUFFE (1973)

A GRANDE FARRA
Um Filme de MARCO FERRERI

Com Marcello Mastroianni, Michel Piccoli, Philippe Noiret, Ugo Tognazzi, Andréa Ferréol, etc.

FRANÇA-ITÁLIA / 130 min / 
COR / 4X3 (1.66:1)

Estreia em França a 17/5/1973
(Festival de Cannes)
Estreia nos EUA a 19/9/1973 
(New York)
Estreia em MOÇAMBIQUEe a 4/12/1974
(LM, cinema Dicca)


“Vivemos num tempo onde já não existem sentimentos. Tudo é falso e hipócrita. Assim, com “La Grande Bouffe”, quis contar uma história que se apoiasse numa verdade ainda não adulterada: a realidade fisiológica. O meu filme exprime um profundo desespero, traduzido na vontade de se empanturrar, de se empanturrar até explodir. É um filme moralizador, é um filme moralista” (Marco Ferreri)

Fábula moralista, pois então, numa via de excesso e picaresco onde Rabelais e Sade deram cartas. Um filme que começa com o tom de comédia de costumes, de sátira levemente audaciosa, e que progressivamente se instala numa visão amarga de profundo desespero. Então, todas as audácias são permitidas, mas a farsa é já suicida e terminal. A provocação constante origina o incómodo do espectador e por isso o riso sai amarelo e distorcido, e estrangula-se-nos no cérebro. A grande farra da burguesia analisada à lupa: um hiper-realismo estapafúrdio, perpetuamente invertido, mas dirigido com mão de mestre por um Marco Ferreri (1928-1997) num dos pontos mais altos da sua carreira.

Provavelmente até hoje o maior escândalo do Festival de Cannes, onde se estreou a 17 de Maio de 1973 no meio de acesas polémicas (apesar de ter ganho por unanimidade o Prémio da Crítica Internacional), “La Grande Bouffe” foi dos filmes mais aguardados logo que os ventos de liberdade varreram a censura em Portugal. Vi-o pela primeira vez a 4 de Dezembro de 1974, no cinema Dicca, em Lourenço Marques, pouco antes de rumar a Lisboa para ingresso no Técnico e continuação dos meus estudos universitários. Antes desse ano findar voltei a vê-lo de novo, desta vez no cinema Satélite do Monumental, há muito desaparecido.

O que não desapareceu foi o fascínio que “La Grande Bouffe” exerce em mim de todas as vezes que vejo o filme. Esta história excessiva e escatológica, em que quatro homens se reúnem numa mansão aristocrática durante um fim de semana com o único objectivo de cometerem os maiores excessos gastronómicos e sexuais, sempre me deu a visão perfeita de uma classe burguesa em permanente decadência (porque sempre renovada ao longo dos anos), onde todos os valores gravitam em torno da abastança.

O filme é, claro, uma enorme alegoria sobre esse segmento da sociedade, mas que de facto nos consegue transmitir todo um ridículo e degradação de propósitos ao colocar os seus personagens a chafurdar no consumo ilimitado de pitéus e iguarias e em que o sexo aparece de igual modo conotado como um manjar adicional entre tantos outros. A sequência da visita das prostitutas é paradigmática – nunca o sexo foi tão reduzido à materialidade pura da carne, nem mesmo no mais pornográfico dos filmes.

Não foi certamente por acaso que Ferreri construiu a sua pequena fábula em torno da comida, que é um dos últimos domínios da cultura ocidental em que ainda predomina o ritual, sobretudo em França, onde o realizador italiano viveu durante muitos anos. Com um argumento bem construído, o filme percorre todas as etapas deste ritual: comprar a comida, escolher os ingredientes, ler as receitas, preparar os pratos, baptizá-los, pôr a mesa e, finalmente, comer.

Como numa fábula mítica, nada é gratuito em “La Grande Bouffe”, desde as taras grotescas de Marcello à flautulência de Michel – tudo sinais de uma degradação da morte em vida, onde a única sobrevivente será a mulher, símbolo eterno representado pela personagem de Andrea, uma abelha-mestra que preside ao concerto fúnebre executado em honra dos seus anfitriões e que no final da récita dispersará pelos jardins a carne extra congelada, a qual já será apenas consumida por matilhas de cães esfomeados.

Pela sua falta de pudor e crueza narrativa, “La Grande Bouffe” não podia deixar de chocar as plateias um pouco por todo o lado. Sobretudo porque os personagens (denominados todos pelos nomes próprios dos respectivos actores, o que, mais uma vez, não é por acaso) são representantes de profissões consideradas dignificantes: um piloto da aviação, um realizador de televisão, um juíz e um proprietário de restaurante e maitre de cuisine. E apesar de Marco Ferreri não se levar demasiado a sério, a apresentação de todos aqueles excessos alimentares e sexuais era sem dúvida uma novidade à época, algo nunca visto num écran de cinema. Mais do que uma simples comédia de excessos, “La Grande Bouffe” é um grande filme, original e pertinente, sobre a solidão e o enfado de se estar vivo por acaso.

CURIOSIDADES:
Por causa deste filme fiz uma pequena surpresa a um grande amigo meu em 1982, quando ele fez 29 anos - um bolo muito especial, com um par de gelatinosos seios em cima. Não ficou com aquele aspecto rosadinho do bolo do filme (feito em honra da Andrea e que o Philippe Noiret saboreia no final), mas enfim... foi o que se pôde arranjar. Aqui fica a respectiva fotografia a testemunhar essa festiva data.

Sem comentários: