A SEDE DO MAL
Um Filme de ORSON WELLES
Com Charlton Heston, Janet Leigh, Orson Welles, Joseph Calleia, Akim Tamiroff, Joanna Moore, Dennis Weaver, Marlene Dietrich, Zsa Zsa Gabor, etc.
EUA / 111 min (edição
restaurada) /
P&B / 16X9 (1.85:1)
Estreia nos EUA a 23/4/1958
(Los Angeles)
Estreia
em PORTUGAL: Lisboa, 7/11/1958Quinlan: «Come on, read my future for me»
Tanya: «You haven't got
any»
Quinlan: «Hum? What do you
mean?»
Tanya: «Your future's all
used up»
Os
heróis wellesianos encobrem o passado e são por ele atraídos, pressentem que
não se podem realizar sem o enfrentar, quer seja para o integrar ou o anular
duma vez para sempre. Daí a necessidade de perpétua interpenetração do tempo,
de entrelaçamento do passado e do presente, de investigações que por vezes
tomam um carácter jornalístico, policial e, por vezes, psicanalítico. Mas,
precisamente, o passado que aparece, o rosto que se revela sob a máscara
arrancada, é a crueldade, é o crime, opostos da honra e dos ideais. A verdade não é a que se pensava, não é
boa, nem bela, mas é uma verdade à sua maneira.
"Touch
of Evil" revela-se duma importância singular para a compreensão da obra
wellesiana, não por de alguma forma lhe trazer dados novos, mas por a levar a
um universo mais próximo da escória humana. Rodado em 1957, por sugestão de
Charlton Heston (que exigiu que fosse Welles o realizador), o filme baseia-se num romance policial banal - "Badge of
Evil", de Whit Masterson - que Welles transfigurou ao ponto de fazer dele
uma das suas obras mais insólitas (parece até que nem leu o livro original, apenas o argumento dele extraído). Do famoso plano-sequência que inicia o filme
até ao desfecho final, no estranho cenário de um terreno baldio, mergulhamos
num mundo de puro pesadelo, reconstituído por uma câmara vertiginosa e omnipresente
que não dá tréguas nas suas deambulações por todos os artifícios técnicos
(profundidade de campo, plongées, contreplongées, grandes angulares, planos-sequência,
etc.) que constituem a imagem de marca do ex-menino prodígio de Hollywood.
Mas
de que trata o filme? Numa pequena vila fronteiriça, situada entre os Estados
Unidos e o México, um jovem polícia mexicano, Mike Vargas (Charlton Heston),
encarregue do combate ao tráfico de estupefacientes, é testemunha da explosão
de uma viatura armadilhada que resulta na morte de um casal, sendo o condutor
um poderoso americano da terra, chamado Rudy Linneker. Hank Quinlan (Orson Welles), um
inspector americano, é incumbido de investigar a ocorrência. À semelhança de
outras investigações do passado, Quinlan não hesita em forjar provas contra os
que lhe convém serem considerados culpados. Consegue-o neste caso graças a um
traficante local chamado Grandi (Akim Tamiroff), sobre quem pesam aliás as
maiores suspeitas.
Ambos
fazem os impossíveis para comprometer Vargas, o recém-casado colega mexicano colaborador na
investigação, não hesitando em servirem-se da mulher, Susan (Janet Leigh). Uma
vez raptada e drogada, e conduzida a um quarto de hotel, Quinlan estrangulará aí
o traficante, livrando-se assim dessa incómoda testemunha. A sua maquinação é descoberta por Vargas, que
encontra um aliado inesperado na pessoa de Menzies (Joseph Callei), o próprio
amigo de Quinlan, para quem este tinha sido até então um verdadeiro deus. O
filme acabará num ajuste de contas final entre os dois homens, depois de Vargas
ter conseguido gravar a conversa incriminatória ocorrida entre os dois. Mas o plano derradeiro pertence
a Marlene Dietrich: «He was some kind of a man. What does it matter what you
say about people?»
Contrariamente
aos filmes anteriores de Welles, os personagens de "Touch of Evil"
não têm a dimensão social ou mitológica de um Kane ou de um Macbeth, sendo
antes personagens de categoria inferior, ratos de esgoto e não ratos de cidade.
Quinlan não sonhou mais do que eles em querer ser outra coisa que sómente um
homem. Permanece um desconhecido e um ser dividido que, além do mais é também,
à sua maneira, um representante da ordem social, uma autoridade, mas uma
autoridade transgressora. Como ele próximo chegou a confessar, Welles transmite
neste filme todo o seu ódio à prepotência policial. Esse ódio não é mais que o
aspecto particular duma hostilidade para com todas as formas de opressão de que
aliás ele próprio foi vítima particularmente:
«É
um erro julgar que Quinlan tem algum encanto a meus olhos. Para mim, ele é
odioso: não há ambiguidade no seu carácter. Não é um génio; é um mestre no seu
género, um mestre de província, mas um homem detestável. O que pus de pessoal
no filme, é o meu ódio ao abuso que a polícia faz do seu poder. E é evidente: é
mais interessante falar dos abusos do poder policial com um homem de um certo
volume - não sómente físico, mas no que respeita a personalidade - do que com
um pequeno chui vulgar. Quinlan é pois melhor do que um chui vulgar, o que não
impede que seja odioso. Não há nenhuma ambiguidade nisso.
