segunda-feira, junho 23, 2025

AVANTI! (1972)

AMOR À ITALIANA
Um Filme de BILLY WILDER



Com Jack Lemmon, Juliet Mills, Clive Revill, Edward Andrews, Gianfranco Barra, etc.

EUA-ITÁLIA / 144 min / COR / 
16X9 (1.85:1)

Estreia nos EUA a 17/12/1972
Estreia em Portugal (Lisboa) a 11/10/1973 (cinema S. Jorge)




J.J. Blodgett: «I don't object to foreigners speaking a foreign language. 
I just wish they'd all speak the same foreign language»

Uma das melhores características dos filmes de Billy Wilder é o nunca se saber se deverão ser catalogados como dramas ou como comédias, embora sejam invariavelmente muito divertidos. Herdeiro directo de um Lubitsch que venerava, Wilder sempre se divertiu a sublinhar os aspectos mais frágeis da natureza humana. “Sabrina” (1954), “Love in the Afternoon” (1957), “The Apartment” (1960) ou “The Fortune Cookie” (1966) constituem pinturas da cobiça e da ambição do poder de rara dureza, dentro da comédia americana. Por outro lado, em filmes como “The Seven Year Itch” (1955), “Some Like It Hot” (1958), “Irma La Douce” (1963) ou “Kiss Me, Stupid” (1964), o que se encontra em destaque é a visão muito pouco lisonjeira de Wilder relativa à atitude dos seus concidadãos perante o sexo.

Este “Avanti!” de 1972 (um filme que me traz uma rara e estranha sensação de felicidade sempre que o revejo - e por isso o amo incondicionalmente) tem um pouco de tudo, é uma brilhante e deliciosa comédia romântica, pincelada de humor negro, e onde Wilder corrosivamente se ri (e nós com ele) dos clichés que povoam as mentes dos cidadãos americanos. Quinta colaboração de I.A.L. Diamond e Jack Lemmon com Wilder, “Avanti!” é baseado na peça homónima de Samuel Taylor e fala-nos da viagem dum industrial de Baltimore, Wendell Armbruster III (Jack Lemmon) à ilha de Ischia, em Itália, onde vai buscar o corpo do seu pai, recentemente falecido num desastre de viação. Lá chegado, descobre atónito que no veículo sinistrado se encontrava a amante do pai, também falecida, e cuja existência desconhecia por completo. Rapidamente se apercebe que não se trata de um caso esporádico mas que efectivamente existia uma longa relação de dez anos entre os dois, que todos os anos se encontravam no mesmo hotel, onde já eram figuras populares, respeitadas por todo o pessoal. Irritado por essa inesperada revelação e pela lentidão da burocracia italiana, Wendell tem ainda que lidar com Pamela (Juliet Mills), a filha dessa mulher, que insiste para o casal ser enterrado lado a lado em solo italiano. A intransigência inicial de Wendell vai esmorecendo no contacto diário com Pamela, acabando por se transformar numa nova relação de amor que no futuro irá prolongar a história dos respectivos progenitores.


Mesmo com toda a indulgência do mundo dificilmente se percebe porque é que este magnífico filme de Wilder foi considerado durante anos como uma comédia menor do realizador. Na verdade estamos perante uma atmosfera melancólica e nostálgica, que poderia parecer pouco propícia ao desenvolvimento de uma comédia clássica. Mas tal não impede(antes pelo contrário) que “Avanti!” seja uma das melhores e mais ácidas sátiras de Wilder, e simultâneamente uma comédia romântica e delicada, que se atravessa docemente com um sorriso permanente. Ao longo de duas horas e vinte minutos o lado sórdido do poder, dos compadrios e da corrupção anda de braço dado com a ligeireza contagiante de uma história de amor. Só um grande cineasta, na posse total da sua criatividade, poderia conciliar dois lados tão antagónicos e revertê-los num fabuloso ensaio cinéfilo. Um filme claramente à frente do seu tempo, tendo sido por isso mesmo um rotundo fracasso de bilheteira, a ponto da obra se ter eclipsado durante tanto tempo. Hoje basta vê-la de novo para comprovar toda a sua genialidade.

A propósito de um dos grandes momentos deste filme, a cena passada na morgue, onde toda a subtileza de Wilder se revela na sua arte de misturar o cómico com o trágico, a ternura e a sátira, a ferocidade e o pudor, dou a palavra a João Bénard da Costa, que numa das suas exemplares “folhas da Cinemateca”, escreveu: «Se pensarmos friamente – tão friamente como Wilder dá a ver naquela radiosa paisagem – não há casal menos atraente do que o que se estabelece entre Lemmon e Juliet Mills. Por alguma razão, estão ligados por cadáveres (os do respectivo pai e da respectiva mãe) e tudo começa, para eles, numa morgue. Eles próprios cheiram tanto a morte como o barão das enfermeiras e o que os leva um para o outro nada tem de redentor. Querem três exemplos (todos geniais)? O primeiro pode ser o do banho matutino, com o “strip tease” algo obsceno de Miss Piggott e as cuecas perdidas por Lemmon. Quando os dois se aquecem ao sol, no rochedo, não são propriamente Adão e Eva perdidos – ou achados – no paraíso, mas dois corpos de quarentões flácidos em que o erotismo não será seguramente valor predominante. Talvez por isso Lemmon tanto se indigne com as fotos da “Polaroid”, embora, depois de as rasgar, guarde perversamente um bocadinho.

Segundo exemplo é a transferência de Miss Piggott do Quarto 126 para a Suite 121-122. Antecedida pelo passeio matinal da dita carregado de pormenores equívocos (as freiras e o “Love Story”, os quatro gelados todos para ela, etc.) a pujante Pamela entra exultante no quarto de Lemmon, até perceber que só a espera mais uma humilhação. Mas não era uma questão de peso, era uma questão de altura e a balança fatal se encarrega de compensar essa falta de tamanho. E ao segundo “avanti” é de vez, com Juliet Mills a ensinar a Jack Lemmon algumas coisas que provavelmente a mulher nunca lhe ensinou. Ensinamento que tem suprema ilustração no mais perverso plano do filme: Jack Lemmon a receber na cama já compartilhada o telefonema do homem do State Department e o rosto de Juliet Mills espelhado nas costas da cama revelando uma posição mais do que “comprometedora”. E há um pijama dividido ao meio: para ele as calças, para ela o casaco.»


O grande legado de “Avanti!” é a sua simplicidade, o modo fácil com que nos coloca um sorriso na alma, lembrando-nos da beleza do mundo e como a vida pode ser agradável se disfrutada de braços abertos. E não é por acaso que toda a trama se passa no Verão, essa estação do ano que é propícia aos amores e à poesia das madrugadas. No princípio Jack Lemmon é um homem de negócios, apressado e rude, que viaja para Itália apenas porque o sentido do dever o impele a fazer tal viagem. No fim do filme é um homem bem diferente aquele que regressa, um convertido romântico em busca do melhor que o futuro lhe poderá trazer ainda. O mesmo ocorre com Juliet Mills. A inglesa infeliz e paranóica com a obsessão das dietas transforma-se numa mulher linda e radiosa, com os mesmos anseios de Lemmon pelos prazeres descobertos.

No final o caixão do pai de Wendell regressará a casa mas com um ocupante diferente lá dentro. No enterro, já em solo americano, Lemmon fará provavelmente o pio descurso que tanto ensaiou. Por outro lado Miss Piggott regressará a Inglaterra onde voltará a ser caixeira onze meses por ano. Mas antes das respectivas partidas ambos selam a garantia de no final desse tempo voltarem a usufruir de uma felicidade conjunta, nem que seja por apenas um escasso mês de ilusão milionária num hotel de luxo de Itália. E não será essa meta de excepção, continuamente renovada, a chave da verdadeira felicidade?

CURIOSIDADES:

- Juliet Mills, irmã mais velha de Haley Mills, engordou cerca de 12 quilos para desempenhar o papel de Pamela Piggott. Foi a única intervenção digna de registo da actriz no mundo do cinema, visto ter-se especializado, ao longo da carreira, em papéis de séries televisivas.

-  Jack Lemmon ganhou o Globo de Ouro na categoria Musical / Comédia, tendo o filme sido nomeado para mais 5 Globos: Filme (Musical / Comédia), Realizador, Actriz (Musical / Comédia), Argumento e Actor Secundário - Clive Revill.

domingo, junho 22, 2025

THE BLUES BROTHERS (1980)

O DUETO DA CORDA
Um filme de JOHN LANDIS



Com John Belushi, Dan Akroyd, Cab Calloway, John Candy, Carrie Fisher, Kathleen Freeman, James Brown, Aretha Franklin, John Lee Hooker, Ray Charles, etc.


EUA / COR / 133 m / 16X9 (2.35:1)


Estreia no Canadá / EUA a 20/6/1980

Estreia em Portugal (Lisboa) a 27/3/1981



Reverend Cleophus James: Do you see the light?
Elwood: What light?
Reverend Cleophus James: Have you seeeen the light?
Jake: Yes! Yes! Jesus H. Tap-Dancing Christ! I have seen the light! The band, Elwood! The band!
Elwood: The band? The band. The band? The band!
Reverend Cleophus James: Praise God!
Elwood: And God bless the United States of America!

Com argumento assinado por John Landis e Dan Aykroyd, esta frenética comédia musical é a transposição para o cinema dos personagens criados por Akroyd e John Belushi no famosíssimo programa de televisão “Sarturday Night Live”.  Uma homenagem à música soul e rhythm ’n’ blues, que transborda nas interpretações dos dois Blues Brothers e da banda de luxo, onde pontificam músicos que integraram grupos famosos dos anos sessenta do século passado, para além de outros que faziam parte da Saturday Night Live Band, e temos também a oportunidade de assistirmos a interpretações fabulosas de Ray Charles, Aretha Franklin, John Lee Hooker, James Brown ou Cab Calloway, que para sempre irão ficar nas nossas memórias musicais.





Apesar de a música ser fundamental no filme, a história e o seu desenvolvimento é todo um hino à comédia e ao humor non sense. Elwood (Dan Aykroyd), depois de ir buscar o “irmão” Jake à prisão, vão visitar o orfanato onde cresceram e ficam a saber que vai ser vendido se não for pago o imposto em dívida. Como angariar os fundos? Simples. Através das receitas de um concerto da antiga banda que terão que refazer, tendo para tal que convencer os antigos membros, todos com ocupações várias, alguns já fora do mundo da música, a se juntarem ao projecto. Depois? Bem, depois é um non stop de cenas hilariantes que culminam com a fuga final até à repartição de finanças de Chicago para entregarem os cinco mil dólares em dívida.





Nessa corrida de loucos são perseguidos por centenas de carros da polícia, por um grupo de nazis enfurecidos, pelos elementos de um grupo country e ainda por Carrie Fisher, ex-namorada de Jake, que tenciona eliminá-lo do mundo dos vivos pelo facto de ele a ter abandonado no dia do casamento. Finalmente, e já na repartição de finanças, ainda temos o exército americano que se junta a todos os outros perseguidores. Um filme totalmente exagerado, subversivo, frenético e, acima de tudo, com o humor cáustico dos dois Blues Brothers. Para além dos músicos referidos, há aina aparições de Steven Spielberg, John Candy, Twiggy, e o próprio realizador, que também faz o seu habitual cameoSeguramente um dos melhores filmes de John Landis, a par de “Um Lobisomem Americano em Londres”, que realizaria logo no ano seguinte.




CURIOSIDADES:

- Carrie Fisher ficou noiva de Dan Aykroyd durante as filmagens, logo após ele salvá-la de uma asfixia, aplicando a manobra de Heimlich.

- John Belushi desapareceu, como era usual nele, durante uma cena rodada à noite. Dan Aykroyd foi procurá-lo, tendo-se deparado com uma única casa de luzes acesas. Quando bateu à porta, o dono da casa olhou para ele, sorriu e disse: «Você está aqui por causa de John Belushi, não é?». O dono da casa disse que Belushi estava a dormir no sofá depois de ter pedido um copo de leite e uma sandwich

- O argumento original de Landis e Dan Aykroyd era tão longo que, em tom de brincadeira, Aykroyd o mandou encadernar nas capas das Páginas Amarelas de Los Angeles.

- Segundo Dan Aykroyd , foi incluída cocaína no orçamento do filme para ajudar o elenco a manter-se acordado durante as filmagens nocturnas.

- O filme foi considerado um fracasso de bilheteria até se tornar um enorme sucesso nos mercados internacionais.

- A popularidade do filme impulsionou os óculos de sol Wayfarer da Ray-Ban, que estavam renascendo graças à ascensão do movimento musical New Wave. De alguns milhares de unidades vendidas até meados da década de 1970, as vendas subiram para dezoito mil em 1981, em parte graças ao filme, que tirou o modelo da beira da falência.

- A cena em que os músicos aparecem numa sauna, vestidos apenas com toalhas, é uma alusão à foto da capa do álbum "No Sweat", de 1973, dos Blood Sweat & Tears , na qual a banda aparece numa sauna em pose idêntica. Lou Marini e Tom Malone , dois membros da Blues Brothers Band, também integraram os BST e aparecem em ambas as cenas de sauna.

