segunda-feira, dezembro 20, 2010

FLAG, O CÃO DE UMBERTO D.

Quem consegue ainda lembrar-se de mim, pequeno rafeiro ágil, numa Roma pobre do pós-guerra, seguindo fielmente o seu dono, homem envelhecido e solitário de que eu era o derradeiro consolo e a única companhia? O meu nome é Flag e fui, para que conste na história do cinema, o cãozito de Umberto D., num filme de Vittorio de Sica, que, seguindo os cânones da estética neo-realista, quis mostrar, a preto e branco, o sofrimento e a solidão de um pobre homem a quem tirariam a vida se o privassem do amor e da presença do seu cão. Eu sou um rafeiro e chamo-me Flag, mas insisto em que me recordem sempre como o cão de Umberto D., aquele que nunca aceitou que lhe impusessem a separação do seu dono, por maior que fosse a pressão desumana de uma senhoria cruel.
Confesso que vi muita gente a chorar quando o filme chegou às salas de cinema. E é natural que isso tenha acontecido, já que se estava em presença de um drama simples e tocante, que coloca em cena temas como a velhice e a solidão. Nem eu nem o actor que desempenhou o papel de Umberto D. éramos actores profissionais, mas não nos faltou sensibilidade para mostrarmos de forma comovente aquilo que De Sica queria que os espactadores vissem. E foi precisamente isso que eles viram através dos nossos movimentos e das emoções que conseguimos exteriorizar.
Quem se recorda hoje de Flag, o cãozinho neo-realista que preferiu morrer a abandonar o seu dono à tragédia de uma existência sem amparo nem afecto? Claro que não trabalhámos para os Óscares da Academia nem para outras distinções. Trabalhámos por amor a essa arte superior e única que é o cinema. E a única coisa que eu hoje desejo é que este filme seja mostrado nas escolas e nas colectividades para que aqueles que o virem percebam até que ponto é criminoso o abandono de um animal como eu. Por favor, não se esqueçam: o meu nome é Flag (bandeira) e fui o cão do Sr. Umberto D., um homem sem história que viveu comigo uma bela história de amor.
José Jorge Letria in “Amados Cães” (edição Oficina do Livro, 2007)

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