segunda-feira, julho 14, 2025

THE LADY FROM SHANGAI (1947)

A DAMA DE XANGAI
Um filme de ORSON WELLES




Com Orson Welles, Rita Hayworth, Everett Sloane, Glenn Anders, etc.

EUA / 92 min / PB / 4X3 (1.37:1)

Estreia em França a 24/12/1947
Estreia nos EUA a 9/6/1948
Estreia em Portugal a 28/5/1949





Michael O'Hara: «The only way to stay out of trouble is to grow old.
So I guess I'll concentrate on that»

Em vez de uma intriga perfeitamente elaborada, “The Lady From Shangai” revela uma acção de uma força pouco comum mas, se assim se pode dizer, subterrânea. A intriga policial não é mais do que um pretexto, à moda de um “mcguffin” dos filmes de Hitchcock. O que conta são as personagens e as suas relações, bem como, e sobretudo, o seu simbolismo moral. Digamos que é grosseiramente a história de um rapaz honesto, o irlandês Michel O’Hara (Orson Welles), contratado como marinheiro num iate de milionário e envolvido em obscuras intrigas criminais, às quais a bela Elsa Bannister (Rita Hayworth) não é completamente alheia. Usando os seus encantos de mulher fatal, Elsa funciona como a aranha que vai tecendo a teia para a sua vítima mas mantendo-se sempre afastada, na expectativa.

Com “The Lady From Shangai, Welles subalternizava as pesquisas e as novidades técnicas de “Citizen Kane, virando-se para o classicismo do film noir, sem contudo o levar muito a sério. Poder-se ia dizer que “The Lady From Shangai” é paradoxalmente o mais rico de sentido dos filmes de Welles à proporção da insignificância do argumento: com a intriga a não impedir a acção profunda, os temas desenvolvem-se aí quase no estado puro. Temas fundamentalmente morais e que revelam as obsessões essenciais da ética wellesiana, e antes de mais uma sensibilidade para a liberdade de escolher o bem ou o mal, se bem que a vontade de Michel O’Hara esteja em parte condicionada a uma certa forma de destino. O filme desenvolve-se entre estes dois comentários do protagonista: «Quando começo a conduzir-me como um imbecil, nada no mundo me pode impedir de ir até ao fim» e o que o acompanha no final do filme, «Morta...tenho que me esforçar agora para a esquecer. A minha inocência despedaça-se...; mas, inocente ou culpado, isso não significa nada, o essencial é saber envelhecer bem»

Moralismos à parte, o que perdura neste filme de Welles é o surrealismo da atmosfera, a audácia alucinante de certas cenas. Como esquecer a cena de amor no aquário, diante de polvos e tubarões, a ser drasticamente subvertida pela aparição súbita do grupo de estudantes? Ou toda a sequência do tribunal em que Welles, que sempre detestou autoridades e sobretudo aquele mundo de leis e justiças, se diverte a satirizar os intervenientes? Ou a cena final na galeria dos espelhos (a memória do filme confunde-se frequentemente com este epílogo) em que Elsa e Bannister disparam por estimativa, procurando atingirem-se mutuamente por entre o ruído dos vidros estilhaçados das suas imagens?

Relativamente a esta última cena será pertinente entender a ideia de génio que era a utilização dos espelhos para a multiplicação dos personagens, cuja imagem é diferente em cada espelho. Tratava-se de equilibrar o par verdadeiro com as suas diversas imagens e, por arte do enquadramento, de obrigar o olhar a seguir essa multiplicação. Cada imagem está distante dos personagens, foge para o fundo, explora uma profundidade que é fisicamente ilusória, mas que se torna real no écran. O centro é a cabeça e o busto de Rita Hayworth que iluminam o rosto de Orson Welles mas toda a área do frame é usada em profundidade e em largura, resultando a imagem um todo organicamente ligado.


