segunda-feira, dezembro 23, 2013

HIROSHIMA MON AMOUR (1959)


HIROSHIMA MEU AMOR
Um Filme de ALAIN RESNAIS



Com Emmanuelle Riva, Eiji Okada, etc.


FRANÇA-JAPÃO / 90 min / 
PB / 4X3 (1.37:1)


Estreia em FRANÇA a 10/6/1959
Estreia em PORTUGAL a 27/4/1974
(Lisboa, Cinema Londres)



«...Eu bem suspeitava que um dia me havias de aparecer.
Esperava-te com uma paciência sem limites, calma.
Devora-me.
Deforma-me à tua imagem, a fim de que nenhum outro,
depois de ti, compreenda a razão de tanto desejo.
Vamos ficar sós, meu amor.
A noite não acabará.
O dia não voltará a romper para ninguém.
Jamais. Nunca mais. Por fim.
Matas-me. Fazes-me bem.
Choraremos conscienciosamente
e com boa vontade o dia defunto.
Nada mais teremos a fazer senão chorar o dia defunto.
O tempo passará. Apenas o tempo.
E mais tempo há-de vir.
O tempo virá em que não saberemos
que nome dar ao que nos unirá.
O nome apagar-se-á a pouco e pouco da nossa memória.
Depois desaparecerá por completo.»


Palavras de “Hiroshima Mon Amour”, palavras de Marguerite Duras que pela primeira e última vez escreveu todo um livro para ser filmado, quase como se dum roteiro se tratasse. Alain Resnais tinha conseguido, quase por acaso, a colaboração preciosa de uma das mais famosas escritoras francesas. A cumplicidade desse feliz encontro resultou num dos mais belos filmes da história do Cinema. Um filme que em boa hora regressa à cumplicidade de uma sala de cinema - o Nimas, em Lisboa.

Desde as primeiras imagens (uma marca fossilizada, corpos nus enlaçados emergindo de um banho de cinzas), desde as primeiras frases, elevando-se em voz-off, em tom de declamação («não viste nada em Hiroshima..), banhamo-nos num clima envolvente, misto de dor e doçura, que não só se manterá ao longo de todo o filme como impregnará toda a obra de Alain Resnais: a interpenetração do amor e da morte, tendo como filigrana o peso da lembrança. É como se todo o sofrimento do mundo se confrontasse com a efemeridade do sentimento, e com o traumatismo da memória. Memória individual e memória colectiva, indissoluvelmente ligadas. «Sou obsecado pela morte, pelo tempo que passa, pelo desgaste das coisas...», declarou o cineasta numa entrevista da época.

Se na pintura os limites são dados pela tela que se oferece àquele que a contempla, no cinema a tela é o tempo. Em "Hiroshima Mon Amour" tudo pretende traduzir um lirismo investido de um rigor quase matemático, através de múltiplas justaposições: masculino / feminino, amor / inimigo, destruição / vida, memória / esquecimento. Esta última dualidade é na verdade o âmago central de todo o filme: Resnais, e claro, Duras, propõem mostrar-nos que a memória é uma forma do esquecimento, que o esquecimento não poderá efectivar-se totalmente sem que primeiro a própria memória tenha concretizado a sua obra.

O diálogo de Marguerite Duras dispensa qualquer comentário: «Eu conheço o esquecimento», diz a mulher francesa, que, perante a negativa do japonês, insiste: «Como tu, também eu sou dotada de memória. Tentei lutar com todas as minhas forças contra o horror de já não compreender o porquê dessa recordação. Como tu, também eu esqueci; porque negar a evidente necessidade da memória?»

Se há uma ilusão da memória, há uma realidade do esquecimento. É o que nos vai demonstrar o episódio simétrico de Nevers. Hiroshima e Nevers estão ligadas, antes de tudo, por elos de facto. A morte do seu amante alemão, em Nevers, representa para a heroína uma catástrofe exactamente idêntica à de Hiroshima. É uma morte, um fim, alguma coisa que não suporta um "depois". E, no entanto, houve um depois: o depois é o esquecimento, e o esquecimento culmina na repetição.


Assim como o esquecimento de Hiroshima, esquecimento inevitável, uma vez que é necessário que os sobreviventes continuem a viver, implica a possibilidade de se produzirem outras Hiroshimas, também a repetição, quinze anos depois dessa aventura da juventude, de um amor impossível com o japonês assinala a profundidade e a necessidade do esquecimento. E assim como a jovem ao visitar os museus, os hospitais, as ruínas da cidade destruída, ao ver os jornais de actualidades, teve a ilusão de reviver o acontecimento («A ilusão é de tal modo perfeita - diz ela - que até os turistas choram»), também, ao ver o japonês, ela tem a ilusão de rever o alemão.