- John Belushi viria a falecer apenas dois anos depois, a 5 de Março de 1982, com 33 anos, devido a uma overdose de cocaína e heroína.

- John Landis faria ainda uma espécie de continuação do filme, com John Goodman no lugar de Belushi e tentando aplicar a mesma fórmula do êxito do primeiro filme. Mas o sucesso dificilmente se repete, mesmo continuando a haver boa música nesse segundo filme, intitulado "Blues Brothers 2000".


sábado, junho 21, 2025

VIVRE POUR VIVRE (1967)

VIVER PARA VIVER
Um filme de CLAUDE LELOUCH

Com Yves Montand, Annie Girardot, Candice Bergen, Irène Tunc, Anouk Ferjac, Uta Taeger, Jean Collomb, Michel Parbot, Amidou, etc.

FRANÇA-ITÁLIA / 130 min / COR / 
16X9 (1.66:1)

Estreia em França a 14/9/1967
Estreia nos EUA (Nova Iorque) a 18/12/1967 
Estreia em Moçambique (L.M.) a 3/11/1968 (teatro Manuel Rodrigues)



“Vivre Pour Vivre” é a sétima longa-metragem de Claude Lelouch, realizada logo a seguir ao premiado “Un Homme et Une Femme, que acabara de ganhar a Palma de Ouro do Festival de Cannes, dois Globos de Ouro (melhor filme estrangeiro e melhor actriz dramática – Anouk Aimée), o BAFTA para a melhor actriz estrangeira e 2 Óscares da Academia de Hollywood, nas categorias de melhor argumento e filme numa língua estrangeira. Isto para citar apenas os principais prémios, porque o filme obteve muitos mais em diversos certames em todo o mundo. Na altura da estreia de “Vivre Pour Vivre” a tónica geral foi o desapontamento em relação ao seu antecessor e o nome Lelouch foi usado como sinónimo de um fotógrafo sem cultura cinéfila, tendo-se inclusivé chegado a escrever que “Vivre Pour Vivre” «era um filme sem ideias e sem emoções, e recheado de documentários irrisórios e propósitos frívolos.» Nada de mais falso ou tendencioso. “Vivre Pour Vivre” é, pelo contrário, uma obra feita quase totalmente de emoções, em que os diálogos cedem amiúde o lugar à imagem e ao fundo musical, visando precisamente realçar a diversidade de sentimentos entre os principais protagonistas.


Claude Lelouch foi contemporâneo de ilustres cineastas franceses do início dos anos 60: Truffaut, Chabrol, Godard, Rohmer, Rivette, Varda e Eustache, nomes que nessa altura constituíam a essência do movimento que se convencionou chamar de “Nouvelle Vague” (termo que começou a aparecer em diversas publicações no final dos anos 50 e que se revestiu de maior significado durante o Festival de Cannes de 1959 ao designar dessa forma o conjunto de filmes franceses a concurso). Ora, Lelouch nunca foi conotado com o movimento, pelo contrário, sempre foi colocado um pouco à margem. De um modo algo discriminatório, os críticos reinantes nessa época não lhe reconheciam os mesmos méritos dos outros pela simples razão de que Lelouch nunca fora um crítico de cinema, nunca escrevera nos então muito em voga Cahiers du Cinéma. E o facto de Lelouch ter vencido a Palma de Ouro em Cannes foi algo que esses mesmos críticos tiveram de engolir na altura mas que não esqueceram. Por isso, assim que tiveram oportunidade, trataram imediatamente de vilipendiar o trabalho do realizador francês.


"Vivre Pour Vivre” foi o primeiro filme de Claude Lelouch a que tive o prazer de assistir quando o mesmo se estreou em Lourenço Marques, corria o ano de 1968. Só alguns anos mais tarde teria a possibilidade de ver “Un Homme et Une Femme” e alguns dos seus trabalhos subsequentes. Dizem que o primeiro amor é sempre inesquecível e talvez exista alguma lógica nisso. A verdade é que foi este filme de Lelouch o que maior prazer me deu. Prazer esse, sempre renovado todas as vezes que a ele regresso. E já preciso da maioria dos dedos das mãos para contabilizar o número de todos esses regressos ao longo dos anos.