Mas por mais insólitas, por mais estravagantes que sejam todas estas cenas, o essencial de “The Lady From Shangai” para o público americano é a violência com que Welles desmitifica a mulher de que Rita Hayworth era justamente o símbolo. Sob a imagem ideal que o cinema fizera dela, Welles denuncia um monstro, uma devoradora de homens. Pela primeira vez, já não é apenas o homem que é denunciado como criminoso. É também a mulher, que até então se pretendia apresentar como anjo salvador. O espectador médio americano, que já se sentira frustrado com a nova fisionomia que Welles inventara para a diva (cabelo curto e oxigenado), não lhe podia perdoar o tê-la agora assassinado. Pior ainda, deixá-la morrer como uma cadela sobre o soalho, de onde ele sai indiferente, apressado em terminar com aquilo e sem o mínimo vestígio de compaixão. Da mesma forma que jamais perdoou a Chaplin os seus escândalos femininos e o seu “Monsieur Verdoux” (curiosamente uma ideia que partiu do próprio Welles).

A misogenia do cinema americano sempre constituiu um lugar-comum da crítica intelectual e Rita Hayworth foi sem dúvida uma das suas primeiras vítimas. E continua a ser, pelo génio de Welles, a mais gloriosa das mártires. A crítica não acolheu mal “The Lady From Shangai”, mas o público apenas o seguiu de longe. Dessa vez, a causa de Orson Welles foi julgada. Hollywood estava farta do seu wonder boy, que lhe tinha custado em sete anos alguns milhões de dólares.

Apesar dos numerosos meios colocados à sua disposição, Orson Welles nunca conseguiu finalizar o filme que imaginara. A metragem inicial de cerca de duas horas e meia foi amputada em 60 mintuos e, pior, as notas que o realizador escreveu para a montagem do filme foram pura e simplesmente ignoradas, não lhe sendo permitido interferir sequer no cut final. Hoje em dia só podemos imaginar o que é que “The Lady From Shangai” poderia ter sido se, mais uma vez, os produtores não se tivessem imiscuido no lado artístico da obra. Mas, mesmo assim, o filme apresenta todo o virtuosismo de Welles: os enquadramentos caprichosos, os movimentos de câmara geniais, elipses fulgurantes, a dialética de plongées/contreplongées, todo um arsenal expressionista: os sonhos, o combate entre a luz e as sombras, a complexidade da estrutura narrativa, o uso do plano-sequência, a voz-off do comentador que tudo acompanha e que tudo comanda. Mesmo gravemente ferido o génio de Welles conseguia ainda assim sobreviver.

CURIOSIDADES:

- O iate onde parte da acção do filme decorre pertencia a Errol Flynn, que assistiu a muitas das filmagens (o seu cão chega a aparcer numa cena).

- O produtor Harry Cohn retardou a estreia do filme durante um ano, com receio da imagem de Rita Hayworth ser afectada junto do grande público. Chegou inclusivé a ordenar a Welles que filmasse close-ups da estrela para os mesmos serem inseridos ao longo do filme. O mesmo se passou com a cena em que Rita canta “Please Don’t Kiss Me”, que foi posteriormente filmada.

- Chegaram a ser equacionados outros títulos para o filme: “Black Irish” e “If I Die Before I Wake”, este último o nome da novela de Sherwood King onde o argumento foi baseado.


domingo, julho 13, 2025

DER TIGER VON ESCHNAPUR / DAS INDISCHE GRABMAL (1959)

O TIGRE DE ESCHNAPUR / O TÚMULO ÍNDIO
Um filme de FRITZ LANG




Com Debra Paget, Paul Hubschmid, Walter Reyner, Claus Holm, Sabine Bethmann, etc.