Mas
é sempre possível sentir simpatia por um crápula, pois a simpatia é coisa
humana. Donde a minha ternura relativamente a pessoas por quem não dissimulo de
modo nenhum a minha repugnância. E este sentimento não vem do facto de serem
mais dotadas, mas de serem seres humanos. Quinlan é simpático por causa da sua
humanidade, não das suas ideias. Não há a menor parcela de génio nele: se
parece haver uma, cometi um erro. Quinlan é um bom técnico, sabe do ofício: é
uma autoridade. Mas porque é um homem de uma certa envergadura, um homem de
coração, não nos podemos impedir de sentir uma certa simpatia por ele: é apesar
de tudo um ser humano.»
Lembremos
o que escreveu André Bazin, um dos autores da entrevista feita a Welles, no
hotel Ritz em Paris (no dia 27 de Junho de 1958), sobre a sua personagem neste filme: « Quinlan
não é realmente o polícia vicioso. Ele não tira lucro das suas investigações.
Ele está convencido da culpabilidade das pessoas que faz condenar com falsas
provas. Sem ele, esses culpados passariam pois por inocentes. Ao direito das
pessoas, à inteligência e à lógica honesta do seu colega mexicano, ele opõe a
"intuição" que lhe garante a exactidão do seu diagnóstico. As provas,
se as fabrica, é porque são necessárias para enviar o "culpado" para
a cadeira eléctrica.
Fisicamente
monstruoso, Quinlan sê-lo-á também moralmente? É preciso responder sim e não!
Sim, porque ele é culpado de ir até ao crime para se defender: não, porque de
um ponto de vista moral mais elevado ele está, em alguns aspectos pelo menos,
acima de Vargas, o honesto, o justo, o inteligente, mas a quem escapará sempre
um sentido da vida que eu diria shakespeariano. Estes seres privilegiados não
devem ser julgados segundo a lei comum. Eles são ao mesmo tempo mais fracos e
mais fortes que os outros.»
A
portentosa imaginação expressionista de Welles, tanto nas personagens (um
destaque muito particular para Marlene Dietrich, no papel de Tanya, dona de um
cabaret e antiga amante de Quinlan) como nas situações, rende uma completa
homenagem ao film noir contituindo-se,
em definitivo, como impulsionador dos filmes subsequentes do género,
nomeadamente as primeiras obras de François Truffaut ("Les 400
Coups") e Jean-Luc Godard ("A Bout de Souffle"). Mesmo um
cineasta genuinamente original como Alfred Hitchcock iria colher aqui muita da
inspiração (inclusivé usando a mesma actriz) com que filmou o célebre
"Psycho", apenas quatro anos depois.
CURIOSIDADES:
-
Em 1957, a primeira montagem do filme, com cerca de 109 minutos, alternando
planos-sequência longos com cenas extremamente rápidas, não agradou à Universal
que impôs um corte de 15 minutos (suprimindo as cenas que permitiam compreender
a dimensão moral do filme) e acrescentou novas sequências rodadas por um tal
Harry Keller. Welles viu essa nova versão e em poucas horas escreveu um
apaixonante memorando de 58 páginas, requisitando o direito de ele próprio refazer
o filme («I close this memo with a very earnest plea that you consent to this
brief visual pattern to which I gave so many long hard days of work»). Não foi
atendido, e "Touch of Evil" estrear-se-ia nas salas de cinema, em
Maio de 1958, na versão dos produtores, com cerca de 95 minutos. Em 1998 o
filme foi restaurado de acordo com o memorando de Welles, de modo a aproximá-lo
o mais possível da visão original do seu autor. É essa nova versão, com cerca
de 111 minutos, que se encontra agora disponível em DVD. Apesar de tudo, o
formato do filme foi alterado do original 1.37:1 para 1.85:1.
-
O agente de Janet Leigh rejeitou a sua participação no filme, sem sequer
consultar a actriz, por considerar muito baixo o salário oferecido pela produção.
Welles escreveu a Leigh, dizendo-lhe que gostava imenso que trabalhassem
juntos. Esta enfureceu-se com o agente, dizendo-lhe que ser dirigida por Welles
era mais importante do que qualquer cheque.
-
A longa sequência de abertura foi filmada durante toda uma noite, com inúmeras
repetições. Já os primeiros raios solares se anunciavam no horizonte quando
finalmente Welles se deu satisfeito com o resultado final.
-
Mercedes McCambridge só aparece no filme numa breve cena e tal deveu-se a ter
ido visitar o set e almoçar com
Welles. Este convenceu-a a vestir um blusão de cabedal, cortou-lhe o cabelo e
disse-lhe as palavras que ela devia proferir na sequência em que Janet Leigh é
drogada: «I wanna watch»
-
No DVD estava para ser incluido um comentário e um documentário sobre a
restauração, intitulado "Restoring Evil". Tal não se concretizou (mas no entanto o documentário encontra-se disponível no YouTube e é mostrado aí mais abaixo) devido à filha de Welles (e detentora dos direitos da obra do pai) Beatrice, se
ter oposto. Vá se lá saber a razão...
1 comentário:
Que bela viagem histórica.
Não sou grande fã do diretor, porém, seu trabalho de recuperação desse filme, que sinceramente, não conhecia, é muito bem feita.
Dupla de primeira visto que o eterno protagonista do Planeta dos Macacos era um grande ator, apesar de algumas escolhas erradas ao longo da carreira.
abs
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