domingo, setembro 07, 2025

THE MISFITS (1961)

OS INADAPTADOS
Um filme de JOHN HUSTON



Com Clark Gable, Marilyn Monroe, Montgomery Clift, Thelma Ritter, Eli Wallach, James Barton, Kevin McCarthy, Estelle Winwood, etc.

EUA / 124 min / PB / 
16X9 (1.66:1)

Estreia nos EUA a 1/2/1961
Estreia em Portugal a 25/1/1962


Guido: «You have the gift for life, Rosylyn. The rest of us, 
we're just looking for a place to hide and watch it all go by»

Qualquer realizador ambiciona criar pelo menos um clássico durante a sua carreira – um filme que aguente o teste do tempo e seja visto e revisto por sucessivas gerações de cinéfilos. Outros, menos ambiciosos, já se contentam em, por algum motivo, conseguirem gerar um cult-movie – uma espécie de filme B, que também aguenta o passar dos anos, mas cujas qualidades só são reconhecidas por uma pequena minoria.

John Huston conseguiu ambas as coisas com este belissimo filme, rodado logo no início da década de sessenta. Para além de um clássico e de um filme de culto, “The Misfits / Os Inadaptados” é um filme-charneira, pois de certo modo simboliza o fim do “studio system” de Hollywood. Realizado à parte da indústria fílmica, em completa liberdade, o filme define ainda o “fim da linha” para as carreiras de Clark Gable e Marilyn MonroeMarilyn ainda haveria de participar na rodagem de mais um filme (“Something Got To Give”) mas a sua morte prematura aos 36 anos (a 5 de Agosto de 1962), impediria o filme de ser finalizado e abrir-lhe-ia as portas da lenda e da eternidade.



Clark Gable encontraria essas mesmas portas ainda mais cedo, logo a seguir à conclusão da rodagem de “The Misfits”. Faleceu a 16 de Novembro de 1960, na sequência de um ataque cardíaco. O final das filmagens trouxe-lhe um temporário alívio («Working with Marilyn Monroe on "The Misfits" nearly gave me a heart attack. I have never been happier when a film ended»), apesar de reconhecer a grande qualidade das interpretações, quer a de Marilyn («Everything Marilyn does is different from any other woman, strange and exciting, from the way she talks to the way she uses that magnificent torso») quer a sua própria («This is the best picture I have made, and it's the only time I've been able to act»).




Outro grande actor que marca este mítico filme, Montgomery Clift, entraria num acelerado processo de decadência física e profissional, tendo falecido prematuramente a 23 de Julho de 1966, apenas com 45 anos. Marilyn diria dele pouco depois da conclusão das filmagens: «The only person I know who is in worse shape than I am». Por uma vez os tradutores portugueses achariam um título adequado para o filme: “Os Inadaptados” (no Brasil seriam “Os Desajustados”). Efectivamente é de inadaptação que aqui se trata. Inadaptação a um novo modo de vida que começa, encerrando um tempo de glória. Esse tempo de glória, outrora tão repleto de tradições, encontra-se agora agonizante, cercado pelo conformismo e pela apatia. Tenta-se ainda, num derradeiro esforço, alcançar a felicidade. Mas esta teima em fugir, diluindo-se na imensidão de um deserto, algures no Nevada. 



A perseguição aos cavalos rapidamente se revela incongruente e desnecessária para quem conserva ainda a ilusão da possibilidade dessa felicidade. E é essa descoberta que tanto nos emociona naquele epílogo – a liberdade é essencial para quem deseja ainda ser feliz. O plano final, de Roslyn e Gay é disso revelador:

Roslyn: «Which way is home?»
Gay: «God bless you girl»
Roslyn: «How do you find your way back in the dark?»
Gay: «Just head for that big star straight on.
The highway's under it. It'll take us right home»





Com argumento de Arthur Miller, então ainda casado com Marilyn (o divórcio oficial viria a 20 de Janeiro de 1961, apesar de se terem separado imediatamente após o final da rodagem) e filmado poeticamente por um inspirado John Huston (que seria nomeado para o prémio “Directors Guilde of America”), “The Misfits” tem o seu epílogo, como vimos antes, numa longa e dramática sequência no deserto do Nevada onde a estrela Marilyn brilha intensamente sobre tudo e todos. Não tanto pela explosão de revolta («Killers! Murders! You liars! All of you liars! You're only happy when you can see something die! Why don't you kil yourself to be happy! You and your God's country! Freedom! I am not kidding you, you're three sweet damned men!») mas sobretudo pelas mil e uma matizes que conferem ao seu rosto algo de hipnótico e fascinante.