RFA / 97 + 101 min / COR / 
4X3 (1.37:1)

Estreia na Alemanha a 22/1/1959
Estreia em Portugal (versão reduzida): 10/3/1961 (Cinema Condes)



Filme composto por duas partes, foi rodado por Fritz Lang logo após o seu regresso dos Estados Unidos em 1957, onde esteve exilado durante cerca de 25 anos. Nesse ano fez uma das suas muitas viagens à Índia, pensando realizar um filme sobre o famoso Taj Mahal, mas o projecto não foi avante. Por essa altura o produtor alemão Artur Brauner contactou-o para um regresso à Alemanha, sugerindo-lhe as histórias do "Tigre de Eschnapur" e do "Túmulo Índio". Prometia-lhe absoluta liberdade. Para Lang este convite era a concretização de um sonho antigo, pelo que não hesitou.

Trata-se de uma aventura sem grandes implicações ideológicas ou temáticas, fugindo inclusive ao estilo característico de Lang, mas ainda assim muitissimo interessante. A história fala-nos de um arquitecto alemão, Harald Berger (Paul Hubschmid), que é convidado a viajar até à Índia para reformar a urbanização da capital, mas que pelo caminho encontra Seetha (Debra Paget), uma bailarina, prometida do marajá Chandra (Walter Reyer), a quem salva das garras de um tigre. Amores e conspirações completam o quadro, fornecendo a paisagem indiana o necessário exotismo. Na 2ª parte Berger vê-se envolvido numa luta de poder, entre o marajá e o irmão, Ramigani. Seetha é obrigada a casar com Chandra, como única forma de salvar o arquitecto, e este é amarrado numa das masmorras do castelo, enquanto Seetha tem de dançar diante de uma cobra, numa verdadeira prova de coragem perante os homens e os deuses…


Esteticamente o filme é muito belo, evocando o imaginário dos anos 20 e particularmente o abstraccionismo dos “Nibelungos”, do próprio Lang. A utilização do décor e do espaço é simplesmente portentosa, sobretudo nas sequências rodadas nos salões, terraços e subterrâneos do palácio. Aliás é uma faceta conhecida de toda a obra de Lang, a alternativa entre os espaços abertos e cerrados, entre o movimento para a liberdade e o movimento para o abismo.

A aparente convencionalidade do argumento é ultrapassada pela maturidade de Lang, que lhe permite combinar o máximo de inacessibilidade com o máximo de acessibilidade. É tão possível dizer-se que, uma vez mais, os temas da morte, da vontade de poder e do destino tudo dominam e a tudo presidem, como filiá-los nos grandes romances de aventuras do século XIX, de Júlio Verne, Karl May ou Emilio Salgari. Em última análise, nós espectadores, abandonamo-nos ao prazer de uma história bem contada, que tem a ver com contos de fadas e o mundo da infância e da adolescência.

Se o filme tem uma poderosa carga mágica (o episódio do faquir do Tigre, a dança da cobra ou a maldição da deusa do Túmulo, para apenas citar alguns exemplos cimeiros) essa magia é inseparável duma moral, que no termo da obra de Lang é da exaltação do amor. Estamos num mundo de volumes, de luzes e de cores, em que a luta se trava tanto entre os sentimentos como entre as formas. Num mundo em que a genealogia da moral postula o mito e em que a fábula se encerra na moral da fábula.


CURIOSIDADES:

- Existe um versão mutilada com apenas 95 minutos dos dois filmes, dobrada em inglês e com o título de "Journey to the Lost City".

- Um dos filmes predilectos de Steven Spielberg, que inclusivé esteve na génese da criação da personagem de Indiana Jones.


 
 

sábado, julho 12, 2025

THE BIRDS (1963)

OS PÁSSAROS
Um filme de ALFRED HITCHCOCK



Com Tippi Hedren, Rod Taylor, Suzanne Pleshette, Jessica Tandy, Veronica Cartwright, Ethel Griffies, etc.

