Gerido por Pedro Bandeira Freire, o Quarteto teve a particularidade de nascer em 21 de Novembro de 1975, quando os ventos da Revolução de Abril começavam já a amainar. Localizado na Rua Flores do Lima, nº 16, uma rua sem saída paralela à Av. dos EUA (cheguei a morar no prédio em frente, no nº 125, quando tinha os meus 11 anos), o Quarteto foi o primeiro multiplex do país: a sua divisa tornou-se rapidamente num slogan querido de todos os cinéfilos: "4 Salas / 4 Filmes". Porque a principal característica daquele saudoso espaço era a atmosfera de cinefilia que por lá se respirava. As salas podiam ser pequenas (716 lugares no total), os écrãs diminutos e as condições de projecção deficientes; mas nada disso importava muito: quem gostava de bom cinema sentia-se em casa, tanta era a variedade de títulos constantemente à disposição (e quase sempre em exclusivo). Quando se entrava, a bilheteira ficava logo ali à esquerda, e o bar mais ao fundo, à direita. As 4 salas distribuíam-se por 2 pisos: duas na cave e as outras duas no 1º andar.
Os 4 filmes com que a programação do Quarteto arrancou foram "Um Filme Doce", de Dusan Makavejev, "E Deram-lhe uma Espingarda", de Dalton Trumbo, "S. Miguel Tinha um Galo", dos irmãos Tavianni e "Amor em Tons Eróticos", de Mai Zetterling. Mas lembro-me de muitos outros, aqueles que contribuíram decisivamente para a minha formação cinéfila: "O Menino" e o "Império dos Sentidos" de Nagisa Oshima, "Delícias Turcas", de Paul Verhoeven, "Taxi Driver" de Martin Scorsese, "As Asas do Desejo" de Wim Wenders, "Inserts" de John Byrum, "Nós Por Cá Todos Bem" de Fernando Lopes (cineasta falecido a 2 de Maio de 2012), "Alien, o 8º Passageiro" de Ridley Scott, "Dinheiro do Céu" de Herbert Ross, "Noites Escaldantes" de Lawrence Kasdan e muitas, muitas reposições ("A Memória do Cinema"), ciclos temáticos, sessões da meia-noite, eu sei lá...
Foi lá que aconteceu um dos mais espantosos sucessos do pós 25 de Abril com um filme tão difícil como "A Religiosa" [1966], de Jacques Rivette. De recordar ainda outras coisas impensáveis hoje em dia como a estreia do "All That Jazz" [1979], de Bob Fosse, não apenas em exclusivo, mas... nas quatro salas! Pedro Bandeira Freire (falecido a 16 de Abril de 2008, com 68 anos), lutou como pôde para salvar o seu cinema; mas depois de muitos anos a remar contra a maré da burocracia deste país, acabou por desistir. A 16 de Novembro de 2007, o espaço foi encerrado no seguimento de uma vistoria da Inspecção-Geral das Actividades Culturais: não reunia as condições de segurança exigidas por lei. A vereadora da cultura da Câmara Municipal (que chegou a receber Pedro Bandeira Freire pouco antes deste falecer) admitiu não haver dinheiro para comprar o espaço: «a Câmara de Lisboa gostaria de o manter, ou pelo menos preservar a sua memória. O que podemos tentar fazer é classificar o espaço como de interesse cultural da cidade, impedindo que se altere o fim para que foi criado. Estamos a ponderar essa hipótese, mas ainda não estabelecemos negociações.» Até hoje...
Transcreve-se de seguida, por curiosidade, a auto-apresentação de PBF no seu livro "Entrefitas e Entretelas", editado em Abril de 2007, cerca de um ano antes da sua morte, na sequência de um AVC: «O abaixo assinado Pedro Bandeira Freire nasceu a 2 de Agosto de 1939. Ou seja, é material robusto e do melhor, fabricado antes da guerra. Com esforço e tenacidade quase terminou o Curso do Colégio Militar. Licenciado em Gestão de Sentimentos, tem o Mestrado de Relações Públicas e é Doutorado em Filosofia de Vida. Não tendo habilitações para fazer alguma coisa de útil (o mesmo é dizer que não sabia nada de nada), dedicou-se a fazer um pouco de tudo. Uma das suas grandes qualidades - a preguiça! É assim que, depois de colaborar em jornais e revistas, funda a livraria Opinião. Não lhe bastou e, inspiradamente, anos mais tarde dá à luz um cinema - O Quarteto. Numa de poesia, vai publicando: 8 livros e continua a insistir. Dá-lhe para o teatro e publica 12 peças e 1/2, mais 4 do que os filmes do Fellini. Rádio e televisão? Leva muitos quilómetros de programas. Quanto ao cinema teve argumentos e realizou duas metragens (curtas, mas de boa vontade). Foi amestrado, caricaturado, amado e odiado, representado, jurado, letrista, premiado, censurado, enganado e faz os possíveis, embora sem obter resultados, por ser feliz. Espera lá chegar se para tanto tiver engenho e arte. Entretanto vai fazendo pela vida...»
5 comentários:
Verdadeira aula de história.......estou adorando.
Sem palavras, mas com algumas lágrimas. Os meus 70 anos agradecem este maravilhoso trabalho.
Saudades do Quarteto, muitas sessões da meia-noite assisti nesse cinema.
As sessões duplas da meia noite eram uma coisa de outro mundo!
Fui lá ver apenas um único filme o Filadélfia de Tom Hanks
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