São diversos os grandes-planos desse maravilhoso rosto, mas vale a pena rever várias vezes um deles (felizmente o DVD permite-nos isso), segundos após a libertação do potro selvagem e em que as palavras «Go Home…Go» são proferidas. Essas três palavras, ditas por aquela boca, naquela face, dá-nos, por breves momentos, toda a magia do Cinema. Resplandescente ao longo de todo o filme, não será exagero afirmar que esta  interpretação de Marilyn será talvez o ponto mais alto de toda a sua carreira, apesar de grandes e maravilhosos desempenhos em filmes anteriores.

As imagens da rodagem do filme correram mundo. Obtidas pelos prestigiados fotógrafos da Magnum num ambiente verdadeiramente mítico, impuseram a agência como um grupo de artistas capazes de dar a ver o mundo do cinema para lá das suas imagens promocionais. Os nove fotógrafos, sete homens e duas mulheres, tudo registaram de forma púdica ou indiscreta, fria ou apaixonadamente - Henri Cartier-Bresson, Cornell Capa, Ernst Hass, Bruce Davidson, Erich Hartmann, Dennis Stock, Elliott Erwitt, os homens; Eve Arnold e Inge Morath, as mulheres.



Fizeram centenas de magníficas fotografias, parte das quais tivemos o privilégio de poder ver numa exposição em Lisboa. Aconselha-se ainda o livro “Magnum Cinema” onde, para além dos “The Misfits” se podem apreciar fotografias de dezenas de outros filmes. Transcreve-se de seguida um texto da autoria de Inge Morath, responsável pela agência e com quem Arthur Miller se viria a casar: «Havia cavalos selvagens, as paisagens do Nevada, John Huston e ainda, claro, três actores excepcionais, Clark Gable, Marilyn Monroe e Montgomery Clift. Não podíamos imaginar que eles iriam morrer tão depressa. Sentíamos que havia algo de grandioso. Esperávamos um filme notável, não sabíamos que se ia tornar mítico.



Esta filmagem interessou-me desde o início. Tinha lido na revista Esquire a história de Arthur Miller que serviu de base ao guião. Já tinha trabalhado com Huston, e Monty Clift era um amigo. A Magnum tinha feito um acordo de exclusividade com Frank Taylor, o produtor do filme. Então, por turnos de dois, sucedemo-nos no plateau. Não ficávamos lá mais que duas semanas, para manter a frescura do olhar. Eu formava equipa com Cartier-Bresson. Compreendíamo-nos muito bem e o que era maravilhoso é que nem precisávamos de falar um com o outro. Trabalhávamos juntos e tínhamos sempre a certeza de não fazer nunca a mesma coisa. Havia nesta filmagem uma liberdade que já não existe nos dias de hoje. Portanto, desde que os nossos olhos e pernas fossem suficientemente rápidos, podíamos fotografar tudo o que quiséssemos.



Uma das maiores angústias da produção era saber se Marilyn vinha à rodagem ou não. Quando ela chegava ao plateau, entrava verdadeiramente em cena. Quando o deixava, desaparecia completamente e mais ninguém a via. Trabalhava sempre para a sua imagem. Eu tentava conseguir fotografias em que ela não estivesse em pose. Mexia-se de uma maneira que atraía automaticamente os olhos do fotógrafo.


Clark Gable era muito divertido. Enquanto estava à espera da Marilyn, contava-nos a história dos seus começos no cinema. Um dia disse-lhe que não tinha visto o que acabara de fazer. Ele respondeu-me que tinha usado os olhos para representar. E era verdade, principalmente nas últimas cenas, as que se passam no automóvel. Conheci Arthur Miller na rodagem, mas só o descobri de verdade depois da ruptura com Marilyn. Trabalhei em muitos outros filmes depois daquele, mas nunca voltei a encontrar aquele ambiente especialíssimo, aquela alquimia particular, devido à unidade artística imposta por Huston no plateau, e que afectava tanto os actores, como os técnicos e os fotógrafos.»






sexta-feira, setembro 05, 2025

BONNIE AND CLYDE (1967)

BONNIE E CLYDE
Um filme de ARTHUR PENN

Com Warren Beatty, Faye Dunaway, Michael J. Pollard, Gene Hackman, Estelle Parsons, Gene Wilder, etc.