EUA / 119 min / COR / 
16X9 (1.85:1)

Estreia nos EUA (Nova Iorque) a 28/3/1963 
Estreia em França (Festival de Cannes) em Maio de 1963
Estreia em Portugal (Lisboa) a 20/11/1964 (cinemas Alvalade e São Luiz)


Mother in Diner: [to Melanie] 
«Why are they doing this? Why are they doing this? 
They said when you got here the whole thing started. 
Who are you? 
What are you? Where did you come from? 
I think you're evil. EVIL!»

“The Birds” foi considerado por Alfred Hitchcock o filme mais complicado da sua carreira, aquele que lhe exigiu mais tempo de preparação e rodagem. Como confessou a Truffaut na célebre entrevista de 1966: «Costumo gabar-me de nunca olhar para o argumento enquanto rodo um filme. Sei o filme de cor, de uma ponta à outra. Sempre tive medo de improvisar no plateau, porque nessa altura, se há tempo para ter ideias, não há tempo para analisar a qualidade dessas ideias. Há ali muitos operários, electricistas e maquinistas, e eu sou muito escrupuloso com as despesas inúteis. Não posso, na verdade, imitar esses realizadores que fazem esperar uma equipa inteira enquanto se sentam para reflectir, nunca poderia fazer isso. Mas com “The Birds” foi diferente. Sentia-me muito agitado, o que é raro, pois habitualmente gracejo muito durante a rodagem. À noite, quando regressava a casa, para junto da minha mulher, continuava a sentir-me perturbado, emocionado. Qualquer coisa se passava, inteiramente nova para mim: comecei a estudar o guião durante a rodagem e encontrei-lhe fraquezas. Essa crise despertou em mim algo de novo do ponto de vista da criação.»

Quando Hitchcock adaptou a novela de Daphne du Maurier (1907-1989), sua amiga pessoal,  e autora também de “Rebecca” (que Hitch transformou em filme em 1940), retirou-lhe quase exclusivamente a ideia original para o filme. Deixou de lado a meticulosidade e os pormenores anedóticos, substituindo-os por um clima potencialmente criativo. “The Birds” é o filme mais densamente psicológico de Hitchcock, aquele em que existe uma interacção inequívoca entre as sequências de suspense e as personalidades de cada um dos diversos personagens. Essa analogia nem sempre é perceptível numa primeira visão da obra, dai o cair-se frequentemente em apressados e desajustados  juízos de valor, que não raramente remetem para uma subvalorização geral do filme. Mas atente-se em alguns exemplos:


A frivolidade das relações iniciais de Melanie (Tippi Hedren) e Mitch (Rod Taylor) – o filme arranca como se de uma screwball comedy se tratasse - só se começa a transformar em algo mais sério após Melanie ser atacada pela gaivota na baía, no caminho de retorno da casa dos Brenner. Lydia (Jessica Tandy), a mãe de Mitch, começa por exprimir uma atitude egoísta e obstrutiva em relação à atracção que desponta entre o filho e a mulher vinda de San Francisco. Devido aos ataques inexplicáveis dos pássaros sente o seu mundo particular – até aí povoado por uma segurança inquestionável, apesar da morte recente do marido – ser seriamente abalado nos seus alicerces, tornando-se, no final, uma aliada de Melanie (um afectuoso olhar entre as duas é um dos derradeiros planos do filme). O amor sublimado da professora, Annie Hayworth (Suzanne Pleshette) que se encontrava resignadamente adormecido, tem um novo alento, quer pela presença de uma nova mulher na vida do seu antigo amante quer pelos acontecimentos insólitos que irrompem na pacífica Bodega Bay. E o seu último gesto, antes de ser morta, é salvar a irmã do homem que ama.

