quinta-feira, dezembro 11, 2014

IT'S A WONDERFUL LIFE (1946)

DO CÉU CAÍU UMA ESTRELA
Um Filme de FRANK CAPRA


Com James Stewart, Donna Reed, Lionel Barrymore, Thomas Mitchell, Henry Travers, Beulah Bondi, Frank Faylen, Ward Bond, Gloria Grahame, H.B. Warner, Frank Albertson, etc.

EUA / 130 min / PB / 4X3 (1.37:1)

Estreia nos EUA a 20/12/1946
Estreia em PORTUGAL a 30/11/1947
(Lisboa, cinema Politeama)
Não existe filme mais apropriado para o Natal do que esta pequena maravilha de Frank Capra. Ao longo das décadas foi certamente  o filme mais programado pelas televisões de todo o mundo para a noite de consoada ou para o próprio dia de Natal. E é no mínimo estranho o facto de "It's a Wonderful Life" ter sido um autêntico flop comercial quando se estreou a 20 de Dezembro de 1946 - em plena época natalícia portanto - na cidade de Nova Iorque. Mas como diz o ditado, «ri melhor quem ri por último» e hoje, passados que são 68 anos (!), "It's a Wonderful Life" (por uma vez bem traduzido em português como "Do Céu Caíu Uma Estrela") aí está, com o mesmo brilho de sempre, a encantar sucessivas gerações de cinéfilos. Não serei portanto original, mas não posso deixar de o sugerir para (mais) esta quadra festiva. Se puderem, mandem vir a versão em blu-ray, que não está bloqueada (região 0), inclui legendas em brasileiro, o documentário "The Making of It's a Wonderful Life" e ainda a versão a cores do filme (esta obviamente perfeitamente dispensável). Deixo-vos com os votos de um Bom Natal e o comentário que o saudoso João Bénard da Costa fez sobre o filme em 1999.


Clarence: «You've been given a great gift, George: 
A chance to see what the world would be like without you»

Em "The Name Above the Title", Frank Capra conta com vagar a génese deste wonderful film. Capra regressava da guerra a Hollywood e tinha que se readaptar a uma capital do cinema que mudara muito (post-guerra quente e pré-guerra fria). Um dia, Charles Koerner entrou-lhe pela porta (porta do recém inaugurado Liberty Films, que Capra fundara com William Wyler e George Stevens para continuar a ter "The Name Above the Title") com meia dúzia de páginas dactilografadas em forma de cartão de Natal que continham o script que Dalton Trumbo extraíra do conto de Van Doren Stern "The Greatest Gift". Dou a palavra a Capra: «Era a história que toda a vida procurara. Uma cidadezinha. Um homem. Um homem bom, ambicioso. Mas tão preocupado em ajudar os outros, que deixava perder as oportunidades da vida. Um dia, perdeu a coragem. Desejava nunca ter nascido. E esse desejo era-lhe satisfeito. Meu Deus, que história! O género de história que fará dizer às pessoas quando eu fôr velho e estiver a morrer: foi ele quem fez "The Greatest Gift"». Capra comprou imediatamente os direitos mas encarregou o casal Hackett - Albert Hackett e Frances Goodrich - (que tinham feito a série do "Homem Invisível" e depois escreveriam musicais como "The Pirate", "Summer Holiday", "Easter Parade", "Give a Girl a Break", "Seven Brides for Seven Brothers" ou a série dos "Pais da Noiva") de reescrever a história. Para o protagonista escolheu imediatamente "o único actor que podia fazer aquele papel": Jimmy Stewart, como Capra, no seu primeiro filme post-guerra. E rodou "It's a Wonderful Life" em quatro meses (de Abril a Agosto de 46) "num orgasmo ininterrupto", Quando o concluiu estava firmemente convencido de ter feito «the greatest film I have ever made. Better yet I thought it was lhe greatest film anyboby ever made».