EUA / 112 min / COR / 
16X9 (1.85:1)

Estreia no CANADÁ, no Festival do Filme de Montréal, a 4/8/1967
Estreia em MOÇAMBIQUE (L.M.) a 30/3/1968 (teatro Scala)





Clyde Barrow: «This here's Miss Bonnie Parker. 
I'm Clyde Barrow. We rob banks"


Filme charneira do final da década de 60, "Bonnie and Clyde" deve grande parte do seu êxito e carisma a uma identidade de propósitos e desespero entre as gerações dos anos sessenta e as da época conturbada da grande depressão económica dos anos 30. Bonnie e Clyde roubavam bancos, ajudavam os camponeses, eram auxiliados por negros e brancos pobres, encarnando em si um ideal de justiça social que a depressão e os seus anos de fome haviam afastado há muito da sociedade norte-americana.

Entrando numa engrenagem de que desconheciam as regras, mas de que suspeitavam o aliciante, Bonnie e Clyde transformaram-se num dos mais famosos casais de foras-da-lei de toda a América. Clyde, de metralhadora em punho e estranhamente impotente no amor; Bonnie, compondo poesia da sua vida aventurosa nos intervalos dos assaltos; ambos personificando a falência de um humanismo que os tornou reais. Eles, e ainda os outros que os rodeiam, os perseguem, prendem, auxiliam, encobrem ou matam, todos compõem o retrato de uma nação, de um povo, de uma época.

O filme deu em 1967 o tiro de partida para a “nova Hollywood”: a geração dos Coppola, Lucas, Spielberg, De Palma, etc., que tomaram de assalto a cidadela dos estúdios e nesse processo rejuvenesceram o cinema americano. O argumento esteve para ser filmado por Truffaut (este declinou-o por já estar comprometido com o filme “Fahrenheit 451), mas acabou por ficar nas mãos de Warren Beatty, que decidiu entregar a direcção a Arthur Penn, cineasta na altura desiludido com os cortes sofridos pelo seu filme "The Chase / Perseguição Impiedosa" e que estava determinado a abandonar o cinema. Mas a história entusiasmou-o. Bem assim como as condições em que a mesma prometia vir a ser rodada: inteira liberdade de acção, assegurada por Beatty, que funcionava como produtor, depois de ter conseguido um adiantamento reduzido de Jack Warner.

Nunca foi segredo para ninguém a dívida do filme de Penn e, por extensão, de toda essa geração de cineastas americanos, para com o cinema europeu, e, sobretudo, a frescura e a espontaneidade da Nouvelle Vague. Mas talvez só agora, a mais de 50 anos de distância, se consiga perceber quão assumida essa dívida foi em toda a feitura de “Bonnie and Clyde”Mesmo antes de sabermos que Benton e o seu (já falecido) co-argumentista David Newman tinham proposto o filme a Truffaut e que eram devotos de Godard, já desconfiávamos que “Bonnie and Clyde era uma versão americana do “A Bout de Souffle / O Acossado” (1959). A publicidade americana da estreia parecia fazer questão de o sublinhar, embora talvez inconscientemente: «Eles são jovens, estão apaixonados... e matam gente»Tal como “O Acossado” de Godard procurava recriar a poesia urbana do film noir também “Bonnie and Clyde” pegava nos lugares-comuns do filme de gangsters para baralhar as pistas de modo inesperado, subvertendo as convenções do género de um modo que faria escola durante os anos que se seguiram.

Veja-se a introdução, os primeiros cinco minutos (que comungo com o próprio realizador o facto desse período de tempo ser a chave de todo o filme): os raccords mal-amanhados, o plano em contraplongé de Faye Dunaway a descer as escadas, a fotografia queimada pelo sol texano, tudo parece sugerir um certo amadorismo de quem quer brincar aos filmes de época sem ter unhas para tocar guitarra. É, evidentemente, deliberado: ao fim desses cinco minutos Penn já esclareceu que não, que não vai ser um filme como os outros, e que estes dois miúdos embevecidos um pelo outro vão olhar para a vida de gangster como uma grande aventura, uma brincadeira de miúdos. Define-se aí em grande parte aquilo que tornou “Bonnie and Clyde” como alegoria da contra-cultura, com o gang Barrow (proletários a quem a Grande Depressão roubara o “sonho americano”) equiparado a uma geração de jovens ainda presa no colete de forças de uma sociedade pouco aberta à diferença e com o Vietname no horizonte.