Uma das coisas mais notáveis deste filme é a sua magistral gradação do clímax dramático, a implacável progressão dos ataques dos pássaros, que lentamente acabam por impor aos habitantes daquela pequena localidade a incrível realidade: o mundo das aves propõe-se destruir o mundo dos homens. “The Birds” é por isso também o filme de Hitchcock que mais se aproxima, sem contudo neles se consumir, dos universos do sobrenatural e da ficção científica. Até este filme, a principal obsessão de Hitch era a da razão (ou da falta dela) do Mal e dos problemas de culpa a ele associados. Em “The Birds não existe essa culpa, o Mal existe no seu estado absoluto, está simplesmente ali, não podendo ser racionalizado ou subjectivado. É por isso que não há qualquer explicação para os ataques que vão ocorrendo ao longo do filme. Estamos confrontados com um Mal sem causa, sem culpados possíveis, até porque mesmo os agentes desse Mal – os pássaros – não podem por natureza ser culpabilizados.

Voltando à entrevista com Truffaut: «Não teria feito o filme se se tratasse de abutres ou de aves de rapina, o que me agradou foi o facto de se tratar de aves vulgares, de aves de todos os dias». Ou seja, a escolha dos mais inocentes e pacíficos dos animais é claramente intencional, porque a sua transformação em veículos do Mal assume por isso um carácter mais terrível e assustador. Quando a ornitóloga Mrs. Bundy (Ethel Griffies) nos fala da existência de mais de cem biliões de pássaros, quando Mitch diz que as suas investidas parecem obedecer a um plano organizado e sobretudo quando os vemos em acção, a nossa inquietação, como a dos protagonistas, é total, porque estamos perante a irracionalidade absoluta. A ameaça ao nosso quotidiano despreocupado vem de onde menos se espera, o que de certo modo nos coloca de sobreaviso em relação a tudo o que nos rodeia.

Tal como escreve Carlos Melo Ferreira no livro “O Cinema de Alfred Hitchcock”, «”The Birds” é o mistério insolúvel, estando para a obra de Hitchcock como “El Angel Exterminador” para a de Buñuel, “The Shangai Gesture” para a de Von Sternberg, “Le Testament du Dr. Cordelier” para a de Renoir. Sabe-se porque ocorre um tremor de terra. Sabe-se porque rebenta uma bomba atómica. Mas não se sabe porque é que, a partir daquele dia e durante algum tempo, os inofensivos pássaros de Bodega Bay atacam os habitantes da vila, que levam uma vida pacata. Nem se sabe quando (ou mesmo se) e porquê deixarão de atacar. E as relações que se podem estabelecer constituem explicações manifestamente insatisfatórias».

E continuando a citar CMF: «Os personagens podem atribuir-se culpas uns aos outros, Melanie pode ser culpada por ter ido a Bodega Bay, e pelas razões que aí a levaram, pode ser acusada do seu passado escandaloso, pode ser responsabilizada pelo sucedido por todas estas razões: o certo é que nada pode provar a culpa dos pretensos culpados, ninguém pode explicar de forma razoável, aceitável, porque minimamente científica, o mal que se abateu sobre os habitantes de Bodega Bay. Melanie pode funcionar aqui, com os seus lovebirds significando o desejo por Mitch, como a falsa culpada, em que há quem a queira transformar».

O filme destaca-se tecnicamente por uma grande austeridade expressiva; os momentos mais surpreendentes quase não são sublinhados por efeitos de câmara ou de montagem. A excepção será o ataque dos pássaros a Melanie, no sótão da casa de Mitch – aqui temos direito a uma variante, também ela excelente, da célebre sequência do chuveiro de “Psycho”, em que planos ultra-rápidos permitem ao espectador ver o invisível. Mas em tudo o mais a frugalidade dos meios utilizados é por demais evidente; até a música foi abolida de “The Birds”, tornando-se Bernard Herrmann apenas num consultor para o som. Um dos momentos mais admiráveis e célebres de “The Birds” é a do ataque dos pássaros à escola. Relembremos o que Hitchcock confidenciou a Truffaut sobre esta particular sequência:

«Analisemos essa cena no exterior da escola, quando Melanie Daniels está sentada e os corvos se juntam atrás dela. Melanie, inquieta, entra na escola para prevenir a professora. A câmara entra com ela e, pouco depois, a professora diz às crianças: 'Agora vão saír, e quando eu lhes pedir que corram, vocês correm'. Conduzo a cena até à porta e depois corto para passar aos corvos, todos juntos, e permaneço com eles, sem cortar e sem que nada se passe, durante trinta segundos.. Então o espectador pergunta a si próprio: 'Mas que aconteceu às crianças, onde estão elas?' E só nessa altura se começa a ouvir o som de passos de crianças a correrem, todos os pássaros levantam voo e vemo-los passar por cima do telhado da escola antes de se abaterem sobre as crianças.