 Mas a América (e o mundo) tinham mudado muito. E se o filme ainda valeu a Capra a sua sétima (e última) designação para o Oscar (que perdeu a favor de outra produção da Liberty Films, "The Best Years of Our Lives" de Wyler), como designação valeu a James Stewart, o sucesso foi bastante relativo. Não faltou quem dissesse que o Capra-corn se estava a tornar cada vez mais corn e menos Capra e quem escrevesse que «a história era tão piegas, que roçava o infantilismo». Bosley Crowther no New York Times chamava-lhe «um repertório de banalidades melodramáticas». E nenhum anjo desceu do céu para o ajudar no meio dessa irónica indiferença. Capra ainda fez mais meia dúzia de bons filmes, mas o seu inconfundível touch chegou aqui ao final. Nunca mais houve um Capra assim. Mas o tempo, nas suas muitas voltas, veio dar razão ao cineasta. 53 anos depois," It's a Wonderful Life" é um cult-movie e o mais amado dos filmes de Capra. Danny Peary na sua obra sobre os cult-movies afirma mesmo acreditar que qualquer inquérito o incluiria entre os mais populares filmes americanos de sempre, ao lado do "Feiticeiro de Oz", de "E Tudo o Vento Levou", de "Casablanca", de "Música no Coração" ou de "A Guerra das Estrelas"

Para mim, "It's a Wonderful Life" é paixão antiga desde que o vi no Politeama, tinha eu doze anos. E muitas vezes, ao longo da vida, me tenho lembrado da moral desta fábula (corn ou not corn) e a tenha contado a gente que repete, com James Stewart, que «era melhor não ter nascido». E nunca consegui deixar de chorar no tear-jerking finale, «admittedly one of the most sentimental endings of all time» (estou a citar Danny Peary). Mas se esse final, após a "ressurreição" de James Stewart, com "The Bells of Saint Mary" no cinema da terra (second feature), a dedicatória no Tom Sawyer, a música de Natal, os milhões de merry christmas, os milhares de dólares a cair no cesto e os milhares de amigos a entrar é, de facto, o mais tear-jerking e o mais natalício dos finais de um filme (que deve ser o que mais vezes foi programado pelas televisões para a noite de Natal) não penso, como a maioria dos críticos, que este filme seja o mais optimista dos filmes de Capra. Já em tempos comparei a estrutura das suas obras precedentes (sobretudo "Mr. Smith Goes to Washington") com a dos westerns clássicos. O cowboy que veio parar a uma cidade de "duros" , apanha   muita "porrada"  e no final vence o "mau" da fita, no último duelo.

Nesses filmes, esse herói, chamasse-se Gary Cooper ou James Stewart, vencia sózinho ou acompanhado por uma minoria de "bons", a princípio aterrorizada e depois, à medida que o "herói" crescia, mais desenvolta nos seus auxílios. Aqui, neste filme com que se encerra o ciclo do great old Capra, James Stewart vence também, mas precisa de uma ajuda de que até aí jamais precisara: a do anjo de 293 anos chamado Clarence Goodbody que, de resto, desceu à terra não apenas para o ajudar, mas para ganhar as asas que em todo esse tempo ainda não tinha conseguido alcançar. O personagem é prodigioso, Henry Travers é-o também, mas essa "descida à terra" não nos deve fazer esquecer que todo o filme é visto do ponto de vista do céu. Ao princípio estamos na terra («You are now in Bedford Palls») na mesma noite de Natal do fim, com a neve a cair e os sons do Natal. 

Ouvimos em off orações e a câmara vai até às estrelas, onde Clarence trata Deus por "Sir". Deus tem uma voz de patrão, firme e dura, manda-o sentar e dá-lhe uma hora para ele se vestir. E quando ele está "sentado" (a câmara sempre nas estrelas, sem personagens) convida-o para um "bom filme": a vida de George Bailey desde o dia, aos sete anos, em que salvou o irmão mais velho de morrer afogado, até à noite de Natal que é tempo de todo o filme. Ao princípio, não se vê nada (quem não tem asas, não vê dos outros planetas) até que a imagem foca "o começo do filme". E quando passamos da infância à idade adulta, de Bobby Anderson a James Stewart, Deus  diz a Clarence «Take a good look on him» e o plano imobiliza-se em paralítico com James Stewart de braços todos abertos, no arquétipo da imagem capriana, que também no cinema nunca mais voltou a ter (depois é o James Stewart de Mann, de Hitchcock, de Ford, tão genial como sempre, mas bem diferente como personagem). É como se Capra nos dissesse também que nunca mais ninguém o iria ver assim, como fora em "You Can't Take It With You" ou como fora em "Mr. Smith".