Depois dos dois regressos simétricos e sucessivos a Hiroshima e a Nevers, o sentido do filme torna-se evidente. Não é a história de um amor ou de dois amores, é, realmente, a história de um esquecimento. «Lembrar-me-ei de ti como do esquecimento do próprio amor; pensarei nesta história como no horror do esquecimento.» Para "saber" o que era essa história de Nevers teria sido necessário que ela a contasse. O que dá sentido aos acontecimentos é exactamente a narrativa. Mas se ela pôde contar a história é porque essa história "se podia contar". E se ela se podia contar é porque acaba precisamente por se apresentar à memória sob a forma do esquecimento: «Vês, a nossa história podia-se contar», diz a jovem francesa, que acrescenta logo a seguir: «Vê como te esqueço.»

As últimas sequências do filme levam-nos a assistir a uma dupla separação, que, simbolicamente, é apenas uma: a heroína separa-se do japonês, mas também de Nevers: «História de quatro vinténs, entrego-te ao esquecimento.» Ao mesmo tempo, é o japonês que ela vota ao esquecimento: «Como com ele, o esquecimento começará pelos teus olhos, pela tua voz. E acabará por te submergir totalmente.» No cabaret a ruptura torna-se nítida. Simbolicamente, um outro homem toma o lugar do amante; e no olhar deste vemos nascer pouco a pouco o receio da separação: «Esquecer-te-ei, repara como te esqueço já.»

Nesse momento o círculo está definitivamente fechado, o futuro e o passado como que se inclinam sobre o presente, vindo colar-se estreitamente sobre esse tempo puro, aberto para um futuro vazio. Esgotaram-se, literalmente, todos os meios e a nossa lassitude física traduz esta impressão de vazio interminável que é a própria imagem que Marguerite Duras e Alain Resnais nos quiseram dar do tempo.

O comité do Festival de Cannes de 1959 rejeitou a selecção de "Hiroshima Mon Amour", julgando inoportuna a sua inclusão na competição internacional - corria-se o risco de desagradar os americanos. Para Resnais esta história sabia-lhe a déjà vu: já em 56 se passara o mesmo com "Nuit et Brouillard" que, ao documentar os campos de concentração nazis, poderia ofender as susceptibilidades germânicas - dissera o júri de então. Passados alguns dias, e devido a pressões de gente ilustre do cinema (casos de Louis Malle, Claude Chabrol, François Truffaut, René Clair ou Roberto Rossellini), o filme teve autorização para ser exibido no Festival, mas apenas extra-competição. Concederam-lhe o Prémio da Crítica Internacional e o Prémio Especial da Sociedade de Escitores de Cinema e Televisão.

A celeuma em torno do filme provocou uma guerra entre indefectíveis entusiastas e irritados detractores. Entre "sublime" e "idiota" esgotaram-se os adjectivos. Que reabilitava os colaboracionistas, que era um panfleto anti-americano, foram as principais objecções políticas; artisticamente os opositores apontavam-lhe o arteficialismo do texto, a inconclusividade moral de toda a história, o desequilíbrio entre as partes, dizendo que a sequência em que o japonês insiste em perseguir a mulher francesa roçava as raízes do irrisório.

Mais clarividente, a crítica anglo-saxónica comparava esta controvérsia com a que fôra gerada por "Citizen Kane", entregando qualquer juízo para a posteridade. Meio século passado, parece sobremaneira feliz a comparação entre os dois filmes: hoje já ninguém tem dúvidas que "Hiroshima Mon Amour" é um marco decisivo na história do cinema.

Estreado em França a 10 de Junho de 1959, o filme só chegaria a Portugal dois dias após o 25 de Abril, estreando-se então no cinema Londres, em Lisboa. Não sei se chegou a correr em circuitos paralelos, mas eu vi-o muito antes, em Lourenço Marques, a 26 de Agosto de 1972, numa sessão do Cine-Clube local (pois, era usual nessa altura termos destes privilégios culturais). Nos Estados Unidos a estreia ocorreu a 16 de Maio de 1960, tendo inclusivé sido nomeado para o Oscar do melhor Argumento.