A velha técnica para obter suspense nesta cena consistiria em dividi-la mais: começar-se-ia por mostrar as crianças a saírem da aula, depois passar-se-ia aos corvos à espera, depois às crianças a descerem a escada, depois aos corvos a prepararem-se, depois às crianças a saírem da escola, depois aos pássaros a levantarem voo, depois às crianças a correrem e finalmente às crianças a serem atacadas. Mas hoje, para mim, esta maneira de proceder está fora de moda».

“The Birds” culmina numa sequência quase bíblica: sobre um poente de tons frios e esverdeados, entre a ameaçadora imobilidade das aves, Hitchcock introduz-nos num lúgubre apocalipse decorativo, que evoca um quadro de Marx Ernst. Todos os cuidados com que os fugitivos se dirigem para a viatura, tentando que o ruído dos seus passos não perturbe a inércia das aves vigilantes evidenciam o absurdo da situação, tanto mais que os pássaros não os atacam, como se esperassem uma ordem invisível para o fazer.


Aqui, neste derradeiro e inesquecível plano, já nem é sequer o medo que está em causa. A imagem que nos acorre ao espírito é a fuga silenciosa ante a presença do Mal, a procura da sobrevivência para além do horizonte. Hitchcock tinha pensado outro final, menos ambíguo, mas mais terrível: o carro dos protagonistas chegava a San Francisco e a ponte que dá acesso à cidade encontrava-se coberta, ao longo de toda a sua estrutura metálica, de milhares de pássaros. Ou seja, a ideia de que a ameaça não tinha ficado para trás e continuava bem real. No entanto, e por razões técnicas, não foi possível realizar-se a filmagem desse final.

Concluímos citando de novo CMF: «”The Birds” é o ponto sem regresso na obra dum artista único, que não impede posteriores obras-primas e que define melhor todo o trabalho do realizador, clarificando-o e dando-lhe, na sua ambiguidade, o seu sentido único como reflexão sobre a vida e a morte, o amor e o desejo, a sobrevivência e o terror. Sobre o Homem. E caracterizando essa obra com uma indelével marca estética: a da irreversibilidade da vida e da morte, mesmo quando aparentemente recuperáveis».


CURIOSIDADES:

- Hitchcock viu pela primeira vez Tippi Hedren num filme publicitário sobre uma bebida dietética. Nesse filme Tippi volta-se sedutoramente ao ouvir um assobio, situação recriada por Hitch (como uma private joke) logo no início do filme, imediatamente antes da sua clássica aparição, ao sair da loja de pássaros com dois cães terriers – companheiros inseparáveis do realizador duranta a rodagem do filme.

- O carro que  Tippi Hedren conduz é um Aston Martin DB2/4 Coupé.

- A sequência do ataque dos pássaros no sótão da casa levou uma semana a ser rodada e originou o internamento de Tippi Hedren numa unidade hospitalar devido a um esgotamento da actriz.

- “The Birds” não acaba com o então habitual “The End” porque Hitchcock queria deixar no ar a ideia de que a ameaça dos pássaros não acabava com o final do filme.

- Melanie Griffith, filha de Tippi Hedren, encontrava-se quase sempre presente durante a rodagem do filme. Um dia Hitchcock ofereceu-lhe uma boneca que era uma réplica perfeita da mãe, dentro de uma caixa de madeira, que a garota julgou tratar-se de um pequeno caixão.