A história da vida de George Bailey é a história de coisas tão bonitas, como Gloria Grahame a fazer parar o trânsito, o graduation ball de 1928, com James Stewart a dançar o Charleston como Fonda dançava a valsa no "Young Mr. Lincoln"; aquele espantoso mergulho colectivo; Donna Reed "the prettiest girl in town"; o roupão caído, ela atrás dos arbustos e a morte do pai; os discursos de Stewart (sempre vagamente demagógicos); o "point me in the right direction"; o telefonema a três e o beijo a dois (a câmara sem se mexer, num dos mais prodigiosos planos que alguma vez alguém assinou); a "wedding night"; e o beijo de Ernie a Bert (essa sequência é inadjectivável); James Stewart, o charuto e o aperto de mão a Barrymore; a guerra em filigrana, e tanto mais. Mas é também, em surdina, o elogio do sacrifício e por breves apontamentos (um olhar de Stewart para o irmão ou para a mãe, o espantoso e patético personagem de Thomas Mitchell) a insinuação que basta um leve toque e podemos ver o negativo de tudo isso. E a noite da inexistência de Stewart é esse negativo. 

Os mesmos geniais secundários, fraternais e solidários, "mudam de filme" e quem vence são outros arquétipos deles, patentes nos casos de Beulah Bondi, Ward Bond, Frank Foylen. Aparentemente, esses eram os que não tinham razão para mudar. Se percebemos que o farmacêutico tivesse ido parar 20 anos à cadeia, não fosse George, se percebemos que o irmão tivesse morrido, não fosse George, se percebemos (já mais forçadamente) que Donna Reed tivesse ficado solteirona e de óculos, não fosse George, porque mudaram tanto todos os outros, porque são todos tão agrestes e rudes? E - o que é mais - porque mudou a cidade toda (mudou até de nome) convertida num vasto lupanar, entre strip-teases e luzes agressivas? E por que é que o único personagem que George não re-visita é Lionel Barrymore, o único que não podia ter mudado? Pode um homem só transformar tanto a vida de todos? Capra diz-nos que sim, mas diz-nos que sim, não no real, mas no "filme mostrado" por Deus a Clarence e, depois, na noite que resultou do "truque" do Anjo. De certo modo, "It's a wonderful life" (mas no cinema...), "it's an awful city", mas com batota.

É por isso que a explosão final é tão forte. Porque tudo o que até aí fora um pouco mágico (coisa de anjos e estrelas) e encarna naquela noite de Natal, em que a presença do Anjo é apena a de uma discreta campainha, sob a força do plano de George com os filhos ao colo e dos dólares que vêm de tudo e de todos. Para um tal hino à vida e ao amor (a palavra final da dedicatória de Clarence) foi preciso ir até às estrelas. Forçar um pouco a mão ao destino, para melhor tentar a liberdade. Não se trata de viajar no passado para descobrir a inelutabilidade dele, mas de não sair da mesma noite, para mostrar como o futuro a modifica. Aparentemente construído em flashback, este filme desfila como as imagens dele. A vida na terra, mesmo em Bedford Falls, é bem mais maravilhosa e mais comovente do que a vida dos anjos que a deixam (apesar das asas ganhas) com uma secreta nostalgia. No céu, não há Natais. Esse é o lote dos homens e é por isso que "it's a wonderful life". Por mais simpático que o anjo seja, não temos pena nenhuma de o ver desaparecer. O nosso amor é George Bailey - James Stewart, em paralítico ou na agitação frenética da imensa alegria final.
(João Bénard da Costa, 1999)


CURIOSIDADES:

- A primeira versão do filme terminava com a canção "Ode to Joy", que depois foi substituída por "Auld Lang Syne"

- James Stewart estava nervoso quando filmou a cena do beijo ao telefone, com Donna Reed. No entanto, o actor acabaria por fazer a cena num único take e de tal modo persuasivo, que a cena teve de ser encurtada para evitar problemas com os censores da época.

- Jean Athur foi a primeira escolha de Frank Capra para o papel de Mary. No entanto a actriz já se encontrava comprometida para uma peça na Broadway e teve de declinar o convite

- A piscina situada por baixo do ginásio existia na realidade (não foi trucagem), e pertencia ao Liceu de Beverly Hills, em Los Angeles

- Dalton Trumbo, Dorothy Parker e Clifford Odets colaboraram todos eles no argumento do filme, sem que os seus nomes alguma vez tenham sido citados.