Intercalando situações burlescas e de cenas de uma violência trágica e envolvente, sente-se o ritmo trepidante de uma balada do velho Oeste, que serve de pano de fundo a toda uma série de perseguições, que inevitavelmente acabam no crepitar das metralhadoras despejando a morte. Propositadamente, o volume de som durante as cenas de tiroteio era mais elevado do que no resto do filme. Como curiosidade anedótica, refira-se que na estreia em Inglaterra, o projeccionista, tendo-se apercebido das diferenças de volume num pré-visionamento, tomou cuidadosamente anotações das partes "mais altas" para durante a projecção poder baixar o volume de som e assim "corrigir" o que pensou tratar-se de um defeito da cópia a ser exibida.

A uma cena de amor impossível nos campos verdes, selvagens e livres, justapõem-se os últimos olhares de um casal vestido de branco crivado de balas e jorrando sangue de mil chagas, sangue vermelho, vivo e quente. A extrema violência da cena final, filmada num ralenti hábil e poético, provocou grande controvérsia na altura, por, segundo alguma crítica moralizante, atrair a simpatia pelo jovem casal de criminosos. É no entanto uma cena cinematicamente muito bela e enfeitiçante, e que se tornou numa referência fundamental para todos quantos nestas últimas décadas tentaram poetizar a violência mostrada nos seus filmes. Pergunte-se a Tarantino, por exemplo, um dos herdeiros legítimos desse tipo de temática.

Após algumas hesitações no que respeita à escolha da actriz que iria viver a personagem de Bonnie (Jane Fonda não aceitou o papel por na altura residir em França e não se querer deslocar aos Estados Unidos), o filme foi rodado no estado do Texas, tendo custado cerca de 2.5 milhões de dólares. A estreia mundial ocorreu no Canadá, no Festival do Filme de Montréal, a 4 de Agosto de 1967 e uma semana depois nos Estados Unidos. A crítica não gostou e o próprio Jack Warner odiou o filme. Mas em Novembro o filme estreia-se na Europa e é um sucesso instantâneo. Os críticos americanos, envergonhados, voltam à plateia e dão o dito por não dito: afinal, escrevem, "Bonnie and Clyde" é um grande filme! Mas Bosley Crowther, no New York Times, diz três vezes que não. Na última foi despedido, após muitos anos de "bons e leais serviços". Foi a última vítima de “Bonnie and Clyde”.

Cite-se ainda a interpretação de Faye Dunaway e Warren Beatty, que fazem de Bonnie Parker e Clyde Barrow dois dos muitos anjos caídos, pessoas desalojadas da sua condição, figuras à procura de um lugar, mas recusando entrar no único jogo que lhe indicam possível. Como secundários, Gene Wilder estreava-se no cinema e Gene Hackman iniciava uma notória carreira com uma nomeação para os Oscars.

"Bonnie and Clyde” tornar-se-ia num fenómeno à escala mundial, acabando nomeado para os Oscars pela própria indústria que começara por lhe torcer o nariz (embora, das nove nomeações que recebeu, apenas tenha concretizado duas, nas categorias “menores” de fotografia e actriz secundária – Estelle Parsons). Do êxito ao mito foi um salto. Bonnie e Clyde surgem em cartazes, discos ("The Ballad of Bonnie & Clyde", interpretada por Georgie Fame, ficaria célebre), propaganda, vestuário, moda. Vendem-se carros, boinas, vestidos, fatos, cartazes, revistas. Warren Beatty e Faye Dunaway invadem todos os domínios, inquietantes...

CURIOSIDADES:

- Classificado em 2007 pelo American Film Institute como o 42º melhor filme de todos os tempos.

- A produtora Warner Brothers, tinha tão poucas esperanças no sucesso do filme que acedeu prontamente à pretensão de Warren Beatty de receber 40% das receitas. O grande sucesso de "Bonnie and Clyde" - cerca de 50 milhões de lucro - foi uma autêntica taluda para Beatty.

- Antes de decidir interpretar ele próprio a personagem de Clyde Barrow, Warren Beatty tinha pensado em Bob Dylan, dadas as parecenças do cantor com o verdadeiro Clyde.

- A célebre cena final foi filmada simultâneamente por quatro câmaras a diferentes velocidades. Dura exactamente 54 segundos.

quarta-feira, setembro 03, 2025

THE BRIDGES OF MADISON COUNTY (1995)

AS PONTES DE MADISON COUNTY
Um filme de CLINT EASTWOOD




Com Clint Eastwood, Meryl Streep, Annie Corley, Victor Slezak, Jim Haynie, Sarah Kathryn Schmitt, etc.