O argumento, assinado por Pierre Uytterhoeven e pelo próprio Lelouch (que também foi responsável pela montagem) não podia ser mais banal ao contar a história de um triângulo amoroso. Robert Colomb (Yves Montand, que nos deixou a 9 de Novembro de 1991 com apenas 70 anos), a sua mulher Catherine (Annie Girardot, actriz já falecida também, a 28 de Fevereiro de 2011, com a doença de Alzheimer) e a sua última amante, Candice (Candice Bergen) são os vértices desse triângulo. Provavelmente teria sido a sua recente consagração que permitiu a Lelouch dispor de tão talentosos actores, sobretudo Montand e Girardot, que já eram admirados e respeitadissimos na altura. E “Vivre Pour Vivre” deve muito do seu carisma e popularidade às magníficas interpretações dos seus actores. Mas também à belissima partitura musical de Francis Lai e à mise-en-scène de Lelouch, uma das suas imagens de marca. Convém lembrar que apesar da existência de fotógrafos contratados (no caso de “Vivre Pour Vivre” o director de fotografia chamava-se Patrice Pouget) era quase sempre Lelouch que no decurso das filmagens manobrava as câmaras, o que conferia aos seus filmes uma certa imagem de marca, pessoal e intransmissível.


São muitas as sequências inesquecíveis de “Vivre Pour Vivre”, feitas todas elas de poucos diálogos mas muita música e movimentos de câmara. Lembro-me especialmente daquela rotação de 360 graus no quarto do hotel de Amsterdam, onde Candice chega inoportunamente, sem se fazer anunciar e com o intuito de estragar a semana do amante com a legítima esposa. Vemos em primeiro lugar o abraço dos dois, depois uma acesa discussão no final da primeira deambulação da câmara em redor do quarto e novamente o mesmo abraço do início após outra rotação, desta vez em sentido contrário. Ou seja, por um simples artifício de um movimento de câmara, Lelouch mostra-nos algo que não chegou a acontecer, que só teve lugar no pensamento do protagonista. De recordar também a magnífica cena da confissão de Robert passada no comboio, em que o som vai pontuando frases soltas e close-ups do rosto de Catherine. Ou ainda aquele longo plano-sequência do regresso de Robert a uma casa vazia onde já só a solidão existe.


Mas se “Vivre Pour Vivre” se destaca sobretudo pela magnificência dos intérpretes, da música e das imagens, não é menos verdade que o filme se encontra inteligentemente recheado de belos diálogos, sempre que os mesmos têm uma importância fundamental para o desenrolar da história. Como o primeiro encontro casual de Robert e Candice na varanda do motel onde ambos se deslocaram para os respectivos affaires («a gente se conhece?», pergunta Candice; «acho que não», responde Robert, «senão estaríamos no mesmo quarto». Se tal resposta acontecesse nos dias que correm era mais do que provável que a jovem e bela americana corresse para a esquadra de polícia mais próxima a queixar-se vítima de assédio sexual. Mas aqui os tempos eram outros; e Candice limita-se a exclamar: «Quel drôle de type!»; e, claro, a resposta de Robert não se faz esperar: «Quelle drôle d’américaine!»)


Outro diálogo delicioso é o que ocorre quando Catherine sai do cinema com uma amiga, onde foram ver um filme protagonizado por uma ex-amante de Robert: «Queria ver a actriz que entra no filme. Ela e Robert tiveram um caso». «Mas ele sabe que tu sabes?», pergunta-lhe a amiga. «Estás louca? Ele só se preocupa com ele mesmo. E eu é que tenho de compartilhar as suas amantes, o seu trabalho.» Aceito que “Vivre Pour Vivre” acaba de um modo um tanto ou quanto convencional, sobretudo numa época – o final dos anos 60 – em que a revolução das mentalidades era o pão nosso de cada dia e todas as contestações estavam ali ao virar da esquina. Sobretudo a emancipação das mulheres e a revolução sexual, que mudariam as relações do homem e da mulher para sempre.


Mas deixem-me acabar com uma confissão: adoro toda aquela sequência final, passada no restaurante da estância de inverno. O arrependimento de Robert leva-o a cortejar de novo Catherine, mas sentindo-se desprezado face à negação dela em reatar a relação entre ambos. Depois de toda a tortura psicológica exercida por Catherine vemos um Robert desalentado e conformado a deixar o restaurante e sentimos que o filme vai acabar ali mesmo, quando ele entrar para o carro e partir. Mas a grande quantidade de neve caída cobre totalmente o vidro dianteiro e ele tem necessidade de a remover. É então que na sequência desse gesto vemos o rosto de Catherine, que o espera com aquele olhar cúmplice dentro da viatura. Um breve sorriso de Robert, e então sim, é mesmo o final do filme.