- Em 2006, o American Film Institute votou "It's a Wonderful Life" como o filme mais inspirador de todos os tempos. No ano seguinte, o mesmo AFI classificou-o em 20º lugar na lista dos melhores filmes de sempre

- Apesar de centrado na época natalícia, o filme foi rodado em pleno Verão, debaixo de altas temperaturas

- Filme favorito de James Stewart e Frank Capra

- Frank Capra ganhou o Globo de Ouro pela realização e o filme teve 5 nomeações para os Óscares, nas categorias de Director, Filme, Actor Principal, Som e Montagem



LOBBY CARDS:

quinta-feira, março 06, 2014

ALAIN RESNAIS: BIO-FILMO

Nascido a 3/6/1922, em Vannes, França
Falecido a 1/3/2014, em Paris, França

Alain Resnais morreu com 91 anos (faria 92 em Junho), ainda plenamente activos e criativos. O seu último filme, de título profundamente “vitalista” (“Amar, Beber e Cantar), teve a sua estreia mundial há menos de um mês, no Festival de Berlim. E Resnais estava, certamente, num dos picos da sua vitalidade criativa, fazendo suceder, ao longo das últimas duas décadas, uma série de filmes que pareciam cada vez mais jovens, mais livres, mais irreverentes, mais solitários no caminho que percorriam mas sempre, sempre, terrivelmente vivos enquanto expressão de um enorme gozo no acto de fazer (e dar a ver) cinema brincando com as suas convenções.


A obra de Resnais impressiona também por esta longevidade, mas nisso ele não estava sozinho. Vem de uma geração de cineastas que, como os pintores, viveu muito tempo: Rohmer ou Marker, mas também entre os ainda vivos Rivette, Agnès Varda ou Godard, todos actualmente com mais de 80 anos e os dois últimos ainda em plena actividade. A obra de Resnais impressiona também por isto, dizíamos: os seus filmes testemunharam mais de meio-século, entre os anos 40 do século XX e a segunda década do século XXI. E num cineasta que tanto tratou da questão da “memória”, nada parece mais natural do que ver-se na sua obra, igualmente, uma inscrição da memória, da memória pessoal e da memória colectiva de um tempo.


Um dos seus filmes fundamentais, pedra angular de toda uma tradição da modernidade cinematográfica, foi há bem pouco tempo reavivado pela distribuição portuguesa. Falamos de Hiroshima, Meu Amor, que recentemente voltou às salas em Portugal, e que em 1959, juntamente com os 400 Golpes de François Truffaut, serviu para certificar o nascimento da nouvelle vague - e isto apesar de a história de Resnais com a nouvelle vague ser mais uma história paralela do que propriamente o registo de uma presença, ou de um sentimento de pertença ao eixo central desse movimento.


Como no caso de Chris Marker, teria sempre havido Alain Resnais mesmo que nunca tivesse havido nouvelle vague. O seu percurso iniciara-se antes, e segundo coordenadas razoavelmente diferentes do percurso seguido pelos “cahieristas”, Godard, Truffaut e todos os outros. E se Hiroshima, por todas as razões, foi o primeiro grande momento da afirmação de Resnais, convém chamar a atenção para a notável série de curtas ou médias metragens que precederam esse título. 


Feitas entre a segunda metade do anos 40 e os anos 50, lançaram muitas das bases temáticas e mesmo formais do que seria a obra futura do cineasta. Nelas se encontra, já, uma consistente aproximação do cinema a outras artes (os filmes sobre pintores e pintura, Van Gogh, Gauguin, a Guernica...) em cruzamento com questões propriamente relacionadas com a História e com a memória – é o caso de Les Statues Meurent Aussi, que “revê” o colonialismo à luz da arte africana; é o caso de Toute la Mémoire du Monde, sobre uma biblioteca como acumulação de saber e do saber, como, justamente, “toda a memória do mundo”; e é muito especialmente o caso de Noite e Nevoeiro, feito em 1955, ainda hoje um título absolutamente capital na história do tratamento cinematográfico do Holocausto, e de Auschwitz em particular.