EUA / 135 min / COR /16x9 (1.85:1)

Estreia nos EUA a 2/6/1995
Estreia em Portugal a 29/9/1995




Robert Kincaid: "This kind of certainty comes but once in a lifetime"

"As Pontes de Madison County" é a história de Robert Kincaid, fotógrafo famoso, e de Francesca Johnson, mulher de um agricultor do Iowa. Kincaid, de 52 anos, é fotógrafo da National Geographic - um estranho e quase místico viajante dos desertos asiáticos, dos rios longínquos, das cidades antigas, um homem que se sente em desarmonia com o seu tempo. Francesca, de 45 anos, noiva italiana do pós-guerra, vive nas colinas do Iowa com as memórias ainda vivas dos seus sonhos de juventude. Qualquer deles tem uma vida estável, e no entanto, quando Robert Kincaid atravessa o calor e o pó de um Verão do Michigan e chega à quinta dela em busca de informações, essa estabilidade desaba e as suas vidas entrelaçam-se numa experiência de invulgar e estonteante beleza que os marcará para sempre. Baseado no best-seller de 1993 de Robert James Waller“As Pontes de Madison County” conseguem, nas mãos classicistas de Clint Eastwood, atingir um apaixonante grau de pureza e simplicidade. Como nos seus melhores filmes (e este é sem dúvida alguma um deles) Eastwood opta por uma direcção sóbria, feita de respirações, de compassos, veículos ideais para a propagação das emoções. Longe de querer ser pretensiosamente dramático, Eastwood soube ser sensível na abordagem que fez do magnífico argumento que tinha entre mãos. O resultado é um filme apaixonante em que questões tão vulgares como oportunidades, perdas ou sacrifícios são elevadas ao nível do sublime.


Conforme escreve Maria João Madeira em "O Contador de Histórias" (um artigo sobre os filmes da autoria de Eastwood), «A intensidade emocional do filme vem da depuração, contenção e realismo com que Eastwood a filma, rigorosa e precisamente como sempre, o que no registo do melodrama mais se impõe e ele cumpre. Os olhares, os gestos e os silêncios alimentam a púdica mise-en-scène (não é um melodrama excessivo de tonalidades sirkianas que se trata). O espectro das convenções sociais ocupa o lugar que elas têm (e a personagem secundária da mulher ostracizada como adúltera que se torna a melhor amiga de Francesca, reforça essa ideia reflectindo, por outro lado, o que lhe podia ter estado reservado).»

(...) «Nesta história é masculino o papel daquele que é deixado sózinho e magoado (como ele lhe diz não é monge nenhum mas nunca sentiu por outra pessoa o que sente com ela), é ele quem perde o lugar. A mais citada das cenas, a mais memorável das cenas de "Madison County", exemplarmente filmada no que tem de suspensão e no que tem de suspense, diz isto mesmo quando o filma à chuva como uma figura encharcada, destroçada, já quase espectral, vindo do outro lado da rua para se especar defronte do carro de Francesca e do marido dela antes de se dirigir ao seu carro e seguir à frente deles. À beira de um cruzamento, o semáforo está vermelho. O vidro retrovisor do carro dele deixa ver o fio que ela lhe ofereceu e ele traz ao pescoço. A luz do semáforo demora uma pequena eternidade, durante a qual Francesca, sentada ao lado do marido, vai apertando a maçaneta da porta em gestos de sufocada hesitação. A luz passa a verde e o carro da frente demora a arrancar. Fá-lo por fim, voltando à esquerda. O carro detrás vira à direita. Lá fora a chuva continua torrencial. (Há quem diga que o mundo se divide entre as pessoas que choram durante a projecção desta cena e as que o não fazem).»


«Embora nunca tenhamos voltado a falar um com o outro, permanecemos tão intimamente ligados quanto é possível a duas pessoas estarem-no. Não consigo encontrar palavras para exprimir isto adequadamente. Ele exprimiu-o melhor quando me disse que tínhamos cessado de ser dois seres distintos e que nos tínhamos tornado num terceiro ser formado por nós dois. Nenhum de nós existia independentemente desse ser. E esse ser foi deixado à deriva»

CURIOSIDADES:

- A ponte onde Francesca se encontra com Robert (Cedar Bridge) foi destruída durante um incêndio em 3 de Setembro de 2002.

- Quem pretendia realizar este filme em 1993 era Sydney Pollack, que contava com Robert Redford para o desempenho de Robert Kincaid. Nessa altura, as actrizes pensadas para o papel de Francesca eram, entre outras, Susan Sarandon, Jessica Lange, Barbara Hershey e Angelica Huston.

- A casa de campo usada nas filmagens encontrava-se abandonada há mais de 30 anos, tendo sido completamente restaurada durante a produção do filme.