O filme revelou uma actriz francesa, Emmanuelle Riva (de seu verdadeiro nome Paulette Germaine Riva), na altura com 32 anos e que mostrava na tela tudo quanto Duras idealizara no papel: «Nela, tudo passa pelo olhar, desde a palavra ao movimento. Este olhar está esquecido de si próprio. Esta mulher olha por sua conta. O seu olhar não consagra o seu comportamento, ultrapassa-o sempre.»


Aqui ficam alguns excertos de uma entrevista da actriz, publicada no primeiro número do “Cinéfilo”, em 30 de Setembro de 1973:
«”Hiroshima Mon Amour” foi evidentemente uma experiência muito importante! Resnais ainda não tinha dirigido actores - era a sua primeira longa metragem - e ele mesmo dizia que não sabia dirigi-los. Mas havia uma grande precisão no argumento, resultado do trabalho conjunto Duras-Resnais. Toda a história do filme estava escrita com muito pormenor, muito detalhadamente, o que nos ajudou muito. Também foi um incentivo a relação de amizade que já existia entre os dois. Havia uma compreensão tácita, em meias palavras, apenas com um olhar...»

«Cultivar uma imagem teria sido muito fácil, depois de “Hiroshima Mon Amour”. Quiseram fazer de mim um ídolo. Mas não me subiu à cabeça. Pelo contrário. Tive de espezinhar esse ídolo. Eu acho que os ídolos são pouco sãos. Classificam os actores, põem-lhes etiquetas - eu quis fugir a isso.»

«Acho quase um milagre quando, entre duas pessoas, uma não pretende alimentar-se da outra ou não a tenta dominar com o seu poder. É preciso arrancar essas ervas daninhas para ficar só a boa raíz. O que interessa é a troca entre duas pessoas de igual para igual, duas pessoas a par. Sem posse, sem destruição. É tão simples e tão difícil. Não sabemos viver o amor, por isso ele dura pouco. O amor tem uma estrutura frágil, é uma caixinha com qualquer coisa que não é deste mundo, é uma prenda.»

A actriz, falecida aos 89 anos em 27/1/2017, teve na sua carreira cerca de setenta títulos (excluindo os trabalhos para TV). Um dos últimos, de 2012, foi o pungente "Amour", onde aparece ao lado do também octogenário (três anos mais novo) Jean-Louis Trintignant. Eiji Okada, o actor japonês que com ela contracena em “Hiroshima Mon Amour”, faleceu aos 75 anos, em 14 de Setembro de 1995 com um ataque cardíaco. Marguerite Duras também já nos deixou, um cancro levou-a aos 81 anos (a 3 de Março de 1996). Bem como Alain Resnais, que partiu no dia 1 de Março de 2014, com 91 anos, deixando viúva Sabine Azéma, a excelente actriz que participou em muitos dos seus filmes, e com quem estava casado desde 1998.

5 comentários:

Nowhereman disse...

Belissimo texto e imagens para um filme admirável. O verdadeiro cinema passa por aqui.

Billy Rider disse...

Apesar do cinema actual de Resnais já pouco ter a ver com o classicismo dos primeiros anos, continua a ser um enorme prazer assistirmos a cada nova obra que sai - como o último filme, "As Ervas Daninhas", com a parelha-fétiche do realizador, Dussolier-Azéma (esta sua mulher há já muitos anos). Resnais reinventa-se a cada filme, o que é espantoso para quem está quase a chegar aos 90 anos de idade. O Oliveira já é centenário mas esse é um grande chato nos seus processos fílmicos. Ao contrário do Resnais que continua a filmar com a alegria de um jovem de 20 anos.

Álvaro Martins disse...

Curiosamente, ando para o rever. É a seguir ao Marienbad o melhor filme do Resnais.

JC disse...

"Hiroxima" será sempre um dos meus textos de cabeceira.

Rato disse...

Vou aproveitar a saída recente do "Marienbad" em DVD para o rever um dia destes. Vi pela primeira vez os dois filmes quase em simultâneo nos idos de sessenta e nessa altura tive uma reação diametralmente oposta ante os dois. Adorei o "Hiroshima", detestei o "Marienbad". Resultado: tenho revisto periodicamente este filme ao longo dos anos, nunca mais coloquei os olhos em cima do outro. Estou com certa curiosidade de voltar a ver o "Marienbad" por causa de tão longa ausência e também por me ter tornado um fã incondicional do cinema de Resnais.