Resnais foi sempre um experimentador e, como vimos, alguém interessado em relacionar o cinema com outras disciplinas, artísticas ou de pensamento científico (o caso evidente de O Meu Tio da América, concebido em referência ao trabalho teórico do psicólogo Henri Laborit). Uma das expressões mais evidentes desse interesse foi a sua associação com escritores: Marguerite Duras, logo nessa primeira longa que foi Hiroshima, e logo a seguir Alain Robbe-Grillet, com quem concebeu outro dos seus títulos lendários, O Último Ano em Marienbad


Não se tratava meramente de “adaptar” obras literárias, e de resto Resnais disse várias vezes que nunca adaptaria um romance ao cinema (promessa que veio, muito recentemente, a não cumprir, mas o princípio geral manteve-se durante décadas) mas de trazer para o próprio tecido do filme, e para a sua “lógica de fabrico”, um contributo diferente, não tradicional nem baseado numa tradição de cinema, com incidências ao nível formal, e muito especialmente no que toca à forma de narrar – Hiroshima, Marienbad, o belíssimo Muriel ou o Tempo de um Regresso (há pouco tempo editado em DVD em Portugal), são filmes que, de facto, inauguram qualquer coisa, e trabalham uma forma de narrar, de estruturar a narração, com poucos ou nenhuns precedentes cinematográficos. Convém dizer, até, que foi depois das experiências com Resnais que quer Marguerite Duras quer Alain Robbe-Grillet se descobriram também como cineastas em nome próprio, tendo construido, qualquer um deles, obras fílmicas altamente significativas, em natureza e em extensão.


O trabalho sobre a narração, bem exemplificado por estas colaborações com escritores (outro foi Jorge Semprun, mais tardiamente, e talvez com resultados não tão marcantes), é um dos eixos centrais do cinema de Resnais. E um eixo que se exprime ainda através do seu interesse em trabalhar sobre formas narrativas eminentemente populares, sobre lógicas de “género”. A ficção científica em Je t'Aime, Je t'Aime, nos anos 60, o filme histórico em Stavisky” (nos anos 70), ou, talvez o exemplo mais “programático” de todos, Mélo, nos anos 80, filme que leva logo no título (Mélo, em francês, é a abreviatura coloquial de melodrama) a identificação do género em que se pretende instalar e sobre o qual quer trabalhar.


Tão interessado pela mais densa profundidade intelectual como pelo mais banal espectáculo popular - “combinação” que de algum modo alimenta a generalidade destes seus últimos filmes – também não lhe escapou o boulevard e o cançonetismo (É Sempre a Mesma Cantiga, nos anos 90), nem evidentemente o teatro. Um dos seus filmes mais importantes é por certo o díptico Smoking / No Smoking, estreado em 1993 e concebido a partir de uma peça do dramaturgo inglês Alan Ayckbourn (autor a que Resnais voltou para Corações, em 2006). A estrutura desse filme, baseada numa série de suposições (“e se...”) criadas e imaginadas a partir de uma situação de base, numa espécie de interminável ficção “alternativa” à própria ficção, condensa possivelmente todas estas preocupações de Resnais: as questões formais, as questões de “género”, a invenção sobre a narrativa e sobre os seus caminhos. Mas também, tema que cruza a sua obra e é muito devedor das suas paixões intelectuais da juventude (o surrealismo, de cujo “pai”, André Breton, Resnais sempre se afirmou “discípulo”), a questão da “imaginação”, da contiguidade, sem distinção, de mundos reais e mundos imaginados, de mundos vividos e mundos sonhados, de uma realidade “alternativa” ou “hipotética” directamente implantada na realidade “real”.


Tinha a sua troupe, actores que o acompanhavam e se repetiam de filme para filme, alguns deles tornados absolutamente indissociáveis do universo “resnaisiano”: Pierre Arditti, André Dussollier ou Sabine Azéma, com quem era casado. Agnès Jaoui e Jean-Pierre Bacri, que com ele trabalharam em É Sempre a Mesma Cantiga, aprenderam tudo com ele, e ainda não deixaram de fazer variações sobre os “mosaicos” narrativos de Resnais. Há 36 anos, em Providence, Resnais fizera o seu filme sobre o envelhecimento e a morte, em jeito de “comédia negra”. O exorcismo teve o seu efeito: não morreu decrépito, não morreu incapaz, pelo contrário morreu no auge, e em plena festa. Comer, beber e cantar. Sim, vimos tudo com Alain Resnais.
(Luis Miguel Oliveira in jornal "Público", 3/3/2014)


FILMOGRAFIA:

2014 – Aimer, Boire et Chanter (+argumento)
2012 – Vous N’Avez Encore Rien Vu (+argumento)
2009 – Les Herbes Folles / As Ervas Daninhas (+argumento)
2006 – Coeurs / Corações
2003 – Pas Sur La Bouche / Nos Lábios Não
1997 – On Connait La Chanson / É Sempre a Mesma Cantiga
1993 – Smoking, No Smoking / Fumar, Não Fumar
1989 – I Want To Go Home / Quero Ir Para Casa
1986 – Mélo (+argumento)
1984 – L’Amour à Mort / Amor Eterno
1983 – La Vie Est Un Roman / A Vida é Um Romance
1980 – Mon Oncle d’Amérique / O Meu Tio da América
1977 – Providence
1974 – Stavisky… / Stavisky, o Grande Jogador
1968 – Je T’Aime, Je T’Aime / Amo-te, Amo-te (+argumento)
1966 – La Guerre Est Finie / A Guerra Acabou
1963 – Muriel Ou Le Temps d’un Retour / Muriel, ou o Tempo de um Regresso
1961 – L’Année Dernière à Marienbad / O Ano Passado em Marienbad
1959 – Hiroshima, Mon Amour / Hiroshima, Meu Amor

quarta-feira, março 05, 2014

ON CONNAIT LA CHANSON (1997)

É SEMPRE A MESMA CANTIGA
Um filme de ALAIN RESNAIS



Com Pierre Arditi, Sabine Azéma, Jean-Pierre Bacri, André Dussolier, Agnès Jaoui, Lambert Wilson, Jane Birkin, etc.

FRANÇA / 120 min / COR / 16X9 (1.85:1)

Estreia em FRANÇA a 12/11/1997
Estreia em PORTUGAL a 25/9/1998 
(Lisboa, cinema Nimas)


LA MUSIQUE AU TRAVAIL

Autor clássico do moderno cinema francês, experimentador incansável, Alain Resnais continua a interessar-se pela dimensão musical dos filmes. Desta vez, decidiu mesmo acrescentar canções à banda sonora – uma maravilha! Face a este muito musical "On Connait La Chanson", torna-se quase inevitável recordar que, em 1991, antes de se abalançar ao fabuloso díptico que foi "Fumar / Não Fumar", Alain Resnais dirigiu uma média-metragem destinada à televisão e à edição videográfica intitulada "Gershwin", uma espécie de ensaio sobre o compositor americano, que fazia parte de uma série, a “Enciclopédia Audiovisual”.

Na obra de Resnais, este ensaio tem um lugar especial, fazendo realçar aquilo que tem estado sempre presente nela, ou seja, a sua dimensão musical, que se vai tornando mais importante filme após filme, para se tornar dominante nos mais recentes. "Gershwin" poderá servir de eventual baliza nesta evolução, mas o espectador atento que tenha acompanhado a obra do cineasta observou certamente como a música, em Resnais, tem sido um elemento cada vez mais presente e dominador.

Se nos anos 50 / 60 os movimentos de câmara de "Hiroshima Meu Amor" e "O Último Ano em Marienbad" tinham uma componente musical, em filmes mais recentes como "A Vida É um Romance" e "Amor Eterno" a música adquire uma função diegética aliada à pesquisa estética que Resnais nunca abandona. Tal função era ainda mais destacada em "I Want To Go Home" (entre nós apenas visto na televisão), título imediatamente anterior a "Gershwin".

"Fumar / Não Fumar" e este "On Connait La Chanson" surgem inteiramente sob o signo das melodias. Se não se canta no primeiro, as imagens (e a música recorrente) de transição de sequência para sequência funcionavam como melodias de passagem, de demarcação (um pouco à maneira das canções de "Ondas de Paixão", de Lars von Trier), espécie de refrões que dividem as sequências em estrofes.

O que "On Connait La Chanson" se faz é, de certo modo, a mesma coisa, mas em vez das melodias servirem de transição estão agora incluídas na história, cumprindo uma espécie de função metonímica, colocando, de repente, na boca (ou cabeça) dos personagens uma música popular, daquelas que constituem um património pessoal (e colectivo) guardado na memória de cada um.