- Segundo Hitchcock o filme contém 371 efeitos especiais, 32 dos quais foram usados na sequência final.

- A escola usada no filme é a Potter Schoolhouse, que esteve activa entre 1873 e 1961, ou seja, já se encontrava encerrada quando o filme foi rodado. Hoje o edifício é uma residência privada.

- Em todos os planos onde se vêm aglomerações de pássaros, grande parte deles não são verdadeiros. Veronica Cartwright lembra-se de ter questionado Hitchcock na altura se os espectadores não iriam notar a imobilidade desses bonecos. O velho mestre respondeu-lhe lapidarmente: «o Cinema é ilusão, minha querida. Basta verem alguns deles mexerem-se para acreditarem que todos os outros estão vivos também».

- Quando o filme foi rodado, a estação de serviço frente ao restaurante Tides não existia, pelo que teve de ser implantada para se filmar a sequência do incêndio. Mais tarde, e dado o grande sucesso do filme, uma nova estação de serviço foi construída no local, a qual se mantém até aos dias de hoje.


Recordemos o que François Truffaut escreveu sobre o filme em 1963:

«Apesar de ser o único cineasta cujos filmes reeditados vinte anos após a sua estreia dão tanto lucro quanto um filme novo, Hitchcock nunca ganhou um Óscar. Decerto, o seu último filme, "Os Pássaros", não é perfeito. Rod Taylor e Tippi Hedren acasalam de modo improvável, e a história sentimental - quase sempre a mesma: a caça ao marido - ressente-se disso, mas quanta injustiça na censura geral! O que me entristece é que nenhum crítico admire a ideia do filme: "Os pássaros atacam as pessoas". Estou convicto de que o cinema foi inventado para que este filme fosse rodado. Pássaros comuns, pardais, gaivotas e corvos vão atacar pessoas comuns: a população de uma aldeia costeira. Aqui está um sonho de artista e, para levá-lo a bom porto, é preciso muita arte e ser o maior técnico do mundo.


Alfred Hitchcock e o seu colaborador Evan Hunter ("Sementes de Violência") conservaram apenas a ideia da short story de Daphne du Maurier: pássaros à beira-mar que resolvem atacar os humanos, primeiro no campo, depois na cidade, à saída das escolas e até mesmo em casa. Nenhum filme de Hitchcock teve uma progressão tão exemplar, já que os pássaros, à medida do desenvolvimento da acção, tornam-se: a) cada vez mais negros; b) cada vez mais numerosos; c) cada vez mais maus. Quando atacam as pessoas, dirigem-se preferencialmente aos olhos. No fundo, irritados por serem capturados e engaiolados - senão mesmo comidos - pelas pessoas, tudo se passa como se um belo dia tivessem decidido inverter os papéis.

              

Hitchcock pensa que "Os Pássaros" é o seu filme mais importante, e esta é também, de certo modo, senão mesmo de modo certo, a minha opinião. Partindo de uma ideia plástica tão forte, Hitch compreendeu que era preciso cuidar da intriga, de maneira que esta fosse mais do que um pretexto para ligar entre si diversas cenas de coragem ou de suspense: criou uma personagem muito bem conseguida, a de uma rapariga de São Francisco, sofisticada e muito snobe, que passa por todas estas provas sangrentas, acabando por descobrir assim a simplicidade, a naturalidade.

Pode considerar-se que "Os Pássaros" é um filme de montagens, é certo, mas são montagens realistas. Na verdade, Hitchcock, cuja mestria aumenta de filme para filme, precisa incessantemente de novas dificuldades: torna-se o atleta completo do cinema. Na verdade, não se perdoa a Hitchcock que nos assuste de forma gratuita. Todavia, acredito que o medo seja uma emoção "nobre" e que pode ser "nobre" assustar. É "nobre" confessar que se teve medo e que se teve prazer nisso. Qualquer dia, só as crianças irão conservar essa nobreza.»


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