Não
tenho nenhuma vontade de morrer. Se pudesse não morrer, não morria. Mas se
fosse um amigo, o meu melhor amigo, a matar-me, talvez não me importasse de
morrer. Já me devia ter passado estra treta de ver filmes e pensar que vão
acontecer-me as mesmas coisas. "Stand Up Guys" é um filme de velhos gangsters
e eu, velho embora, com muita pena minha, não cheguei a gangster.
O
filme começa com Al Pacino a sair da cadeia. À espera, Christopher Walken, de pé,
junto ao carro. Não escondem os 70 anos que têm em cada perna. Olham-se,
aproximam-se, abraçam-se com a delicadeza, a hostilidade amiga e a lamechice
que a idade proíbe e autoriza. Só lhes falta beijarem-se. São duas sombras que
se amam e se confiam. Num abraço, entregam as saudades que tiveram um do outro.
Pacino
passou 28 anos na cadeia. Antes, com Walken, assaltou, matou, viveram. Um
reencontro destes merece festa e farra. Pacino quer espantar a perda, com uma
tonelada de alegria, coca, álcool e sexo. Walken faz a mesma coisa, mas com um
casaco de tristeza, dois versos elegíacos nos bolsos das calças. Al Pacino está
a divertir-se de mais. E ele sabe porquê. A sua morte está anunciada e
encomendada. O mau do filme, que é mesmo mau, hipóstase de todo o mal, culpa-o
da morte do filho, no tiroteio que levou Pacino à prisão. Na cadeia, pensou que
o matariam logo, até perceber que, com crueldade assassina, o fariam passar 28
anos a temer a própria sombra, mas seria já livre que alguém o iria liquidar.
Queria
dizer-vos que pouco me interessa se "Stand Up Guys" é um bom ou mau
filme. A minha especialidade, agora, é uma especialidade de velhos: pequeninas
cenas. E, mais de meia hora de filme, entre sorrisos e breve passagem pelas
brasas, cai-me no colo uma cena sublime. Estão sentados, num restaurante. A
luz, as espessas cores nocturnas, foram roubadas à pintura de Hopper. Derrama-se
da cabeça de Pacino uma serenidade cardinalícia. Quer saber: «Quem é que vai
fazer a coisa?» «Qual coisa?», diz o seráfico Walken. «Sabes muito bem...» E
evitando o desconforto do amigo, diz-lhe, num murmúrio, o que já adivinhou: «És
tu?» Diz-lhe isso, meigo, quase a sorrir e insiste: «C'mon man, say it's you!»
Os
olhos de Walken piscam e a voz sai-lhe linda, concordante, mais em sol do que
em dó, soltando um «It's me» que bem podia ser um «I love you». A câmara fica
na cara dele: não se mexe um milímetro daquela pele, olhos parados no tempo,
boca ligeiramente entreaberta. Alívio amargo-doce no rosto de Pacino. Estamos
ali, campo, contracampo, do grande plano da cara de um para o grande plano da
cara do outro. Está ali a morte sentada e ouve-se um silêncio de 10,15
segundos. Podia criar-se o mundo, um big
bang, nesse silêncio. Gostava de morrer assim, como Pacino, em boas mãos.
(Manuel
S. Fonseca in revista Atual, Expresso, 26/10/2013)
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