Em certos momentos, e em certas situações, às vezes acode-nos um acorde ou um fragmento de uma cantiga que nos ficou na memória em determinado tempo. E surge-nos como? Exactamente através da voz de que nos lembramos de ter ouvido entoá-la (daí a utilização do playback). É desta forma que as canções surgem em "On Connait La Chanson" , pedaços e fragmentos delas, consoante a personagem e o momento em que ela se encontra, verdadeira música do tempo, tanto daquele em que decorre a acção do filme, como o do passado do personagem que a evoca.

O processo não é novo? De facto não é. E Resnais não se esquece de o referir na legenda de abertura em que dedica o filme a Dennis Potter, escritor, argumentista e realizador inglês falecido há pouco tempo. Muitas coisas se viram já na televisão criadas por Potter com este processo, de "The Singing Detective / O Detective Cantor" a "Lipstick On Your Collar / Bâton no Colarinho", passando pela obra prima que é "Pennies From Heaven / Dinheiro do Céu", que de série televisiva passou a filme dirigido por Herbert Ross. Resnais fez "On Connait La Chanson" da mesma forma, mas importa sublinhar que não se trata de uma mera cópia do modelo. Trata-se, na verdade, de uma perfeita confluência de estilos, um encontro feliz de diversas matérias e registos narrativos.

"On Connait La Chanson" é um filme irónico, divertido, pitoresco, percorrido por uma imensa ternura pelas suas personagens, mesmo quando as mostra a luz menos favorável (veja-se a figura composta por Lambert Wilson) ou quando se dizem coisas mais amargas. Neste aspecto, destaque-se toda a fabulosa sequência final, onde a câmara passa como uma medusa (numa imagem que vai servindo de ligação entre as várias cenas) de um grupo humano para outro, de uma emoção para outra.

Vencedor de 7 Césars (Filme, Argumento, Montagem, Som, Actor Principal - André Dussolier e Actores Secundários - Jean-Pierre Bacri e Agnès Jaoui), o filme teria ainda mais 5 nomeações para os mesmos Césars (Realização, Música, Direcção Artística, Actriz Principal - Sabine Azéma, e Actor Secundário - Lambert Wilson). Além dos Césars foi o vencedor do prémio Louis Delluc e foi ainda nomeado para o Urso de Ouro do Festival de Berlim. A primeira exibição teve lugar a 12 de Novembro de 1997, em França, e a estreia em Portugal ocorreu quase um ano depois, no cinema Nimas em Lisboa, a 25 de Setembro de 1998.

Indicam-se de seguida todas as canções (e respectivos intérpretes) trauteadas durante o filme, algumas apenas por breves segundos:

- "J'ai deux amours" - Joséphine Baker
- "Paroles...Paroles" - Dalida et Alain Delon
- "Et moi dans mon coin" - Charles Aznavour
- "C'est dégoûtant mais nécessaire" - Koval
- "Afin de plaire à son papa" - Simone Simon
- "Je ne suis pas bien pourtant" - Gaston Ouvrard
- "Je me donne" - Albert Préjean
- "J'aime les filles" - Jacques Dutronc
- "Déjà vu" - Michel Sardou
- "Nathalie" - Gilbert B
écaud
- "Dans la vie faut pas s'en faire" - Maurice Chevalier
- "Et le reste" - Arletty et Aquistapace
- "Je m'en fous pas mal" - Edith Piaf
- "Vertige de l'amour" - Alain Bashung
- "L'école est finie" - Sheila
- "Je suis malade" - Serge Lama
- "Avec le temps" - Léo Férré
- "Avoir un bon copain" - Henri Garat
- "Quoi?" - Jane Birkin
- "Résiste" - France Gall
- "Amusez-vous" - Albert Préjean
- "La tête qu'il faut faire" - Henri Garat
- "Sous les jupes des filles" - Alain Souchon
- "La dernière séance" - Eddy Mitchell
- "La plus belle pour aller danser" - Sylvie Vartan
- "Je suis venu te dire que je m'en vais" - Serge Gainsbourg
- "Je vous dérange" - Eddy Mitchell
- "Ça c'est vraiment toi" - Téléphone
- "Quand on perd la tête" - Dranem
- "Ma Guele" - Johnny Hallyday
- "Mon p'tit loup" - Pierre Perret
- "Le mal aimé" - Claude François
- "J'veux pas que tu t'en ailles" - Michel Jonasz
- "Ce n'est rien" - Julien Clerc
- "Chanson populaire" - Claude François
- "Le blues du blanc" - Eddy Mitchell