TRIANGLE (2009)


TRIÂNGULO DO MEDO
Um filme de Christopher Smith






Com Melissa George, Joshua McIvor, Jack Taylor, Michael Dorman, Henry Nixon, Rachael Carpani, Emma Lung, etc.

GB-AUSTRÁLIA / 99 min / 
16X9 (2.35:1)


Estreia na GB (Film 4 Frightfest) em 27/8/2009
Estreia nos EUA (Screamfest Film Festival) a 24/10/2009
Estreia em PORTUGAL (Motel Horror Film Festival) a 3/10/2010




Jess [to Tommy]: «Oh you're just having a bad dream, that's all baby. That's all it was. Bad dreams make you think you're seeing things that you haven't. You know what I do when I have a bad dream? I close my eyes and I think of something nice - like being here with you»

Jess (Melissa George), mãe solteira de uma criança autista, embarca com uns amigos num pequeno iate para gozarem um dia de Verão ao largo da Flórida. É uma solarenga manhã de sábado, mas a passeata em breve se irá tornar no pior dos pesadelos. Inexplicavelmente o vento deixa de se fazer sentir e pouco depois uma violenta tempestade irrompe do nada virando a pequena embarcação. Um dos seis velejadores desaparece no mar e os cinco sobreviventes ficam sentados em cima do casco, virado do avesso, à espera de uma eventual salvação. Salvação que chega pouco depois, na forma de um navio antigo, de nome Aeolus (o deus dos ventos na mitologia grega). Sobem aliviados pela escada lateral, mas rapidamente se vêm imersos numa grande inquietação, ao constatarem a inexistência de vivalma a bordo. Jess, em particular, é assolada por sensações contínuas de “déjà vu” ao percorrer os longos e desertos corredores (inspirados por certo em “The Shining” de Kubrick - e não são a única referência ao filme do mestre). Os acontecimentos precipitam-se e as mortes começam a suceder-se…

Christopher Smith, realizador inglês nascido em Bristol [1970], tinha assinado até agora apenas duas longas-metragens, ambas localizadas nos domínios do filme de horror: “Creep / O Túnel do Medo” [2004] e “Severance / Mutilados” [2006]. Este seu terceiro trabalho (onde, à semelhança dos antecessores, assina de igual modo o argumento) afasta-se um tanto ou quanto do género, constituindo-se antes num excitante thriller psicológico. Nunca exibido comercialmente em Portugal (apenas passou no Motel de 2010), “Triangle” (“Triângulo do Medo” no Brasil) é um daqueles filmes que, mal acabados de ver, nos dão de imediato uma grande vontade de os revermos logo de seguida. Estou a lembrar-me de “The Sixth Sense” [1999], “Memento” [2000], “Identity” [2003], “Shutter Island” [2010] ou "Source Code" [2011], por exemplo. Tudo filmes que apenas no seu términus nos dão "a chave do enigma". Como acontece neste também.

É difícil falar de “Triangle” sem caír de imediato nos chamados spoilers. Mas pode-se falar num filme circular, vicioso, onde a sensação de “déjà vu” é levada a extremos inusitados e onde o suspense se relaciona directamente com situações vividas em moto-contínuo (perpetuum mobile, em latim), mas sempre de modos e perspectivas diferentes. Jess é o centro à volta do qual tudo gira, mas um centro mutável, em constante disseminação. No final a maioria das peças do puzzle encaixam na perfeição (daí a necessidade já referida de uma segunda visão), mas felizmente nem tudo tem uma explicação óbvia, ficando muita coisa entregue à interpretação de cada espectador. E isso apesar de Christopher Smith ter construído o seu filme de um modo extremamente sólido e coerente.

É inútil, portanto, tentar racionalizar-se este filme que, de certo modo, poderá ser visto como uma metáfora sobre a punição. Segundo o próprio realizador, “Triangle” é uma espécie de pesadelo que só a heroína, Jess, pode compreender. Certo, podemos não ter direito à plenitude dessa compreensão, mas isso não impede que possamos usufruir do prazer que é assistirmos a este pedaço de cinema. Um filme diferente, original, inteligentemente escrito e habilmente realizado, com uma fotografia luminosa, interpretado por uma magnífica (e convincente) Melissa George (a actriz australiana de “The Amityville Horror” [2005], “30 Days of Night” [2007] ou “The Betrayed” [2008]) e pautado por uma banda-sonora envolvente, lembrando por vezes a colaboração Hitchcock-Hermann, que tantos frutos deu no passado. Será preciso acrescentar mais alguma coisa para irem a correr fazer o download do filme?